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06/06/2006 às 18:41 #70364Miguel DuclósMembro
Esse ano a escalada ao monte Everest está batendo recordes de vítimas. Tivemos um alpinista brasileiro morto e mais recentemente um inglês, David Sharp. Outro australiano, dado como morto, foi salvo graças a um grupo que lhe ofereceu oxigênio e chá quente. Eis alguns links de notícias sobre o assunto.http://noticias.uol.com.br/ultnot/efe/2006/05/17/ult1807u28163.jhtmhttp://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/story/2006/05/060527_alpinistaeverestrc.shtmlhttp://globoesporte.globo.com/ESP/Noticia/0,,AA1201992-4832,00.htmlDestaco o texto seguinte:
Segundo a imprensa local, cerca de 40 montanhistas passaram por Sharp quando ele ainda estava vivo. Mas, na pressa de conquistar a montanha, nenhum deles ofereceu ajuda.Entre os montanhistas que testemunharam os problemas de Sharp estava o neozelandês Mark Inglis, o primeiro homem a subir o Everest com duas pernas artificiais. Ele reconheceu que viu Sharp, mas que as condições o impediram de prestar assistência.A resposta não convenceu Sir Edmund Hillary, de 87 anos. Ele disse que a razão da atitude é a vontade dos montanhistas de acrescentar o Everest a seu currículo, devido a interesses comerciais."Eles só querem subir ao pico. Hoje, pouco importa que alguém esteja em perigo. Portanto, não me impressiona alguém morrer debaixo de uma rocha", disse o alpinista.
Parece ser um bom caso de dilema ético para debate. No seu livro Fundamentação Metafísica dos Costumes, Kant elenca alguns eventos fictícios para demonstrar a aplicabilidade ou não do imperativo categórico. Tomando como base o exemplo acima, como poderíamos tratar o dilema acima sob a perspectiva de uma teora ética?O homem ali não está em seu elemento natural: o cume das montanhas geladas não foi feito para a habitação humana. São condições difícilimas de subsistência. Porém, é um lugar relativamente bastante frequentado: alpinistas do mundo todo vão para lá todos os dias tentar o sucesso da escalada e conquistar fama e currículo. Por um lado, um alpinista que não planejou como devia sua descida, sabia do risco que tinha de sucumbir: a responsabilidade por assumir o risco e ainda não planejar bem é toda dele. Por outro lado, alpinistas ambiciosos assumem uma perspectiba egoísta, tanto no propósito da missão quanto na falta de espírito de comunicação e equipe. Muitos subindo, não queriam parar tão perto do topo para ajudar um morimbundo. Outros, talvez, voltando e com reservar suficientes para ajudar, mesmo sem sacríficios, não quiseram tomar as dores do colega, e continuaram com a atividade programada, sem arriscar ou mesmo colocar uma vida humana como absolutamente necessária, para ser salva não importanto o custo. Cerca de 40 alpinistas passaram incólumes pelo alpinista paralisado, mas ainda vivo. E nenhum se dispõs a ajudar muito. Ali no local, a ética não valeria, mas sim uma "lei da montanha", ou simplesmente garantir a sobrevivência?Como vocês tratariam esta questão?
07/06/2006 às 4:58 #80987gontijoloyolaMembroOlá colega, :)A questão é saber se o alpinismo, por suas peculiaridades, torna necessário um sistema ético particular. Sugiro, a princípio, uma analogia com a relação ética / política, sobre a qual muito já se escreveu. Inspirando-me no texto “Ética e Política”, de Norberto Bobbio (In Teoria Geral da Política, Editora Campus), posso afirmar que há pelo menos três pontos de vista sobre a questão: o monismo ético rígido, o monismo ético flexível e o dualismo ético.Pela visão monista rígida, há apenas um sistema normativo ético. Qualquer conduta que dele se afaste será moralmente equivocada. Um exemplo clássico desse monismo é a razão prática kantiana, fundada sobre o imperativo categórico, que exige a adoção de condutas que possam ser transformadas em lei universal. Pela visão monista flexível, também há apenas um sistema normativo ético, mas este admite derrogações, aceitando exceções justificáveis. Bobbio cita como exemplo o filósofo Jean Bodin, que escreveu Os Seis Livros da República e criticou duramente Maquiavel. O Código Penal Brasileiro, se me permitem a analogia como um sistema normativo jurídico, em vez de ético, pode servir de exemplo do monismo flexível, pois adota um sistema de criminalização baseado na tipicidade (adequação da conduta do agente àquelas descritas pela norma penal), mas admite exceções que excluem a antijuridicidade (ex.: a legítima defesa e o estado de necessidade) e a culpa (ex.: a embriaguez involuntária provocada por terceiro).Finalmente, a visão dualista admite a existência de dois sistemas normativos éticos, cada um aplicável a uma esfera específica da vida humana. O exemplo mais óbvio é a doutrina contida em O Príncipe, de Maquiavel, que deixa claro que o Príncipe, para bem governar, haveria de seguir um código de condutas próprio, bastante distinto da ética cristã que predominava à época. Com base nessa visão, poderíamos, por exemplo, imaginar a existência de uma “ética do alpinismo”, uma “ética dos fortes”, segundo a qual a morte seria o preço a ser pago pelos que falhassem e ser salvo por outrem ou pedir ajuda representaria uma desonra para aquele que deveria ser sepultado pela montanha que o derrotou, etc.Feitas tais considerações, apenas com o objetivo de sistematizar a visão do problema, posso afirmar o seguinte: 1. Conquanto o alpinismo seja, sem dúvida, uma atividade bastante peculiar, não é uma atividade que exija oposição entre seus participantes. A luta do alpinista é contra si mesmo e contra a montanha, não contra outros alpinistas. A rivalidade pode ocorrer, mas é contingente, não necessária à sua prática.2. Ainda que exigisse essa oposição, isso não significaria ausência de limites na busca da vitória. O futebol, por exemplo, exige a vitória sobre o adversário, mas esta deverá ocorrer sem desrespeito ao que se costuma chamar fair play. A exigência de limites se dá porque o futebol, embora também seja uma atividade peculiar, não se encontra isolado da vida social. Pode-se dizer que ele representa um subsistema normativo, mas nunca um sistema isolado. Desse não-isolamento advém a necessidade de observância dos aspectos fundamentais do sistema ético mais abrangente, qual seja, aquele que regula a vida social em geral. Um jogador pode dar um tranco em seu adversário numa disputa de bola, mas se lhe der uma cotovelada sem bola será expulso. O alpinismo também possui o seu fair play, não apenas entre alpinistas de um mesmo grupo, mas também entre alpinistas que eventualmente rivalizem na busca da fama.3. Não se pode esquecer que a ajuda recíproca certamente é favorável à própria prática do alpinismo, pois aquele que salva poderá um dia ser salvo por outrem. Há, portanto, uma boa base para a empatia. Aqueles que não se sensibilizam com a situação de um colega demonstram desprezo pela vida humana.4. Concluindo, pode-se aceitar que um monismo rígido não seja adequado à prática do alpinismo, mas um dualismo absoluto é inaceitável, pois, como se disse, aquela não se encontra isolada da vida social. O mais apropriado é um monismo flexível que, em razão das peculiaridades dessa prática, admita um subsistema normativo ético, que derrogue algumas normas do sistema geral. Voltemos à analogia do futebol: se um jogador fizer, fora do campo, o que faz dentro deste (dar um tranco em quem está a seu lado numa fila e tomar o seu lugar), sua conduta será reprovada eticamente. Assim, os esportes em geral podem ser vistos como subsistemas normativos. Por mais dura que seja a prática do alpinismo, suas particularidades não podem se sobrepor à vida humana, cujo valor nem em tempos de guerra é plenamente esquecido (há regras para lidar com prisioneiros, com feridos no campo de batalha, etc.).Conseqüentemente, não há como justificar a omissão de socorro de outro alpinista, salvo se o salvamento colocasse em sério risco aquele que tentasse o salvamento. ;)
07/06/2006 às 5:30 #80988BrasilMembro“A resposta não convenceu Sir Edmund Hillary, de 87 anos. Ele disse que a razão da atitude é a vontade dos montanhistas de acrescentar o Everest a seu currículo, devido a interesses comerciais."Eles só querem subir ao pico. Hoje, pouco importa que alguém esteja em perigo. Portanto, não me impressiona alguém morrer debaixo de uma rocha", disse o alpinista.”Olá amigos,Como em tudo na vida e, imagino que, de uns tempos para cá, mais ainda, o dinheiro falou mais alto que tudo. Infelizmente. :(Meu velho dizia que antigamente, era comum dar a vez à mulheres, crianças e idosos, na hora de subir em um ônibus, hoje, parecemos animais, atropelamo-nos uns aos outros numa corrida desesperada. Corremos para que? Porque as coisas ficaram assim? Isso tem algo a ver com dinheiro ou não? :'(
09/06/2006 às 2:32 #80989Miguel DuclósMembroFinalmente, a visão dualista admite a existência de dois sistemas normativos éticos, cada um aplicável a uma esfera específica da vida humana. O exemplo mais óbvio é a doutrina contida em O Príncipe, de Maquiavel, que deixa claro que o Príncipe, para bem governar, haveria de seguir um código de condutas próprio, bastante distinto da ética cristã que predominava à época. Com base nessa visão, poderíamos, por exemplo, imaginar a existência de uma “ética do alpinismo”, uma “ética dos fortes”, segundo a qual a morte seria o preço a ser pago pelos que falhassem e ser salvo por outrem ou pedir ajuda representaria uma desonra para aquele que deveria ser sepultado pela montanha que o derrotou, etc.(...)Conseqüentemente, não há como justificar a omissão de socorro de outro alpinista, salvo se o salvamento colocasse em sério risco aquele que tentasse o salvamento.
OláPrimeiramente, obrigado pela resposta plena de conteúdo segundo a proposta do tópico. Não conhecia esta classificação dos sistemas éticos segundo o Bobbio, e me pareceu bem interessante. O dualismo ético permitiria apenas duas éticas, ou no mínimo duas éticas? i.e , uma variação ética particular para cada grupo envolvido. Esse ponto me parece importante. Com o fim da noção de um Absoluto no campo teórico ético, foram tentadas várias maneiras de fundamentar a ética unicamente com a razão. O esforço de Kant no imperativo categórico aparece nesse sentido. A busca por justiça, grosso modo, está ligada ao temor da ira divina. Depois da desconstrução do conceito de Deus na filosofia, no século XX o relativismo ganha força - lembrem-se da frase do papa quando assumiu seu papado, de que é preciso combater o império do relativismo. As pesquisas antropológicas, por exemplo, mostraram que muitos valores éticos que julgavam-se inatos à natureza humana, eram na verdade contingentes. Com a amplitude de estudos de comportamento, e sua aceitação plurivalente, digamos, na sociedade democrática, os valores éticos não são necessariamente praticados por toda a sociedade, mas antes contingentes a grupos legítimos que o mantém. O Habermas faz um esforço e tanto para fundamentar uma ética intersubjetiva válida, nesse sentido.O ponto peculiar do alpinismo não parece ser a rivalidade, mas, nesse caso, o grau de extrema dificuldade em manter-se vivo, dadas as condições geográficas e climáticas. Certamente, a poucos metros do topo da montanha, consiste em perigo iminente desviar-se da programação e abrir mão de preciosos recursos para sacrificá-los em favor de outro.Mas assim, chegamos à questão do Brasil. O número de 40 alpinistas passando pelo moribundo chama a atenção. Nesse caso, parece que algo poderia ter sido feito, ou ao menos, dada a frequência dos acidentes, algum plano de resgate poderia já estar previamente disponível. O fato deles passarem indiferentes parece sinalizar uma decadência ética, não somente particular do alpinismo, mas geral. Como disse o velho senhor na reportagem, antigamente os valores eram outros. Numa expedição pioneira de um grupo, cada vida parece mais valorizada. O grupo não abriria mão de usar todos os recursos para tentar salvar o amigo, pelo menos na tentativa, não importanto o sacríficio próprio.Uma decadência ética pode estar presentes em vários fatores, como apontado: a vil busca pela fama, a questão do patrocínio e do prêmio, o currículo, ou qualquer outro caso que o particular, o egoismo, se sobrepõe ao interesse geral.
10/06/2006 às 17:36 #80990gontijoloyolaMembroCitação de Miguel Duclós: “O dualismo ético permitiria apenas duas éticas, ou no mínimo duas éticas? i.e , uma variação ética particular para cada grupo envolvido. Esse ponto me parece importante. Com o fim da noção de um Absoluto no campo teórico ético, foram tentadas várias maneiras de fundamentar a ética unicamente com a razão.”Olá. :)Sem dúvida, a questão do relativismo ético é fundamental para a discussão da contemporaneidade, marcada pelo pluralismo de concepções morais.Parece-me importante diferenciarmos aqui as concepções morais das concepções políticas, se não quisermos cair sempre num aparente – e, certamente, equivocado – antagonismo entre harmonia social e liberdade individual. Você bem ressaltou o nome de Jurgen Habermas, um dos que superaram esse aparente antagonismo. Sua concepção é, sem dúvida, política, acolhendo o pluralismo de concepções éticas, cujo entendimento em sociedade se daria por meio da ação comunicativa.Outro que também deixou para trás esse problema foi o americano John Rawls, que defendia a “neutralidade metafísica” da Filosofia Política. Na vida política, o consenso que se busca é o “consenso sobreposto” – não há necessidade de um consenso a respeito de questões de fundo metafísico (Existe Deus? Qual a natureza do homem? Qual o objetivo da vida? etc), mas apenas quanto a regras sociais mínimas que permitam a convivência de homens livres. Quanto aos alpinistas, acredito que a vida urbana tende a enfraquecer o que poderíamos denominar “ética da solidariedade”. O homem urbano é um homem ilhado, que tende à auto-suficiência. As facilidades do consumo nos permitem esse isolamento. No campo e em cidades pequenas, é comum cumprimentar os que encontramos nas ruas ou dar carona a desconhecidos. Em cidades maiores, todavia, condutas semelhantes parecem, respectivamente, inconvenientes e perigosas. Pode-se pensar que talvez os alpinistas de hoje (que em sua maioria devem ser citadinos) tenham crescido nessa cultura do cada-um-por-si.A questão que eu gostaria de ressaltar, porém, é mais específica. É claro que cada alpinista tem direito a suas convicções morais e de outro modo não poderia ser numa sociedade pluralista. Voltando a Rawls, não há necessidade de um consenso abrangente entre eles – podem ser religiosos ou ateus, egoístas ou solidários, conservadores ou constestadores, não importa. Mas será que uma conduta tão significativa quanto o socorro a um moribundo não deveria fazer parte das regras indispensáveis à convivência? Não seria adequado exigir uma conduta específica quanto a isso? A vedação à omissão do socorro não faria parte do consenso sobreposto? Tanto Rawls (que já morreu) quanto Habermas, acredito, responderiam afirmativamente a isso, pois o que ambos buscam é uma validação intersubjetiva das regras de conduta. Tanto a “ação comunicativa” de Habermas quanto o experimento mental da “posição original” de Rawls tentam superar as visões parciais, centradas em interesses particulares, para chegar a uma conclusão válida para um indivíduo tomado em sua generalidade, um sujeito “quase impessoal”.Imaginemos um grupo de alpinistas que pretendem escalar o Everest discutindo quais seriam as regras de condutas adequadas àquela prática esportiva. Mais especificamente, discutem a questão do dever de prestar socorro a um colega ferido. A discussão é anterior a qualquer situação concreta. Assim, cada alpinista pode se ver não apenas tendo de prestar socorro, mas também sendo socorrido e salvo da morte pelo colega. Não seria razoável estabelecer uma regra de conduta que vedasse a omissão pura e simples de socorro? Acho que sim.Aliás, não é por outro motivo que o Código Penal, em seu artigo 135, tipifica como crime a omissão de socorro, nos seguintes termos: Art. 135 - Deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública:Pena - detenção, de 1 (um) a 6 (seis) meses, ou multa.Parágrafo único - A pena é aumentada de metade, se da omissão resulta lesão corporal de natureza grave, e triplicada, se resulta a morte. Assim, continuo com minha conclusão do texto anterior: “(...) não há como justificar a omissão de socorro de outro alpinista, salvo se o salvamento colocasse em sério risco aquele que tentasse o salvamento”.
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