UM TIRO À MEIA-NOITE
— Fui desfeiteado, Mané Luís, pelo Zé Baiano, aquele negro sem-vergonha, unicamente porque quer que eu retire a mansinha, a vaca pintada, lá da beira do riacho do Ca-poeirão, onde está pondo em nada o seu arrozal. Não faz cerca que preste. Se êle tem um punhado de terras eu sou o maior condômino da Fazenda e minha vaca de estimação não sairá. O negro me disse com toda ousadia e má-criação, que, se encontrá-la na roça outra vez, a matará na certa. Que desaforo! Vou acabar com essa pen-denga! Você é a única pessoa da minha inteira confiança e hoje mesmo irá virar o pé daquele atrevido, para êle saber respeitar homem.
Falava assim a Manoel Luís, seu afilhado e filho de criação, o coronel Terêncio Pontes, homem de muitos haveres e senhor supremo e absoluto da Fazenda do Barreiro Vermelho.
Manoel Luís sabia que seu padrinho tinha por hábito não ser contrariado nas suas decisões, por mais absurdas que elas fossem. Mal respondeu:
— Inhor sim.
— Tenho ali, no canto, o meu clavinote paraguaio, carregado com uma boa carga de chumbo reúno e uma bala de cobre, curada dia de Sexta-feira da Paixão. Examine bem a cassoleta, pra vêr se o ouvido está escorvado e, ao escurecer, vá ficar na beira do riacho do Capoeirão, no caminho da casa da Rosinha do Retiro, para onde êle vai todas as noites. Mandigueiro só quebra a pauta quando pisa nágua. Quando o negro entrar no riacho despeja-lhe sem pena a carga do paraguaio, que nunca mentiu fogo.
— Inhor sim.
Manoel Luís, criado sob o regime da mais absoluta obediência, não obstante ser de boa índole e incapaz de, por si só, fazer o menor mal a seus semelhantes, não discutiu.
Pegou da arma, examinou-a se de fato estava bem carregada e, turvando o dia, com sua capanga a tiracolo, dirigiu-se para o riacho do Capoeirão, em cujo barranco se postou, junto ao tronco roliço de um copado buranhém, meia légua boa da Fazenda. A lua-cheia parecia um grande queijo de prata.
O coronel que, apesar de prepotente e genioso, nunca teve o menor desejo de tirar ou mandar tirar a vida ao próximo, porquanto a sua religião mesclada de catolicismo e superstição proibia terminantemente matar, ao cair da noite, começou a sofrer terrívíel remorso, conjeturando quais seriam as consequências de tamarilla insensatez.
Mandar matar um pai de familia numerosa, por causa de urna simples vaca, para quem possuía centenas ou milhares !
Como ficariam essas crianças sem pai e sem mãe, pois esta falecera de maleita, ainda não fazia um ano?
Nada que se faz em cima da terra fica oculto. 0 seu crime seria, mais hoje ou mais amanhã, faltamente descoberto.
Êle que nunca fora processado nem preso, pelo contrário, sempre funcionou como jurado, dos bons, lá na Vila do Queimado, teria que passar pela maior das vergonhas de se assentar no banquinho duro dos réus, ombro a ombro com o seu criado, moleque sem qualidade, que mal servia para limpar-lhe as botas.
Todos os habitantes da Vila e do Município se abalariam, a fim de assistir ao espetáculo doloroso do julgamento do sisudo e opulento coronel Terêncio. Que escândalo!
O promotor público, antes tão respeitoso para com êle, iria dar-lhe os mais insultuosos epítetos. Classifica-lo-ia de indivíduo lombrosiano, de covarde assassino, homem sem entranhas, que, por uma torpe vingança, deixa ao desamparo, em completa miséria, umas infelizes crianças, etc., etc., etc..
Seus adversários políticos iriam gozar da sua desdita.
Sua família, uma das mais respeitadas, sofreria as maiores humilhações, seria uma vítima certa da maldade dos seus inimigos.
Poderia sair livre com algum prestígio que desfrutava no seu partido, mas tal mancha ficaria para sempre.
Não! Isto não poderia acontecer!
Pensou em correr, ir atrás de Mané Luís, mas teve receio de alarmar a sua mulher e de chegar ao ponto tarde demais.
Só mesmo um milagre poderia salvá-lo, salvando da morte o pobre do Zé Baiano. E pediu, pediu muito, de coração, a Nossa Senhora da Abadia do Muquém que o socorresse, que desviasse os passos do seu desafeto do caminho infalível da morte. Prometeu doar todos os anos, enquanto vivesse, uma vaca das mais gordas aos pobres da Vila.
Deitou-se, mas não conseguiu dormir um minuto, rolando na cama, como se estivesse sobre espinhos.
D. Genoveva, sua digna consorte, pensando que seu marido estivesse sofrendo de algum mal do estômago, propôs levantar-se e ir à cozinha fazer-lhe uma mezinha, mas êle se opos, dizendo que não havia de ser nada, apenas uma pequena indisposição e dormiria logo. Fingiu depois que dormia.
Enquanto a sua companheira, com a consciência tranquila das boas donas de casa, ressonava profundamente, o coronel pestanejava, com o cérebro em brasa, como se fosse um condenado a morrer no dia seguinte na cadeira elétrica.
Esperava a cada momento o anúncio da sua ruína para sempre.
Um galo cantou no galho da goiabeira do fundo do curral. Outro respondeu, mais outro e, além muito longe, outros galos dos vizinhos também cantaram.
E tudo entrou no mais profundo silêncio, rompido de vez em quando pelo grito lamentoso do gavião-de-penacho no meio da mata. Não, demorou muito, um tiro redondo, como o de uma roqueira, reboou das margens do Capoeirão e se espalhou de quebrada em quebrada até se perder pelos lados do morro da furna grande.
Novo silêncio, mais profundo, mortal, envolveu o mundo. Até o gavião-de-penacho ficou mudo.
Ao ouvir o grito dos quero-queros e o chio dos gonzos da cancela do vaquejador, o coronel correu pressuroso ao encontro do seu cúmplice:
— Fez o serviço?
— Inhor sim. Quando o negro pisou nágua, barri-lhe fogo e ouvi o baque. Sei que não será outro, porque ainda ontem o vi de camisa branca e casaco preto, bem assim como apareceu no ponto de algodão do paraguaio. Vim para vancê me ajuda a esconde o bicho antes do sol sair, para o povo não descobrir.
Ao chegarem ao local do crime, lá estava, de pernas para o ar, escornada, a vaca pintada de estimação, que, nesse mesmo dia, foi distribuída em postas aos pobres da Vila do Queimado.
José Décio (pai): Revista "Oeste" n.° 7 — 1943, Goiânia, Goiás.
Fonte: Estórias e Lendas de Goiás e Mato Grosso. Seleção de Regina Lacerda. Desenhos de J. Lanzelotti. Ed. Literat. 1962
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