O Papel da Utopia
Por Paulo Roberto Falcão de Araujo
falcaodearaujopr @ hotmail.com
Uma característica percebida dentro das sociedades plurais é
a constatação de que os diversos valores, norteadores da boa vida, encontram-se
em conflito – tanto interno quanto externamente. O conflito interno é o choque
dos valores dentro de um mesmo indivíduo, ou seja, os valores próprios de um
indivíduo entram em confronto, possibilitando situações de dilema moral ou de
escolhas difíceis. O conflito externo, comumente referido na literatura
filosófica como desacordo moral, tem merecido bastante atenção por parte de
importantes filósofos. Se o pluralismo de valores for verdadeiro, há, pelo
menos, três premissas que devemos acolher para lidar com o desacordo moral:
1) Existem, efetivamente, valores fundamentais, dos quais
as pessoas e os grupos estão pouco dispostos a abdicar;
2) O conflito é permanente. Tudo que se pode esperar,
realisticamente, de um acordo moral, é um equilíbrio precário. Faz-se
necessárias revisões e reformulações constantes, para que o acordo se acomode,
da melhor maneira possível, às exigências das partes antagônicas;
3) O desacordo moral mobiliza elementos – que se chocam
constantemente, jamais encontrando síntese – característicos da complexidade
humana: interesses pessoais, racionalidade, emoções, valores éticos, altruísmo,
egoísmo, segurança, temor, livre-arbítrio, autonomia etc.
Uma conseqüência das premissas acima é a impraticabilidade de
se atingir um acordo moral de ponta a ponta, ou seja, a harmonia celestial não
está ao alcance do humano. A esperança de que a humanidade alcançasse uma
harmonia perfeita esteve relacionada a ideais utópicos. Na literatura
filosófica, a obra clássica de Tomás Morus, A utopia, formulou algumas
das idéias que ilustram particularmente bem essa aspiração, como, por exemplo,
a de que o bem público, situado acima do privado, comensura todos os valores,
conformando as diretrizes de uma única concepção de bem. Para Morus “[a]qui
nada é privado, e o que conta é o bem público”.[1] O
indivíduo deve, desse modo, se esforçar em um exercício de impessoalidade,
colocar de lado os interesses particulares, em prol de um “bem maior”.[2] Necessária na busca de um acordo, a tentativa de se empreender esse esforço é
louvável. O problema surge quando, incorrendo-se no monismo de valores,
exige-se que os valores individuais sejam totalmente esmagados pelo
valor-trunfo estatal. O utopismo ruim é a defesa do monismo de valores.
O utopismo ruim desconsidera a multiplicidade de valores
fundamentais, em prol de uma uniformidade que, aparentemente, seria de mais
fácil controle. Tal utopismo não leva em conta, também, o conflito permanente,
com base na suposição, equivocada, de que se pode forçar vontades diferentes a
convergir, de um modo ou de outro, em opiniões e atitudes comuns. O utopismo
ruim resulta desumano, porque se mostra insensível à complexidade humana, a
qual, longe de ser lamentável sintoma de egoísmo, má-fé ou irracionalidade,
consiste em um traço demasiadamente humano, o qual torna a vida mais
interessante.
Uma característica do utopismo parece ser a premissa de que a
realização humana somente é possível pela convivência com outros seres humanos,
uma idéia com a qual um pluralista concordaria. O pluralista discorda do
demasiado acento que o pensamento utópico confere ao bem público e ao Estado. O
valor público é um valor entre outros. O acordo moral, desse modo, envolve dois
domínios, cujos limites são imprecisos, o da impessoalidade e o dos interesses
das gentes. O equilíbrio entre ambos, embora difícil, é um esforço que deve ser
perseguido. A impessoalidade está relacionada ao uso da razão teórica fundada
no bem público e, também, ao da razão prática que molda as ações em função das
normas públicas. A pessoalidade mobiliza valores relacionados a interesses
particulares, valores relacionados à cultura e compartilhados por determinados
segmentos sociais.
Uma resposta estritamente racional, para uma situação de
desacordo moral, pode demandar um esforço ininteligível para o agente, que,
talvez, sinta-se desmotivado a agir de acordo com aquilo que a razão lhe exige.[3] Isso não significa, contudo, que, no primeiro obstáculo, a resposta racional
deva ser descartada.[4] O
exercício racional é, auxiliado pelas virtudes pluralísticas, uma maneira
civilizada e produtiva de se tentar superar desacordos. O exercício racional molda
as justificativas que são plausíveis dentro d’uma situação conflituosa. O
limite da plausibilidade é alcançado quando não se pode abrir mão de valores
muito arraigados, em prol de um acordo. Ultrapassada essa linha, se as
justificativas não soarem convincentes, a busca pelo acordo pode se converter
em uma violência moral.
Em uma situação de desacordo, é normal a intervenção dos
valores pessoais, os quais são naturalmente considerados em uma situação de
desacordo moral. A pessoalidade é um exercício mais simples, porque é menos
abstrata. No entanto, acontecemos de estar em um mundo onde os valores não
estão hermeticamente protegidos e se chocam, exigindo que as inclinações
pessoais sejam refreadas. Se, por exemplo, o namorado quiser muito ver um “filme
pipoca”, mas sua namorada preferir um filme intelectualizado, eles terão que
adotar algum procedimento, que ambos considerem justo, a fim de debelar o
conflito e garantir a continuação do namoro. [5]
Nem todas as inclinações pessoais são facilmente resolvidas
por meio de procedimentos simples. Se um pai visse seu filho no meio de outras
pessoas, em um incêndio, ele não desligaria seus interesses pessoais em função
de um cálculo utilitarista ou qualquer outro. As teorias políticas deveriam
conferir mais importância aos valores pessoais, que costumam ser poderosos.
Se tencionarmos nos afastar do utopismo ruim, devemos levar a
sério o pluralismo de valores, esforçando-nos para conciliar os interesses
pessoais com as diversas noções de bem. Obviamente, quando as outras pessoas
não fazem o mesmo, o esforço de buscar algum tipo de acordo fica debilitado.
Motivos exclusivamente éticos não são, comumente, suficientes
para se obter o acordo. Casos isolados podem desmentir essa afirmação, mas não
é realístico imaginar que as pessoas sejam movidas exclusivamente por valores
éticos. Seria mais plausível conceber que os indivíduos não pretendem
desfigurar demasiadamente seus valores mais enraizados, mas talvez se mostrem
dispostos a transigir em determinados aspectos, caso a contemporização conduza
a um resultado aceitável. O conflito permanente exige que se equilibrem ganhos
e perdas de maneira inteligente e criativa, tanto no nível micro, o dos agentes
que discordam, como no nível macro, o dos arranjos políticos, os quais devem
atentar para os valores essenciais dos cidadãos.
Um arranjo político somente é plausível quando se mostra
justificável para os cidadãos que dele participam. Os interesses de indivíduos
ou de grupos podem acusar injustiças políticas que apelam para a força da
coerção violenta e para a humilhação psicológica.[6] As
lutas religiosas no tempo de Locke, a escravidão e, num passado recente, a
subjugação das mulheres evidenciam que grupos injustiçados conseguem criar uma
sensibilidade capaz de transformar as práticas sociais e políticas.
Embora venha tentando demonstrar que o utopismo ruim não se
articula com o pluralismo de valores, creio, porém, que certo teor de utopismo,
como uma busca constante por harmonia social – um bem desejado por quase todas
as pessoas –, seja interessante diante do problema do desacordo moral. Ademais,
a idéia de utopia remete a uma conjunção entre as várias noções de bem e o
interesse público que age aplicando a justiça. O erro do pensamento utópico foi
supor que essa associação pudesse ser perfeitamente harmônica, possibilidade
descartada pelo pluralista, em decorrência da incomensurabilidade dos valores.
Rawls,
em
seu Justice as Fairness: a Restatement, coloca
bem a percepção que tento passar. Rawls elenca quatro papéis ou objetivos para
a filosofia política, os terceiro e quarto são interessantes para a questão do
pensamento utópico. [7]
Um dos objetivos da filosofia política, para Rawls, é a
reconciliação, que consiste em tentar fazer os cidadãos aceitarem a sociedade
de forma positiva, a despeito de que seja marcada pelo “fato de profundas e
inconciliáveis diferenças nas compreensões razoáveis dos cidadãos a respeito
das concepções de mundo religiosas e filosóficas e, também, nas suas percepções
de valores morais e estéticos buscados pela vida humana”.[8] O
desacordo não deve ser lamentado e nem jogado embaixo do tapete, pois integra a
condição humana, solicitando ser trabalhado em prol da cooperação.
Rawls também pensa a filosofia política como sendo
“realisticamente utópica, isto é, como algo que investiga os limites e
possibilidade de uma política praticável”.[9] Rawls está atento a desacordos que se mostram insuperáveis, os quais não podem
ser desconsiderados, sob o risco de se incorrer em um arranjo político
impraticável, ou seja, cair no utopismo ruim. Assumir o conflito permanente de
valores não significa, no entanto, desistir da busca por uma ordem social
minimamente decente, que atenda a requisitos mínimos de moralidade, liberdade,
igualdade e justiça – mesmo que de forma precária.
O pluralismo de valores exige dos filósofos, atualmente com
mais intensidade, que se esforcem para encontrar um ponto de equilíbrio entre a
utopia e o conflito permanente dos valores. Prima facie esse equilíbrio
não é possível, pois envolve duas concepções antagônicas. [10]
Quem se aventura com problemas relacionados ao desacordo
moral sempre tem, a meu ver, alguma perspectiva utópica. Tal perspectiva se
evidencia na tentativa de oferecer respostas positivas a problemas que costumam
frustrar prognósticos dos mais variados tipos. O trabalho é árduo e complexo,
porque, para a resolução dos problemas, não se dispõe apenas do aparato
racional, sendo necessário, também, não desprezar a multiplicidade de noções de
bem, passados históricos, formas culturais e contingências variadas. A força
utópica atua tentando concatenar esses elementos, em prol de uma solução que
não pareça injustificável, ou seja, corporifica o esforço filosófico na
construção de justificativas bem fundamentadas. Evidentemente, em sociedade
plurais, a justificação de um arranjo político em favor de uma utopia abstrata
soa imoral. Mas, distanciando de Crowder e mais próximo de Rawls, não creio que
se deva descartar certa concepção utópica. Utopia não significa,
necessariamente, implausibilidade. O utopismo plausível aceitaria o problema do
desacordo permanente como uma característica humana. Duas formas de não se
resvalar no utopismo ruim são: a atenção para a pessoalidade dos cidadãos e o
estabelecimento de relações justas entre os cidadãos e as instituições, as
quais representariam a impessoalidade do corpo político. [11]
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CROWDER, G.
2002 Liberalism and value pluralism. New
York: Continuum.
MORUS,
T.
1997 Utopia.
Porto Alegre: LPM.
NAGEL, T.
1989 What
makes a political theory utopian? Social
Research, v. 56, nº 4, pp. 903-920.
RAWLS, J.
2001 Justice as fairness, a restatement. Edição: Erin Kelly. Cambridge, USA: Harvard
University.
[1] Morus
(1997, p. 161).
[2] A
distinção entre interesses pessoais e impessoais eu tomo de Nagel (1989, p.
908)
[3] Nagel
(1989, p. 904).
[4] Nagel
(1989, p. 904).
[5] Nagel
(1989, pp. 908-909).
[6] Para
Nagel (1989, p. 916), a pessoalidade pode nos prevenir contra as instituições
ruins.
[7] Rawls
(2001, pp. 3-5).
[8] Rawls
(2001, p. 3, tradução minha). As traduções dessa obra são minhas.
[9] Rawls
(2001, p. 4).
[10] Parece
ser essa a posição de Crowder (2002, pp. 78-79 e pp. 84-90), quando louva
Isaiah Berlin por atacar noções utópicas por serem antipluralísticas.
[11] Como
Nagel (1989, pp. 915-916), julgo que o desequilíbrio entre os elementos
pessoais e a impessoalidade exigida no arranjo político cria a má consciência.
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