UMA ACADEMIA DE ALTOS ESTUDOS

Oliveira Lima

UMA ACADEMIA DE ALTOS ESTUDOS

Senhores:

Entre as surpresas agradáveis que desta vez me esperavam na pátria, à qual volvo após mais de dois anos de ausência, destaca-se a criação, no seio do Instituto Histórico, da Academia de Altos Estudos, ou antes a transformação da douta corporação que vai caminhando para o seu centenário, ninho de erudição histórica, como a planearam seus fundadores, num organismo mais complexo, mais vivaz e mais expansivo, consentâneo à cultura moderna no duplo caráter científico e literário, que deliberadamente assumiu na ampliação da sua missão educadora.

Antes de tudo permiti que eu dê o seu a seu dono, ou melhor a seus donos. O distinto pedagogo português, Sr. José Júlio Rodrigues, que aqui se acha à testa de um florescente instituto de ensino secundário, foi quem alimentou o projeto de agregar ao externato, que pretendia estabelecer, uma Escola de Altos Estudos constituída por meio de cursos livres ou antes por séfies de conferências e pre-leções, a exemplo da Universidade socialista de Bruxelas.

Nas universidades americanas o estudante tem a faculdade de escolher, dentro de certos limites, as cadeiras que deseja cursar, isto é, tem a liberdade de, no departamento de História, por exemplo, preferir a História da América do Sul à História das instituições medievais, ou no departamento de línguas e literaturas preferir o alemão ao francês, ou o russo ao alemão. Cada estudante organiza o seu curriculum. Parte-se do princípio de que o trabalho voluntariamente escolhido é sempre melhor executado do que o trabalho imposto e também do fato de ser a especialização dentro de uma cultura geral a regra básica da ciência contemporânea. Não são outros os fundamentos, sobre que descansa a nossa atual Academia e que garantirão decerto a sua prosperidade.

Por amor da exatidão histórica, quando nãò fosse por dever de consciência, convém ficar registado que antes da tentativa do Sr. José Júlio Rodrigues, a quem pertence a prioridade da idéia já cristalizada, tinha o nosso eminente consócio Sr. Dr. Manuel Cícero pensado em transformar a instituição, que dirige para felicidade dos estudiosos desta terra, numa instituição análoga à Escola de Altos Estudos, melhor dito, dotar com tal caráter ativo o grande repositório de saber passivo a seu cargo. Êle não declarara porventura expressamente o seu intento, mas fizera melhor do que isso, pois que o realizara, levando a efeito na Biblioteca Nacional as notáveis séries de conferências que estão na memória de todos nós.

Quando o Sr. José Júlio Rodrigues reclamou meu concurso para levar por diante seu projeto, prestei-lho da melhor vontade, e abri a série de conferências da Rua Carvalho de Sá, repetindo em português as que fizera em inglês nas Universidades americanas por ocasião da minha anterior visita aos Estados Unidos, em 1912, sobre evolução comparada da América Saxónica e da América Latina. O falecido e saudoso José Veríssimo fêz um curso excelente de História da literatura brasileira, resumo da sua obra inédita sobre a matéria; o ilustre Sr. Dr. Oscar de Sousa fêz um curso interessantíssimo de Psicofisiologia; o Sr. Dr. Rodrigo Otávio tratou com toda sua proficiência jurídica da situação legal dos estrangeiros no Brasil; o Sr. Dr. Clóvis Beviláqua expôs com sua habitual mestria a interpretação filosófica da História do Direito; por fim o Sr. Dr. Pontes de Miranda discorreu brilhantemente sobre Sociologia e Moral. Cessou aí o que podemos chamar a segunda fase desta nossa Escola destinada a aprofundar e ao mesmo tempo a vulgarizar conhecimentos, estimulando as vocações estudiosas e oferecendo pasto às suas reflexões. Houve que suspender o esforço por circunstâncias alheias à vontade dos que nutriam pela tentativa um desvelado interesse.

O incomparável primeiro-secretário perpétuo desta casa entendeu, e muito bem, que a idéia não devia ficar perdida, e que o Instituto Histórico lhe oferecia, além de uma moldura adequada, uma moldura mesmo de primorosa talha florentina, que é a casa em que nos achamos, as melhores condições morais para o seu desenvolvimento, a saber, tradições que recomendavam qualquer ensaio novo de propaganda intelectual e um admirável quadro de professores recrutados entre os membros da Companhia.

Os cursos, realizados ainda sem programa de conjunto pelos nossos consócios Alberto Rangel, Basílio de Magalhães, Aurelino Leal, Viveiros de Castro, Pinto da Rocha, Ramalho Ortigão e Araújo Viana — não sei se esqueço algum —, atestaram que o êxito correspondia plenamente à iniciativa, e indicaram que valia a pena experimentar chegar a alguma coisa definitiva. Daí a fundação atual, em que o senso prático dos seus organizadores se revelou no núcleo permanente que deram à Academia sob a forma de uma Escola livre de ciências políticas e administrativas, com o qual sonhava brindar nosso meio pedagógico o nosso inteligentíssimo compatriota Sr. Carlos Delgado de Carvalho, discípulo de estabelecimento análogo de Paris e espírito apaixonado pelo que os americanos denominam e tanto tratam de cultivar em suas Universidades — the original research, a pesquisa original e individual. Eu não fiz mais do que transmitir ao Sr. Max Fleiuss o esboço, que o Sr. Delgado de Carvalho já tinha elaborado.

A Academia de Altos Estudos é presentemente e essencialmente um curso de especialização, mas pode até vir a ser um núcleo universitário, se a ela se juntarem Faculdades hoje esparsas e Faculdades projetadas, como essa de Letras e de Filosofia, cuja iniciativa cabe ao Sr. Araújo Viana e que é realmente uma instituição que nos falta, que falta à nossa formação espiritual. As Humanidades vão-se eclipsando numa terra onde elas já receberam o mais honroso cultivo. Contam-se hoje os latinistas; helenista não sei que haja outro além do nosso orador perpétuo, e os puristas do vernáculo parece que se debandaram espavoridos diante dos repetidos e cruéis atentados contra a Gramática.

O programa ideado para a referida Faculdade, e que se acha publicado é excelente, é o melhor possível para restituir ao estudo da língua, das letras e da filosofia, isto é, do modo peculiar da expressão, desta expressão intelectual em si e nas suas relações com a expressão universal, a sua anterior dignidade. Na Universidade de Harvard, onde acabo de lecionar durante um semestre acadêmico, fundou-se recentemente e opera um comité só para fiscalizar o uso da língua inglesa entre os estudantes, quero dizer para corrigir e aperfeiçoar entre eles a expressão literária, considerando a imperfeição neste particular um motivo de séria desvantagem.

Um comité deste gênero, que se criasse entre nós, teria infelizmente as mãos cheias: não as teve aliás vazias o comité de Harvard, pois que examinou o caso de cada estudante, cuja redação foi apontada como menos-satisfatória, tratando de descobrir a causa dos seus erros ou dificuldades. Pôde assim verificar que a razão se achava por vezes na precipitação do trabalho, outras vezes em negligência, outras ainda em atrapalhação determinada pela variedade dos assuntos sobre que dissertar com insuficiente preparo, outras, finalmente, em pura ignorância reveladora de deficiente educação secundária. Convém notar que o inglês, que em Harvard se reputa desejável praticar, é o inglês castiço, o inglês de Oxford. O Americano é o slang que ainda não possui foros universitários, como os que está em risco de ter o nosso "brasileiro".

A natureza da Academia de Altos Estudos é tão flexível que facilmente se adapta ao citado como a outros fins de ensino. Nada há de rígido no seu arcabouço, nem de emperrado nas suas molas. Seu fito capital, seu lema exclusivo, é preparar, mas preparar deveras, o que quer dizer que é uma escola que não poderia ter vinculo no último quatriênio. Na sua modalidade atual ela é uma escola técnica para diplomatas e funcionários administrativos: ambas as classes bem carecem no Brasil de uma educação mais regular e mais completa do que aquela de que presentemente dispõem para na competência.

Conheceis minha opinião sobre a Diplomacia, melhor dito, sobre nossa organização diplomática, e talvez esse fosse o motivo pelo qual, na distribuição das cadeiras, me atribuístes a que a tem por objetivo. Haveria quiçá de vossa parte uma intenção irônica no quererdes pôr à prova a minha sinceridade, pois que nunca me arreceei de criticar aquela organização quando mesmo fazia parte do quadro diplomático, num afã tão problemático que a minha ina-tividade me parece hoje mais operosa do que a minha atividade de então, a qual entretanto costumava ser apontada como extraordinária.

Precisamos de poucos diplomatas, mas que estes poucos sejam bons, que conheçam os _ precedentes da nossa vida internacional, a qual, segundo apregoavam em contrário os louvaminheiros de ontem, não data do Barão do Rio Branco, por mais relevantes e fecundos que tenham sido seus serviços à nação, contando-se antes dele outros muitos, como Alexandre de Gusmão, Palmella, Brito, Araújo Ribeiro, Uruguai, Joaquim Caetano da Silva, Cotegipe, Ponte Ribeiro, que tornaram possíveis seus sucessos. Graças a quatro séculos de penetração quase contínua c de outros tantos séculos de negociações ocasionais, o sucessor do Barão do Rio Branco, seu sucessor no Itamarati e na Academia de Letras senão no realce histórico, o estadista que introduziu no Brasil a política de engenharia, já achou feita a diplomacia de engenharia, cuja obra ingente consistiu na fixação dos dilatados e complicados limites do país.

Curso complementar ou curso único, a Academia de Altos Estudos oferece sobretudo aos que a freqüentam um terreno de ação útil. A particularização é realmente uma necessidade da inteligência contemporânea, que a filosofia do século XVIII habituara às generalizações, e o fito do instituto em boa hora montado pela destemida capacidade construtora do Sr. Max Fleiuss, patrocinada pela mentalidade compreensiva do nosso digníssimo presidente, foi definida com justeza pelo nosso provecto colega Sr. Dr. Amaro Cavalcânti no seu discurso inaugural, — "alargar, aperfeiçoar ou ainda melhor adaptar a instrução recebida nas Faculdades e escolas existentes aos fins diversos da vida comum ou social".

Não concebo instituição pedagogicamente mais generosa do que a que visa semelhante propósito. Dentro dela cabem todas as iniciativas, tanto assim que aprovastes logo a do nosso consócio Sr. Deb-bané para inclusão de uma cadeira de Comércio exterior e Política comercial, base dos estudos das relações comerciais, tão descurados num país que vive do tráfico mercantil, numa época em que se está despovoando o mundo, em que milhões de entes humanos estão sendo sacrificados pelo primado do tráfico mercantil. Não direi que nossa literatura econômica assim vai receber seu início, porque contamos no nosso passado economistas como o Bispo Azevedo Coutinho, José da Silva Lisboa e Cândido Batista de Oliveira, mas prosseguiremos mediante tal consagração pedagógica numa tradição perfeitamente de acordo com a orientação sociológica de momento.

Na minha aula de Harvard, entre os meus 56 alunos, eu tive estudantes de todos os anos acima do primeiro, mesmo graduales, e, se quase todas deram tão boa cópia de si que chegaram a surpreender-me não poucos dos seus exames e sobretudo muitas das suas teses, é porque os atraía ali um poderoso interesse pessoal. Nestas condições aprende-se forçosamente. Destinavam-se alguns daqueles moços à Diplomacia e pretendem exercê-la na América Latina, sobre o qual o orgulho americano folga de sonhar com o pavilhão estrelado desfraldado, segura a haste pelas garras aduncas da águia possante e não menos cobiçosa de presas que a águia germânica, a águia moscovita, a águia austríaca ou a águia napoleónica: especializando-se no conhecimento dos países de atual ou futuro protetorado — o Professor Hart, um dos mais conceituados de Harvard, já marcou o prazo de cinco anos para o estabelecimento do protetorado sobre o México —, eles intentam facilitar sua tarefa patriótica, porque em cada imperialismo floresce um patriotismo.

Outros dos meus estudantes queriam simplesmente aproveitar-se da oportunidade oferecida pela guerra a uma maior expansão econômica dos Estados Unidos no continente irmão, para entrarem em negócios — não fazem mal os dólares aos doutores —, e entendiam ser-lhes útil familiarizarem-se com a história política e econômica destas repúblicas turbulentas e lucrativas. Alguns ainda pensavam vir exercer o magistério entre as sociedades latino-americanas, ensiná-las a terem senso prático e civismo, que são as falhas que lhes acham, no que lhes assistirá razão, porquanto, com exceção do Chile, não se têm nossas nacionalidades engrandecido pela conquista, e o seu nacionalismo tende mesmo fortemente a diluir-se num cosmopolitismo ou, pelo menos, num estrangeirismo sentimental, de que os especuladores se servem com habilidade para darem vasão à sua mercadoria de rótulo idealista, embora de natureza comercial.

Os que procuram a Academia de Altos Estudos não a procuram por desfastio ou pela simples ambição de um diploma, que os há mais à mão. Esta será a superioridade dela. Procuram-na porque querem aprender o mais possível de uma determinada matéria, porque querem realmente saber. Isto soa quase como uma novidade, onde floresciam os diplomas universitários a 60$, com dispensa de exames. Entretanto, se alguma coisa somos, se de alguma coisa valemos no conceito alheio, é porque nos dedicamos pelo menos ao ramo do Direito. Já no começo do século XVII nos tachavam de chicanistas os Diálogos das Grandezas: da chicana proveio a Jurisprudência, como do empirismo se desenvolve a ciência.

Pelo Direito pudemos firmar nossa Independência e por êle temos podido afirmar nossa valia internacional. Pelo Direito repetimos humilhações estrangeiras como as que nos acarretou o tráfico negreiro: pelo Direito reivindicamos territórios nossos, recusando altivamente a arbitragem como no caso da Trindade, habilmente a aceitando como nos casos das Missões e do Amapá; pelo Direito finalmente Rui Barbosa fêz sentir na Haia que as nações são verdadeiramente iguais em soberania, quando esta soberania repousa sobre a sua consciência jurídica.

Agora mesmo, nesta confusão moral, neste delírio de ilegalidade em que anda o mundo por excelência civilizado, o Direito salvou-nos dc cometermos um atentado dos mais graves. Quiseram agitadores destemperados forçar-nos a praticar uma espoliação, apoderando-nos, em estado de paz, de navios de comércio refugiados nos nossos portos, assim traindo as próprias leis da hospitalidade, como os piratas, que saqueavam as naus arribadas às suas costas…

Foi um espetáculo consolador o que nos deram dezenas de juristas, protestando sem paixão, apenas à luz do Direito das gentes, contra esse crime. Se os governos mais cultos estão diariamente imolando o código, que era a suprema aspiração humana ver triunfar nas relações entre os povos, não é razão para que nós façamos outro tanto, sem o pretexto sequer da luta desapiedada. A honra da América, sobretudo da América Latina, será nesta emergência o ter evitado a guerra, praticando a neutralidade, e respeitando o Direito.

 

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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