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KOROLENKO –(1853 — 1921)
VLADIMIR GALAKTIÕNOVITCH KOROLENKO nasceu
na Ucrânia em 1858. Filho de um juiz com uma grande dama pertencente à
nobreza polaca. Morto o pai muito cedo, Korolenlco improvisou-se
professor para sustentar a família. Estudou depois no Instituto
Tecnológico de São Petersburgo, mais tarde em Moscou, sempre vencendo
grandes dificuldades de vida, acontecendo ser exilado para Kronstad por
ter-se metido em politica. Trabalhou na imprensa como revisor de provas.
Preso e deportado, novamente, em 1879 seguiu para a Sibéria. Nessa
região escreveu várias de suas novelas, que lhe deram notoriedade na
sita volta ao mundo civilizado. Em 1885, tendo voltado à Rússia, foi
obrigado a residir em Nijni-Novgoroã. Foi amigo de Gorki.Dentre as suas melhores produções
contam-se: “O músico cego”, “O sonho de Makar”, “Os murmúrios da selva”,
geralmente conhecidos entre nós. “História de um contemporâneo meu” é
autobiográfico.Korolenko morreu em Poltava em 1921.
UMA RAPARIGA ESTRANHA – Conto de Korolenko
— O pouso está
perto, cocheiro?
— Ainda não
chegamos lá, e não chegaremos antes da tempestade.
Sim, certamente não chegaremos antes da
tempestade. O frio é cada vez mais intenso, ouve-se o crepitar da neve
sob o trenó. 0 vento muge, os ramos de pinheiro arremessam-se através da
estreita vereda da floresta, e agitam-se arrepiadoramênte dentro da
escuridão. Faz frio, e estamos mal acomodados; o trenó é pequeno, temos
as costas comprimidas, mortificadas pelos chapéus e os revólveres de
nossos companheiros. As sinetas tilintam uma canção monótona, à medida
que a tormenta se avoluma. Felizmente, eis aqui o lume solitário do
pouso, à margem da floresta agitada.
Meus companheiros sacodem a neve com forte ruído,
pois trazem sobre si um verdadeiro arsenal.
A isbá é muito aquecida, sombria, enfumaçada.
Nela se vê uma mulher que conduz uma lutchina (]),
donde se desprende espessa fumaça.
— Nesta casa há
alguma coisa que se coma, minha senhora?
— Não, aqui não
há nada.
— Nenhum peixe ?
O rio não é longe daqui.. .
— Havia peixe,
mas a lontra comeu tudo.
— E batatas?
— A batata,
agora, está gelada.
Não havia jeito. A mulher nos deu pão; com grande
espanto de nossa parte, encontrou-se um samovar. Aque-cemo-nos com chá e
comemos pão. A dona da isbá trouxe-nos cebolas. Entretanto, a
tempestade atirava pela janela uma neve fina; por vezes, a chama da lutchina
vacilava, agitada ao sopro do vento.
— Os senhores não
podem partir; fiquem aqui durante esta noite.
— Está certo,
ficamos; quanto ao senhor, nada deve apressá-lo. Está vendo como é esta
região; lá para diante ainda será pior, pode acreditar.
Na isbá, tudo se calara; a dona da casa tinha
deixado de mão o seu fuso e estava adormecida. Com pouco, só reinavam as
trevas e um silêncio interrompido apenas por súbitas rajadas. Eu não
dormia, e em meu espírito despertavam e logo se desvaneciam, um após
outro, em bando, tristes pensamentos.
— Não dorme,
senhor? — perguntou-me um dos
companheiros.
Era o chefe, homem simpático, de fisionomia
agradável e até bastante inteligente. Muito ativo, conhecia bem o seu
ofício, mas nem por isso fazia exibição de autoridade: em viagem,
desprezava as formalidades inúteis.
(1) Varinha de madeira resinosa, que serve
de archote.
— Não, não durmo —
respondi.
Escoaram-se alguns instantes em silêncio; mas
percebi que meu vizinho também não dormia. Outro companheiro, um jovem,
um “ajudante”, dormia um sono de homem robusto muito fatigado,
murmurando, às vezes, palavras ininteligíveis.
— Não se espante —
disse-me o suboficial, em voz grave. — Vocês são jovens, pessoas
nobres, instruídas, pode-se dizer, e que vida levam?
— Como?
— Oh! será que
não compreendemos? Compreendemos que vocês não foram feitos para
semelhante vida, que não estão acostumados a ela desde a infância…
— Esta é boa! Que
importam os hábitos de infância? É tempo de mudar de hábitos…
— Então, está
satisfeito?…
— Para dizer a
verdade, não… mas o senhor — está satisfeito?
— Êle não deu
resposta. Graviloff (chamemos assim ao nosso interlocutor) pensava,
evidentemente, em alguma coisa.
— Não, senhor,
como direi?… creia-me, acontece… parece-me que não posso fitar o
céu. Por quê isso? Não sei, mas de vez em quando sinto como um peso em
cima do peito, como que uma faca a entrar-me no coração.
— Será que o seu
serviço é pesado?
— Oh! se fosse
apenas o serviço! mas há alguma coisa mais.
— Que é, então?
— Quem sabe ?…
— Calou-se
novamente.
— Agora, eu me
habituei um pouco, e os chefes me recompensam. Sou suboficial; breve
darei baixa e voltarei para casa.
— Mas que tem
você, afinal?
— Pois bem, vá
lá, senhor. Vou-lhe contar o meu caso. Entrei de serviço em 1874, vindo
direto da minha terra para o regimento. Servi muito bem, e até com zelo,
posso dizer, principalmente no serviço de ordem: na multidão, no
teatro, compreende? Sabia ler e escrever perfeitamente, e os chefes não me esqueciam.
O major era meu compatriota. Vendo o meu zelo, mandou-me chamar a sua
casa e disse-me: — “Graviloff, vou apresentar-te para seres nomeado
suboficial; já fizeste parte de alguma escolta?” — “Não, senhor major.” —
“Pois da próxima vez eu te mandarei como ajudante; tu te habituarás,
não é difícil.” — “Estou às suas ordens, senhor major.” Eu ia, então,
fazer uma longa viagem! Depois de uma semana, mais ou menos, o homem de
serviço chamou-me, e ao mesmo tempo a um suboficial, a casa de meu
chefe. Fomos até lá. — “Vão partir, vocês dois, em missão; esse homem
será o seu guia” — disse o chefe ao suboficial. — “Êle nunca exerceu
esta função. Vamos, não desanimem! Preparem-se ,bem, como rapazes
valentes. Vocês têm de conduzir juma senhorita que está presa. Estão
dadas as instriíções; amanhã receberão dinheiro, e Deus os proteja!”
Ivanoff, o suboficial, partiu, pois, como chefe, e eu era seu ajudante,
do mesmo modo que o outro gendarme é agora o meu. O chefe é quem
recebe as instruções, o dinheiro, os papéis necessários, quem assina e
faz as contas; o soldado que lhe dão por ajudante faz diligências, cuida
dos gêneros, anda para um lado e para outro… Bem. No dia seguinte,
muito cedo, partimos da residência do chefe. Ivanoff já achara jeito de
beber. No dizer-lhe que era, positivamente, um homem mal escolhido
para aquela tarefa; depois, foi demitido. Sob o olhar dos chefes,
conduzia como convém a um suboficial, e muitas vezes ia ao ponto de
denunciar os outros; mas, logo que os chefes se ausentavam, êle se
desmandava — e, sobretudo, era muito dado à bebida.
Dirigimo-nos à fortaleza. Chegando lá, segundo a
regra, entregamos os papéis e esperamos. Eu estava muito curioso de
saber que senhorita era essa que nós teríamos de escoltar, e escoltar
para longe, de acordo com a guia. Percorremos com o senhor o mesmo
caminho, mas o destino dela não era uma aldeia, porém a cidade.
Estivemos à espera cerca de uma hora.
Trouxeram-na, afinal. Surgiu-me diante dos olhos
uma rapariga muito jovem, que me pareceu quase uma criança. Tinha
cabelos louros, em tranças, faces coradas. Mais tarde, porém, em caminho, eu a vi
pálida, lívida, e tive tanta pena, tanta pena, que não lhe posso dizer.
Mandaram revistá-la, era o regulamento; de acordo com as instruções,
éramos obrigados a revistá-la. — “Quanto tem em dinheiro?” —
indagamos-lhe. Encontrou-se um rublo e vinte copeques, que o “mais
velho” lhe tomou. — “Sou obrigado a revistá-la, senhorita” — disse-lhe
êle. Como ela corou! Os olhos se avermelharam, os lábios pequenos
adquiriram uma expressão má. Como nos fitou! Creia-me, eu não ousava
aproximar-me da moça. O “mais velho”, porém, já um tanto bêbedo,
adiantou-se em direção a ela. — “Sou obrigado — repetiu. — São ordens.”
Então ela se pôs a gritar, e o próprio Ivanoff afastou-se. A moça
esperneou, falou, muito depressa, e confesso que não compreendi bem o
que ela dizia. Por sua vez, o diretor da prisão também estava espantado;
trouxe-lhe um copo de água: — “Acalme-se; tenha pena de si mesma!” Ela
precipitou-se sobre o homem, a gritar: — “Bárbaros! vocês são escravos!”
E acrescentou algumas outras palavras audaciosas. O senhor pense o que
quiser, mas isso com um chefe não estava direito. Enfim, nós não a
revistamos; o diretor a conduziu a outro quarto, com a guarda, e pouco
tardou que eles saíssem de lá. — “Ela não tem nada” — declarou êle. A
jovem não o fitava; havia no seu rosto um ar de ironia e nos olhos muita
maldade. Ivanoff olhava e repetia sempre a mesma coisa: — “Isto não é
legal; eu tenho ordem…” O diretor não lhe dava, porém, nenhuma
atenção.
Partimos. Durante a travessia da cidade, ela
pôs-se a olhar por uma das portinholas do carro, como se quisesse rever
amigos ou dizer-lhes adeus. Ivanoff cerrou a vidraça e desceu a cortina.
Então, a moça refugiou-se a um canto e nos fixou. Confesso que, nesse
momento, ergui uma cortina como se fosse para eu próprio olhar, mas na
realidade para que ela pudesse ver. Porém a rapariga-manteve-se em seu
canto, mordendo os lábios. Tive a impressão de que os morderia até
deitarem sangue. Passamo-nos para um trem. Ela abriu a vidraça do
compartimento, debruçou-se para fora, e assim permaneceu. Segundo as
instruções,não se devem abrir as vidraças, mas Ivanoff
começara a roncar e não ousava dizer-lhe nada. Passado um momento,
cobrei ânimo e falei-lhe: — ” Senhorita, feche a janela.” Ela não
respondeu nada, como se eu nada lhe houvesse dito. Alguns instantes
depois, insisti: “A senhorita vai-se resfriar; está muito frio.” A moça
volveu o rosto para mim, com um ar de espanto; depois de me haver
encarado, pediu docemente: — “Deixe!” — voltou à
portinhola. Fiz um gesto com a mão, e retirei-me para um lado. Ela se
tornara mais calma; cerrou a vidraça e cobriu-se com seu agasalho, para
se aquecer, sem dúvida, pois fazia muito frio; depois tornou à
portinhola, e de novo ficou exposta ao vento. Voltava-lhe a alegria, ela
até principiava a sorrir, e então era de tal modo agradável
contemplá-la que, se a autoridade me permitisse, eu teria casado com ela
para evitar-lhe a deportação.
Deixando a estrada de ferro, tivemos de viajar
de troika. Ivanoff estava bêbedo como uma cabra; só despertava
para beber, e depois adormecia. Desceu do vagão aos tombos. Caiu na
mala-posta, estirou-se e, sem demora, pegou a roncar. A jovem sentara-se
ao lado dele, não muito comodamente, e tomou precauções para não
tocá-lo. Eu, por minha vez, coloquei-me ao lado do cocheiro. Quando
partimos, começava a soprar um vento frio, e eu próprio estava gelado.
Observei-a: tiritava, tossia muito, e num lenço que trazia aos lábios
percebi manchas de sangue. Pode estar certo: foi como se eu recebesse
uma punhalada no coração. — “Ah! senhorita — exclamei — é possível? está
doente! E com que tempo a senhorita partiu! Faz tanto frio! Não, é
impossível!” Lànçou-me um olhar cheio de irritação:
— “Que tem o
senhor com isso? É idiota? Acaso não compreende que não estou aqui por
minha vontade? Esta é boa: é êle próprio que me conduz, e ainda se mete a
me lastimar!” Respondi-lhe: — “Devia ter prevenido o chefe e baixar ao
hospital, em vez de viajar com semelhante frio. Ainda resta um longo
trecho a percorrer.” — “Para onde é que eu vou?” — perguntou ela. Ora, é
expressamente proibido dizermos aos criminosos o lugar aonde os
conduzimos. Ela notou que eu estava atrapalhado, e voltou-se. — “O senhor não
pode falar — disse depois. — Está certo, não fale; mas se não pode, para
que começa?” Eu estava que não podia conter-me: — “Eis ali o lugar
aonde a senhorita tem de ir. Não é muito perto.” Ela ficou amuada,
franziu o sobrecenho e calou-se. Eu balancei a cabeça: — “É ali,
senhorita; a senhorita é jovem e não sabe o que isto significa.” Ela
fitou-me e declarou: — “Engana-se; sei muito bem o que é. Mas eu não
irei ao hospital. Obrigada. Antes quero morrer livre do que num hospital
de prisão. O senhor pensa que eu adoeci por causa do vento, de um
resfriado… Oh, não.” — “Tem parentes na cidade?” Eu fazia esta
pergunta porque ela me havia dito que queria tratar-se entre os
seus. “Não — disse a jovem. — Lá eu não tenho parentes, nem
conhecidos; a cidade me é inteiramente estranha. Mas é provável que lá
se encontrem deportados como eu, camaradas.” Eu estava surpreendido de
ouvi-la chamar estranhos aos seus, e dizia comigo: “Assim sem
dinheiro e sem relações, quem a sustentará?” Mas não lhe fiz tal
pergunta.
Pela tardinha, as nuvens se amontoaram, e
principiou a chover. Até então, a lama não tinha sido muito seca,. mas
depois da chuva a estrada parecia feita de gelatina. Eu tinha as costas
cobertas de lama, e a moça também. Em resumo, para ela o tempo era tão
mau quanto possível. Se bem que o trenó estivesse coberto, o vento
fustigava-nos o rosto. Estendi sobre ela uma esteira; mas esta era
insuficiente para abrigá-la; a água corria de todos os lados.
Observei-a: todo o corpo lhe tremia; a chuva deslizava-lhe sobre o
rosto; tinha os olhos fechados, e as faces tão pálidas que se diria
haver sido acometida de uma síncope. Senti medo. Vi que ela estava
doente.
Chegamos ao anoitecer, muito tarde, à cidade de
Sa … Despertei Ivanoff. Dirigimo-nos ao pouso, onde mandei preparar um
samovar. Daquela cidade partiam botes, mas, conforme as nossas
instruções, era-nos absolutamente proibido viajar de bote, embora a
maior vantagem dessa proibição estivesse nas economias a que dava lugar.
Seria perigoso a gente desrespeitar o regulamento: no porto há sempre muitos policiais e
guardas que nos poderiam denunciar. Mas a jovem nos disse:
— “Não
continuarei a viajar de carruagem; arranjem-se como puderem, mas
levem-me no bote.” Ivanoff, ainda bastante embriagado, mal conseguindo
abrir os olhos, indignou-se: — “Nada de imposições; a senhorita irá
aonde a conduzirem!” Ela não lhe deu resposta e, dirigindo-se a mim: —
“Ouviu o que eu disse? Não partirei.” Chamei Ivanoff à parte, e
observei-lhe: — “Deve levá-la no bote; será melhor para o senhor: fará
economia.” Êle estava inclinado a concordar, mas sentia-se receoso: —
“Há aqui um coronel, e talvez venhamos a ter aborrecimentos. Vá
pedir-lhe autorização; eu estou doente.” O coronel não morava muito
longe. — “Vamos juntos — disse eu — e levemos conosco a senhorita.” E lá
fomos nós à casa do oficial. — “Que desejam?” — perguntou êle,
encaminhando-se em nossa direção. Ela respondeu, mas não de modo amável.
Deveria ter suplicado: — “Conceda-me a graça… rogo-lhe…”; mas as
suas palavras foram bem diversas: — “Com que direito, etc.” e outras
igualmente audaciosas. O coronel escutou-a e respondeu, manso: — “Nada
posso fazer, absolutamente nada; de acordo com a lei, é impossível.”
Olhei para a moça: ela enrubescera, tinha os olhos ardentes como brasas.
— “A lei!” — exclamou. E pôs-se a rir com maldade. — “Sim — insistiu o
oficial a lei!” Confesso que me distraí um pouco, e intervim: — “É
verdade, meu coronel, a lei; mas, meu coronel, ela está muito doente.”
Êle nos encarou com severidade; pergun-gou-me: — “Como te chamas? A
senhorita, se está doente, baixe ao hospital da prisão.” Ela voltou as
costas e saiu sem dizer uma palavra. Nós a seguimos. Ela não queria ir
ao hospital — e no meio de estranhos e sem dinheiro, como iria ser?
Seria positivamente muito duro. Mas que fazer? Ivanoff dirigiu-se a mim:
— “Agora, que vai acontecer? Sem dúvida, por tua causa, idiota,
ficaremos os dois como responsáveis.” Mandou atrelar os cavalos, e nem
quis esperar para o dia seguinte. Aproximamo-nos dela: — “Quando quiser,
senhorita; os cavalos estão atrelados.” Ela ergueu-se de um salto,
endireitou-se e olhou-nos bem de frente — um olhar terrível: — “Vocês são uns covardes!” E
acrescentou algumas palavras incompreensíveis — em russo, é verdade, mas
não podíamos compreendê-las; apenas víamos que ela estava furiosa. —
“Bem; agora — à vontade dos senhores; podem me torturar; façam tudo o
que quiserem: eu parto!” O samovar estava na mesa, ela ainda não o
tomara. Eu e Ivanoff tínhamos feito nosso chá; servi-a de chá; tínhamos
pão branco: servi-a de pão. — “Coma antes de partir — disse-lhe eu. —
Isto a aquecerá um pouco.” Ela estava calçando as galochas; voltou-se
para mim, fitou-me com espanto, e disse levantando os ombros: — “Que
espécie de homem é esse? O senhor parece que enlouqueceu. Então eu vou
beber do seu chá? Imagine como isso me feria! Ainda agora, quando me
lembro da cena, sinto o coração bater. A moça mandou trazer a outra mesa
outro samovar e pagou pelo chá três vezes mais do que nós. Que criatura
estranha!”
Calou-se o narrador e, por algum tempo, a isbá
voltou ao silêncio.
— Você não dorme!
— disse eu a Graviloff. — Não.
— Continue, se
quiser: eu o escuto.
— … Sofri muito
por causa dela — prosseguiu. — Durante a viagem, choveu a noite
inteira; o tempo era horrível; a floresta gemia. Eu não via a jovem. Mas
creia que ela estava diante dos meus olhos, e de tal modo que ainda a
vejo incessantemente; noite e dia, vejo-lhe os olhos, o semblante,
pálido e mau. Estava inteiramente gelada, e tinha o olhar voltado para o
espaço, seguindo o rumo dos pensamentos que se agitavam em seu
espírito. Deixando o pouso, procurei cobri-la com o tulupe: (2)
— “Tome; ficará mais aquecida.” Ela o recusou: — “O tulupe é
seu; o senhor é quem deve usá-lo.” Era realmente meu; mas eu adivinhei o
pensamento dela, e disse-lhe: —”Não, este não é o meu; há um tulupe para
a senhorita — é a lei.” Então ela se envolveu com êle. Ao amanhecer,
fitei-a: irreconhecível.
(2) Manto de pele de carneiro, usado pelos
camponeses russos.
Ao deixarmos a última estação, ela mandou que
Ivanoff sentasse perto do cocheiro. Êle resmungou, mas obedeceu; estava
um pouco menos bêbedo.
Sentei-me perto dela. Fazia três dias que
marchávamos sem nos deter em parte alguma; pois, antes de tudo, está
determinado nas instruções não se parar nem mesmo para dormir
e, em caso de grandes fadigas, parar somente nas cidades onde há
guardas. Mas o senhor bem sabe como são essas cidades! Depois, ela mesma
nos apressava, queria chegar o mais rapidamente possível.
Enfim, chegamos. Ao avistar a cidade,
experimentamos a sensação de que uma montanha caía de nossos ombros. A
jovem estava extenuada; quando se passava numa depressão, a cabeça
batia-lhe no teto do carro. Procurei ampará-la com o braço direito; a
princípio ela me repeliu: — “Para trás! não me toque!” Depois, calou-se:
teria desmaiado? Tinha os olhos cerrados, as pálpebras feridas; a
fisionomia estava mais serena, e ela, por vezes, até sorria.
Perto da cidade, despertou e levantou-se.
Fôra-se o mau tempo, o sol brilhava; ela própria estava mais alegre. Da
sede do distrito, mandaram-na para mais longe, e tivemos de conduzi-la,
pois os guardas estavam muito ocupados. Embora sofresse muito, ela
prosseguiu sorridente. No momento de pôr-se a caminho, um grupo de
pessoas veio ao posto: eram moças, estudantes deportados, e todos lhe
falavam como se fala a uma pessoa amiga. Apertavam-lhe a mão,
traziam-lhe dinheiro; deram-lhe um grande chalé. E todos a acompanharam.
Partiu alegre, mas tossia de vez em quando. Chegamos enfim à cidade do
distrito onde ela devia ficar, e lá a deixamos mediante recibo. Logo ela
perguntou: — “Fulano está aqui?” — “Sim” — responderam-lhe. Chegou o
chefe de polícia. — “Onde vai ficar?” — perguntou à jovem. — “Não sei;
mas, por enquanto, irei à casa do Sr. Riazanoff.” A autoridade balançou
apro-vativamente a cabeça, e a moça partiu sem nos dizer adeus.
— O quê! Você
não tornou mais a vê-la?
— Tornei a vê-la,
infelizmente. Há pouco tempo, aliás. Ao voltarmos daquela viagem,
mandaram-nos de novo na mesma direção. Escoltávamos um estudante,
dessa vez. Era muito alegre, cantava cançõesi e só pensava em beber. Ia
para mais longe, ainda, que a nossa prisioneira. Passamos pela cidade
onde a tínhamos deixado, e desejei saber o que era feito dela. Procurei
informar-me. Disseram-me que a moça era muito estranha: — “Mal chegou,
partiu diretamente para casa de um deportado e, desde então, ninguém
mais a viu; está morando lá… ” Uns diziam que ela estava doente;
outros, que vivia em casa do deportado como sua amante. É sempre assim:
todos tagarelam, e ninguém sabe de nada. Mas eu sei como ela vivia com
êle! Lembrei-me de tê-la ouvido dizer: — “Gostaria de morrer “entre os
meus” — e a curiosidade … — alguma coisa mais do que isso — me
arrastava para ela. “Vamos vê-la” — disse com os meus botões.”
Indicaram-me o caminho, e eu fui. A jovem morava
no outro extremo da cidade, numa casa pequenina, com uma porta baixa.
Quando entrei, estava sentada na cama e coberta com uma manta, com os
pés escondidos sob o corpo. Cosia, e o deportado, sentado num banco, lia
para ela ouvir. Vendo-me entrar, ergueu-se e apertou a mão do
companheiro. Parecia aterrorizada: os olhos estavam enormes, sombrios,
terríveis. Era sempre a mesma, mas afigurou-se-me ainda mais pálida.
Estreitava fortemente a mão do outro. Êle ficou surpreso, inclinou-se
para ela. — “Que tem você? Acalme-se” — repetia, sem me ver. Então ela
soltou-lhe a mão e quis levantar-se do leito: — “Adeus. Evidentemente,
êle não me quer deixar morrer em paz. Adeus!” A estas palavras o
deportado voltou-se e me viu. Levantou-se — e acreditei que ia matar-me.
Compreende? eles pensavam que eu vinha buscá-la outra vez. Mas quando
êle me viu mais morto do que vivo e muito assustado, virou-se para ela,
tomou-lhe a mão e disse-lhe a rir: — “Tranqüilize-se.” E logo em seguida
me perguntou: — “Mas que vem o senhor fazer aqui?”
Eu estava deveras aborrecido por lhes ter
causado medo. Disse que viera vê-la; ela reconheceu-me, e notei que se
ia zangar, como de costume. Eu estava disposto a servi-la de toda a
minha alma — e ela me olhava como uma víbora perigosa. O homem compreendeu, afinal,
de que se tratava, e sorriu. Começou a dizer-lhe alguma coisa, mas eu
não podia compreender tudo; os senhores falam, entre si, de um modo
esquisito. O deportado falou-lhe tranqüilamente, com doçura; ela
respondeu mal. Êle procurou explicar-lhe: — “Compreenda, não foi o
soldado que veio à sua casa; foi o homem.” E ela: — “Para que serve êle,
então?” “Oh! meu Deus!— pensei — pois
eu para ela não sou um homem?” Como isso me era humilhante! — “Perdão —
disse eu — de a ter
assustado.” — “Não é nada — declarou o outro. — Isto não é o mais
grave.” Eu me sentia mal, e despedi-me deles. A jovem não respondeu; o
deportado voltou-se e, estendendo-me a mão, perguntou-me se íamos longe.
— “Quando estiver de volta, passe aqui, se quiser.” Ela fitou-o e
pôs-se a rir: — “Eu não entendo você.” Ao que êle replicou: — “Entenderá
mais tarde: você não tem mau coração.”
Quando retornei à cidade, o chefe chamou o “mais
velho” e disse-lhe: — “Deve ficar aqui até segunda ordem; recebi um
telegrama e é preciso esperar um papel que chegará pelo correio”.
Ficamos. E eu fui novamente a casa deles. Entrei. A proprietária
advertiu-me: — “Ela está passando mal, muito mal. Queira Deus que ela
não morra! Tenho receio de vir a ser importunada, pois eles não querem
chamar o padre.” Enquanto conversávamos, o deportado entrou e, depois de
me saudar, disse: — “Estás de volta! Oh! entra, se te apraz.” Entrei
vagarosamente; êle me seguiu. Eia fitou-me e exclamou: — “Ainda este
homem! Foi você quem o chamou?” — “Não — afirmou o deportado. — Êle veio
espontaneamente.” Eu não podia mais conter-me, e disse-lhe: —
“Senhorita, por que está zangada, como se eu fosse seu inimigo?” — “Sim,
o senhor é um inimigo, um inimigo — respondeu-me. — Não sabe que o é?” A
voz era doce, fraca; tinha as faces vermelhas e a fisionomia tão
agradável que me deu a impressão de que a gente nunca se cansaria de
fitá-la. Vi que ela já não era deste mundo, e quis pedir-lhe perdão.
Temia que ela morresse sem me perdoar. — “Perdôe-me se lhe fiz algum mal.” Voltou-lhe a indignação: —
“Perdoar! Oh! não, nunca perdoarei; nem pense nisso. Nunca!”
Meu interlocutor fêz uma pausa. Parecia refletir,
tomar posse de si mesmo. Depois continuou:
— Aí está. O senhor é um homem instruído, deve
compreender. Vou dizer-lhe as palavras que eles pronunciaram quando se
puseram a falar mais baixo e mais tranqüilamente. Tenho-as de memória;
escutei-as bem. Êle dizia para a moça: — “O que importa não é o perdão; é
preciso ver no rapaz um ser humano. Perdoar-lhe, isto é outra coisa;
talvez êle mesmo não perdoasse, se pudesse compreender.” A seguir,
trocaram palavras inteiramente estranhas; olhavam-se sem dar a impressão
de estarem zangados — e pelo tom do diálogo pareciam brigar. Dizia o
deportado: — “Você é uma sectária.” — “E você — respondia a jovem — você
é um homem frio e indiferente.” Aqui, êle teve um sobressalto: —
“Indiferente! mas você própria sabe que isto não é verdade.” — “Como
você quiser. — retorquiu ela, e sorriu. — Mas você disse mesmo a
verdade?” — “Sim, sim, eu disse a verdade.” A moça refletiu e depois
estendeu-lhe a mão, que êle segurou. Ela encarou-o fixamente: — “Sim,
talvez você tenha razão.” De minha parte, eu estava como um imbecil.
Olhava-os; alguma coisa de doloroso me feria o
coração. Então ela voltou-se para mim, olhou-me sem cólera e me estendeu
a mão: — “Vou dizer-lhe o que sinto: não lhe perdoarei, está claro;
somos inimigos. Mas dou-lhe a mão e desejo que venha a ser um homem.
Estou fatigada.” Eu parti.
A rapariga morreu pouco depois. Não assisti ao
enterro dela: estava em casa do chefe de polícia. Mas no dia seguinte
voltei à residência do deportado. Aproximei-me dele: não era mais o
mesmo; mostrava-se duro, severo, e êle que dantes me fitava com um ar
amável, lançou-me um olhar feroz. Estendeu-me a mão, mas, subitamente
arrependido do gesto, não me deixou apertá-la, dando-me as costas: —
“Não posso ver-te por agora;sai daqui, meu caro, sai, pelo amor de Deus. Se
tiveres de permanecer ainda algum tempo na cidade, podes vir depois.”
Baixou a cabeça, e foi-se embora. Voltei para casa. Sentia-me tão triste
que, em todo esse dia, não pude engolir um bocado. No terceiro dia, o
chefe de polícia chamou-me: — “Você pode partir; o papel chegou, porém
tarde demais.” Realmente, nós deveríamos escoltá-la outra vez; mas Deus,
por piedade, a levara consigo…
… Mas isso ainda não é tudo. De regresso,
paramos em um pouso. Entramos na saía. Ali, sobre uma mesa, havia um
samovar e comidas; uma velha tomava chá. A velha era pequena, muito
asseada, muito alegre, e muito tagarela. Contava à dona da casa todos os
seus negócios: — “Olhe: arrumei os meus objetos, vendi a casa que tinha
recebido de herança, e parti ao encontro de minha pombinha.”
Senti como que um golpe no coração, e fui à
cozinha. —- “Quem é essa velha?” — perguntei à criada.
— “Pois é a mãe
da senhorita que o senhor escoltou tempos atrás.” Juro-lhe que estive
quase a cair. A mulher notou a minha perturbação e peguntou-me: — “Que
tens, militar?” — “Fale mais baixo — respondi-lhe.
— Essa moça
morreu.” Então a criada deixou cair os braços e saiu da isbá em pranto.
Tomei o chapéu e fui-me embora; mas, no quarto,
ouvi a velha a tagarelar ainda com a dona da casa. Pus-me diretamente a
caminho, e Ivanoff reuniu-se a mim, com o trenó, em que montei.
… Mas isso ainda não é tudo! Provavelmente o
chefe de polícia me denunciara aos meus chefes por eu ter ido a casa do
deportado; o coronel de Sa…’ me havia denunciado também por eu ter
intercedido em favor de uma deportada, se bem que meu chefe não quisesse
apresentar-me como um suboficial. Mas tudo me era tão indiferente! Nada
disso me preocupava. Eu não podia esquecer a irritável jovem. E ainda
agora, penso nela sem cessar, ela está sempre diante dos meus olhos.
Mas que significa tudo isso? Quem me explicará?
Não dorme, senhor?”
Eu não dormia. As trevas profundas da pequena
isbá perdida na floresta inquietavam-me a alma, e a triste imagem da
rapariga morta erguia-se ante o meu olhar, como que misturada aos
lúgubres gemidos da tormenta.
(Tradução de Aurélio Buarque de Hollanda).
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