A Escolha de Heidegger – excerto de A História da Filosofia no Século XX

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    Olá, pessoal. Acabo de digitar a alguns amigos um excerto do livro “A História da Filosofia no Século XX” de Christian Delacampagne, e achei que poderia interessar-lhes.Trata-se de uma análise bem negativa do pensamento heideggeriano. Um pouco exagerado em certos momentos, além de minimizar os méritos de Heidegger. Mas, mesmo assim, uma análise destruidora.Aliás, é bom dizer que o propósito do livro era informar leitores iniciantes em filosofia sobre os acontecimentos mais importantes da filosofia no século passado, de forma que a leitura é acessível a todos.Tradutora: Lucy Magalhães.Edit: É uma pena, não consigo copiar as notas para o fórum. Para quem quiser ler com as notas, há o arquivo em .doc no final do tópico.Eis:______________________________________

    A Escolha de Heidegger

    O ano de 1933 também é trágico por outra razão: algumas semanas depois da chegada de Hitler ao poder, o filósofo alemão mais célebre da época, Martin Heidegger, assume as funções de reitor da Universidade de Freiburg e torna-se, nessa ocasião, membro do Partido Nacional-Socialista (1º de maio). Heidegger tem 44 anos quando adere ao NSDAP. Não se trata, pois, de um erro de juventude. Continuará como membro até 1945. Não se trata, pois, de um engajamento efêmero. Também não é por inadvertência, mas graças à cumplicidade ativa de colegas pró-nazistas e ao apoio das autoridades administrativas que chega ao comando da sua Universidade, onde se manterá durante um ano, de abril de 1933 a março de 1934. Esse cargo não é nem neutro nem puramente honorífico. Confere ao seu titular um poder real. Requer dele uma total submissão política. No esforço que os nazistas fazem para controlar a sociedade civil, a tarefa que torna dócil o setor universitário é um fator essencial. Seria impensável confiá-la a personalidades rebeldes ou indecisas. Além disso, a nomeação de Heidegger está em relação direta com o tema central do programa nazista, a eliminação dos judeus. De fato, ela se segue à demissão do seu predecessor, o biólogo von Möllendorf, que se recusava – coisa rara – a aplicar uma lei nova, imposta pelo Land da província de Bade, que punha administrativamente em disponibilidade os professores julgados “não-arianos”. Aliás, a lei é aplicada apesar de von Möllendorf: dos 93 eleitores que devem escolher o seu sucessor, 13 são impedidos de votar por razões “raciais”. O que, aparentemente, não cria nenhum problema de consciência para Heidegger. Assim como também não o abala a queima de livros “judeus e marxistas”, que ocorre em diversas cidades, a 10 de Mario de 1933, alguns dias depois de sua eleição. O novo reitor começa a sua missão com um entusiasmo incontestável. A 20 de Mario de 1933, envia um telegrama a Hitler, para desaconselhá-lo a receber a diretoria da Associação das Universidades Alemãs, até que esta se mostre mais simpática ao regime – ou seja, até que a Associação resolva “entrar na linha”. Uma semana depois, a 27 de maio, acontece a cerimônia de investidura. Entre dois hinos marciais, Heidegger pronuncia um discurso, expondo, no dialeto do Partido, o seu programa para “nazificar” a Universidade de Freiburg. Não há grande coisa a dizer sobre a substância teórica, bastante rala, desse texto agressivo, pomposamente intitulado A auto-afirmação da Universidade alemã, e no qual se procuraria em vão o menor vestígio de independência intelectual. Aliás, de 1945 até sua morte, o autor impedirá prudentemente que ele seja reimpresso, de modo que ele só ressurgirá, na França e depois na Alemanha, em 1982. Na prática, a principal atividade à qual o filósofo se dedica, a partir do momento em que assume suas funções, é a reforma dos estatutos da Universidade, seguindo o modelo do sistema do Führerprinzip. Ao fim dessa reforma, que ele provoca e que será depois aplicada a outros estabelecimentos, Heidegger é nomeado, a 1º de outubro, Führer da Universidade de Freiburg. Com esse novo título, seus poderes são reforçados. O reitor se torna uma verdadeira correia de transmissão entre o Estado nacional-socialista e a juventude estudantil. O efeito da reforma será catastrófico, tanto para os jovens agora arregimentados, quanto para os próprios estabelecimentos, cujo nível científico não tardará a cair. Simultaneamente, Heidegger desempenha com perfeita disponibilidade o seu papel de filósofo-propagandista. Multiplica as entrevistas coletivas e artigos para a imprensa.  Nas vésperas do plebiscito do dia 12 de novembro, faz um apelo em favor de Hitler. No dia 30 do mesmo mês, pronuncia em Tübingen uma conferência sobre a missão da Universidade no Estado nacional-socialista. Públicas ou privadas, suas declarações da época não deixam nenhuma dúvida sobre a ideologia que as inspira, um misto de nacionalismo, antimarxismo e anticristianismo. Quanto ao anti-semitismo propriamente dito, se Heidegger não o exibe ruidosamente, é apenas porque todos à sua volta já se encarregam disso. Não esqueçamos que o anti-semitismo, ‘banal” na Europa dos anos 30 e particularmente na região da Alemanha em que Heidegger cresceu, constitui o fundamento do programa nazista. Um intelectual como ele não precisa, pois, insistir nesse ponto, principalmente se deseja diferenciar-se – pelo seu discurso – da massa dos militantes populares. Isso não quer dizer que discorde da idéia. Não só nenhum fato permite defender essa interpretação otimista, mas existe pelo menos uma prova em contrário: o relatório que ele entrega, em dezembro de 1933, à Associação dos Professores Nazistas de Göttingen, no qual não hesita em denunciar um colega, culpado de manter “ligações estreitas” com judeus . Esse relatório, que pretende ser esmagador para o interessado, parece-nos hoje ainda mais esmagador para o próprio Heidegger. O ativismo do pensador, assim como a sua retórica combativa, acabam por suscitar reservas naqueles que, até no seio do Partido, defendem uma linha mais pragmática. Com efeito, o Partido nazista é dividido em correntes adversárias, que lutam entre si pela hegemonia.  Por exemplo, o círculo de Hitler e os SS desconfiam do ardor revolucionário dos SA, cujos chefes serão assassinados por ocasião da Noite das Facas Longas (30 de junho de 1934). Em grau menor,  muitos colegas de Heidegger, a começar pelo influente reitor de Frankfurt, Ernst Krieck, se irritam com o zelo do profeta, com seu estilo obscuro, com a sua evidente ambição. As inépcias que ele comete na gestão da sua Universidade suscitam contra Lee, já no fim de 1933, uma oposição latente. Com essa hostilidade crescente, Heidegger acaba jogando a toalha. Em março de 1934, renuncia discretamente às suas funções reitorais, a pretexto de consagrar-se melhor aos seus trabalhos “científicos”. Mas não deixa o Partido. E, até 1945, não renega abertamente nenhuma das suas convicções. O filósofo Hans-Georg Gadamer (nascido em 1900) – que foi aluno de Heidegger em Marburg e nunca deixou de defender o seu ex-professor – afirma que, depois de 1934, ele criticou privadamente o regime que aprovava em público. Esse fato não tem nada de impossível. Humilhado pelo fracassado do seu reitorado, que atribui ao ciúme de que foi vítima, Heidegger deve ter sido realmente tentado a falar mal de um governo que não o apoiou até o fim, ou de colegas que, sabendo manobrar melhor do que ele, ficaram próximos do poder. Portanto, não é surpreendente que, de 1934 a 1945, ele fabrique pouco a pouco uma concepção estritamente pessoal daquilo que o nacional-socialismo deveria ter sido. Também não surpreende que ele às vezes se arrisque, diante de poucos ouvintes, a opor essa concepção ao “desvio” do Partido no poder. Comprovadas por Gadamer e explicáveis pela decepção de 1934, essas manifestações de irritação não devem ser interpretadas como a expressão de um repúdio ao nazismo ou a seus “excessos”. Pelo contrário, traduzem a mágoa de não ver Hitler ir bastante longe – ou bastante rápido – na realização dos aspectos mais “revolucionários”, no plano social e cultural, do seu próprio programa.  Pois, diante do “pragmatismo” dos círculos oficiais, parece realmente ofilósofo aspire, doravante, a posar de guardião de uma certa “pureza” doutrinária: como, por exemplo, no que ele pensa ser, na época, a necessidade de uma luta enérgica contra a influência “moderadora” dos meios cristãos. A prova dessa aspiração nos édada por um célebre trecho do curso do semestre de verão de 1935, intitulado Introdução à metafísica. Nesse texto – que será publicado literalmente em 1953, mas privado dos esclarecimetnos necessários, que se devem a Hugo Ott  -, Heidegger ataca as teorias de um defensor corajoso dos “valores” morais, o católico Theodor Haecker (que ele não cita nominalmente), e o apoio que dá a elas o Frankfurter Zeitung, último grande jornal que ainda não “entrou na linha”, e que os nazistas vêem como favorável aos judeus. Depois de dar a entender que semelhantes doutrinas deveriam ser definitivamente proibidas (o que, aliás, logo acontecerá), conclui condenando resolutamente “o que hoje se põe no mercado como filosofia do nacional-socialismo, e que não tem nada a ver com a verdade interna e com a grandeza desse movimento”  . Isso mostra claramente em que campo se situa o filósofo, mais de um ano depois de sua saída da reitoria. Lembre-se ainda que, em 1936, quando Heidegger encontra por acaso, em uma viagem a Roma, o seu ex-aluno Karl Löwith, exilado nessa cidade, confirma diante dele o seu apoio ao programa nacional-socialista (a despeito de certas críticas dirigidas ao “círculo” de Hitler), assim como a existência de um vínculo essencial entre essa atitude política e o resto de seu pensamento . Em nenhum momento, mesmo depois da violência anti-semita da Noite de Cristal (1938), protesta contra o rumo dos acontecimentos. E, segundo muitos testemunhos, continua a usar a insígnia do Partido, em certas ocasiões, até 1945. Não esqueçamos, enfim, que Heidegger – que, quando dos encontros de Davos, não poupou o seu colega Cassirer – continuará até o fim incapaz do menor gesto, mesmo privado, em favor dos seus ex-professores ou condiscípulos judeus. Suas relações com Husserl, que nesse meio tempo se convertera ao protestantismo, interrompe-se bruscamente já em 1930. Não dará sinal de vida ao seu velho mestre durante a doença que acabará por matá-lo e não assistirá aos funerais do homem a quem dedicou a primeira edição de Ser e Tempo.  Aliás, quando a 4ª edição da obra é publicada em 1941, Heidegger toma o cuidado de retirar a dedicatória a Husserl, morto há três anos. Essa época pouco gloriosa termina  com o fim da guerra. A 25 de abril em 1845, as tropas francesas entram em Freiburg. Em meados de maio, a casa de Heidegger, considerado como nazista “típico”, é inscrita em uma lista de prédios a serem requisitados para uso das forças de ocupação. Pouco depois, inicia-se o processo que decidirá o destino do ex-reitor. Esse processo acaba em janeiro de 1946. Heidegger tem sua aposentadoria antecipada, com proibição de ensinar em público. Proibição que o interessado não tarda a burlar, ministrando, já em 1946, conferências “privadas”. A partir do segundo semestre de 1945, Heidegger começa a elaborar por escrito  as grandes linhas do sistema de defesa que permanecerá o mesmo até o fim, assim como o prova ainda a entrevista condedida em 1966 à revista alemã Der Spiegel, e que só será publicada – de acordo com o desejo do filósofo, sempre prudente – depois de sua morte.  No fim de 1945, Heidegger pode escolher entre duas estratégias opostas, ambas coerentes. Ou assume a totalidade do seu passado nazista, condenando-se a si mesmo ao isolamento e ao silêncio, ou admite que se enganou completamente, não só em 1933, mas também durante os 12 anos seguintes, realizando um gesto público de autocrítica. É verdade que essas duas atitudes requerem coragem. Talvez por isso, Heidegger escolhe uma terceira. Apaziguadora e deliberadamente enganosa, esta consiste em minimizar o alcance de sua filiação ao NSDAP, alegando que só aderiu seriamente ao partido durante o seu ano de reitorado. Assim, o filósofo é levado a reorganizar – retrospectivamente – a sua vida em três períodos: antes de 1933; durante o ano 1933;34; de 1934 a 1945. Depois, apresenta-se como tendo sido apolítico durante o primeiro período; vítima dos acontecimentos durante o segundo; completamente convencido do seu “erro” logo no início do terceiro. Argumentos difíceis de sustentar. Heidegger está longe de ter sido apolítico antes de 1933. Proveniente de um meio excessivamente conservador, logo procurou na direita, e depois na extrema direita, os meios de uma ascensão social que a República de Weimar não lhe oferecia tão rapidamente. Quanto a Ser e Tempo, se não es trata diretamente de um livro político,o pensamento que nele se desenvolve é freqüentemente a transposição filosófica de certos temas caros a Spengler ou aos teóricos da “revolução” conversadora, como vimos. Tratando-se do ano 1933-34, a interpretação que Heidegger dá, a partir de 1945 – especialmente diante dos jovens franceses, nem sempre bem informados, que vem visitá-lo -, é simplesmente incoerente. Ora o chama de sua “grande burrada”, ora afirma que só aceitou essa função para dificultar o domínio do Partido sobre a Universidade – o que é contrário aos fatos. Resta evocar o mais lamentável. Se Heidegger tivesse sido, como afirma, um “oponente” já em 1934, não teria nenhuma razão para não condenar abertamente, a partir de 1945, o horror dos crimes nazistas. Ora, não o fez. Nem uma vez pronuncia a palavra que dê a entender que está escandalizado – pelo menos a posteriori – com o extermínio dos judeus, nem que o desaprova. Esse silêncio, que chorará o poeta Paul Celan, é ainda mais pesado porque Heidegger sabe, melhor do que ninguém, que “calar-se” não é “não dizer nada”. O filósofo teria morrido persistindo, como tantos outros nazistas, em ignorar, no fundo de si mesmo, a bárbarie da Shoah ? Infelizmente, não existe nenhuma razão para pensar o contrário. Pelo menos dois indícios parecem confirmar realmente essa interpretação. O primeiro se encontra em uma carta enviada a 20 de janeiro de 1948 a Herbert Marcuse. Convidado por seu ex-aluno a fazer uma autocrítica, Heidegger se recusa, minimiza mais uma vez a sua ação, e finamente banaliza a Shoah, comparando-a com a ditadura que assola, desde 1945, as “democracias populares”. “Substituía ‘judeus’ por ‘alemãs orientais’”, escreve a Marcuse, “e aquilo de que você me acusa também vale para uma das potências aliadas, com a diferença de que tudo o que acontece em 1945 ocorre à luz do dia, enquanto o terror sangrento dos nazistas foi efetivamente escondido do povo alemão”  . Além do que uma tal declaração pode conter de ofensivo para os judeus, ela encerra uma dupla mentira. Por um lado, sugere que não há nada pior no nazismo do que no comunismo, omitindo o fato de que a existência de um anti-semitismo de Estado, próprio do primeiro e não do segundo, impede que se confundam esses dois tipos de regime. Por outro lado, finge esquecer que as perseguições contra os judeus começaram a partir de 1933 e que, depois da Noite de Cristal, o terror sangrento, longe de ser escondido do povo alemão, se exercia, pelo contrário, na rua. Entretanto, essas mentiras têm vida longa, pois ambas continuam a alimentar até hoje o discurso dos historiadores “revisionistas”, na Alemanha e em outros lugares. Segundo indício: o único texto conhecido – até aquele dia – no qual Heidegger evoca explicitamente as câmaras de gás parece ser o trecho seguinte de uma conferência (inédita) sobre a técnica, pronunciada em Bremen, em 1949: “A agricultura é agora uma indústria de alimentos motorizada; quanto à sua essência, é a mesma coisa que a fabricação de cadáveres nas câmaras de gás e nos campos de extermínio, a mesma coisa que os bloqueios e a redução de países à inanição, a mesma coisa que a fabricação de bombas de hidrogênio...”  Pergunta-se, diante de um paralelo de gosto tão duvidoso, se ele é o produto de uma insensibilidade total ou se se trata, ao contrário, de uma provocação calculada. Cegueira ou agressividade?  Nenhuma das duas interpretações, convenhamos, honra o “grande” pensador. Esses são os fatos. Por mais esmagadores que sejam, permanecem todavia secundários em comparação a esta questão de princípio: deve-se considerar o engajamento político de Heidegger como intrinsecamente ligado à sua maneira de pensar ou como uma “excentricidade” sem relação com esta? Na França – onde o culto a Heidegger tomou, de 40 anos para cá, proporções inquietantes –, a segunda razão é a mais admitida usualmente. Seria também, por outras razões, a solução adotada por Gadamer . Entretanto, essa resposta se choca com duas objeções: uma de direito, outra de fato. Primeiro, não se consegue perceber em nome de que princípio seria necessário separar filosofia e política. Observação que vale particularmente para um pensador segundo o qual – como ele próprio disse a Karl Löwith, e como repetiu ao seu discípulo Jean Beaufret – “tudo está ligado”  . Por outro lado, nada indica que, aderindo na NSDAP, Heidegger tenha tido o sentimento de romper, de um modo ou de outro, com a inspiração de sua obra anterior. As implicações políticas de Ser e Tempo já não caminhavam no sentido desejado pela extrema direita nacionalista alemã?  Certamente, Heidegger evolui – mas continuando a ser notavelmente fiel a si mesmo. E se, em 1934 e depois novamente a partir de 1945, ele toma alguma distância em relação ao nazismo “real”, em nenhum momento, apesar dessas inflexões, sente a necessidade de renegar as convicções básicas – filosóficas e políticas – que já eram as suas no fim dos anos 20. É pois para a unidade destas que devemos agora retornar, se quisermos tentar compreender  em que o engajamento nacional-socialista do “mestre” de Freiburg não é de modo algum exterior ao resto do seu pensamento. Ser e Tempo é um livro inacabado. Como para todos os livros de filosofia, isso se deve a razões profundas. Razões que o próprio Heidegger expõe em carta dirigida, em abril de 1962, a um filósofo americano, o padre William Richardson. A questão do Ser, colocada no centro do livro, apresenta-se a Heidegger, segundo ele afirma, depois que descobriu em 1907 a dissertação de Brentano sobre Aristóteles. Pouco depois, a leitura das Investigações Lógicas um novo modo de abordar a famosa questão: o método fenomenológico, posto sob o signo de uma volta à própria essência das coisas. Mas a fenomenologia logo se desvia em direção a um novo idealismo transcendental, que Heidegger recusa, porque ele próprio pretende pensar o Ser na sua temporalidade, na sua “historialidade”. Ora, Husserl, na Filosofia como ciência rigorosa, voltou as costas à história e também ao historicismo . Com isso, o pensamento heideggeriano, tal como se afirma pela primeira vez em Ser e Tempo, fica preso em um conflito. Para resolvê-lo, para desdobrar enfim a questão do Ser em todas as suas dimensões, é preciso extrair da problemática do livro de 1927 o que ela ainda pode ter de “metafísico”.  É preciso liberar de qualquer limite a meditação que se esboça sobre o sentido do próprio projeto metafísico e sobre os meios de “superá-lo”: tentativa que ocupará Heidegger até o fim da vida. Essa é a razão pela qual não há ruptura em sua obra, mas simplesmente, depois de 1927, uma interpretação cada vez mais pessoal – e anti-husserliana – daquilo que o termo “fenomenologia” quer dizer. A melhor maneira de retomar o sentido dessa interpretação seria remetê-la à intuição originária da qual procede, e que Heidegger disse muitas vezes constituir o princípio em torno do qual todo o seu pensamento girava. Essa intuição – que ele formula, em certos textos, com ajuda do termo “tendência”  - é a de uma diferença: a diferença, imperceptível mas absoluta, que separa entre si o Ser e o ente, embora estes pareçam estreitamente ligados, pois não poderia haver ente sem Ser, nem Ser sem ente.  Nessa formulação, o problema não é o termo “ente”. O campo dos entes não é nada mais do que o mundo ao qual pertencemos. O homem é um ente. O próprio Deus pode ser considerado como o “Ente supremo”. Aliás, a teologia é apenas um ramo da ontologia, ou ciência do ente. Em contrapartida, a questão de saber em que o Ser do ente se distingue do ente – e, principalmente, por que essa distinção deveria ser considerada primordial – permanece obscura. O que é, pois, o Ser? Apesar da importância da questão, uma decepção espera o leitor de boa vontade, pois toda a obra de Heidegger afirma que uma tal pergunta não poderia, por princípio, ter resposta. O Ser não é aquilo que os metafísicos chamam de substância, espírito ou matéria. Não se pode dizer nada sobre ele, pois ele é desprovido de atributos. Ou, mais exatamente, a única coisa que se pode dizer é uma tautologia: “o Ser é o que é” (“Was ist das Sein?? Es ist Es selbst ”). Em outros termos, ele é irredutível a um conceito, inapreensível pelo logos. Aliás, esse é o motivo pelo qual a filosofia ocidental, no seu conjunto, deixou-o escapar. Desse ponto de vista, “filosofia”, “metafísica”, “onto-teo-logia” são apenas sinônimos, nomes diferentes para designar um mesmo fracasso, um mesmo “esquecimento”, um mesmo “ocultamento” do Ser. Pois todos os filósofos fracassaram. Talvez apenas os pré-socráticos, em um extremo da cadeia, e Nietzsche, no outro extremo, no instante de um raio, entreviram o Ser. Mas o perderam no mesmo momento em que o entreviam. Os primeiros, porque logo se tornaram prisioneiro do logos. O último, porque, ao fazer da “vida” o “valor” supremo, fechou-se naquilo que Heidegger chama, embora o próprio Nietzsche recuse o termo, de “metafísica” dos valores. Observemos aqui uma coisa: o logos – modo de pensamento conceitual e demonstrativo, indispensável para compreender os dentes – se revela inadequado quando se trata de pensar o que “supera” estes (crítica que converge com a do “logocentrismo”, desenvolvida nos anos 30 por um filósofo pró-nazista, Ludwig Klages [1872-1956]). Ora, a esse logos, que os pré-socráticos contribuíram para estabelecer, Platão acabou por conferir uma supremacia absoluta sobre o pensamento. Assim, quando se compreende o “erro” de Platão, compreende-se o “erro” de toda filosofia. Pois toda filosofia é platônica: até as de Marx, de Nietzsche ou de Carnap, que constituem “inversões” dela – pois “virar pelo avesso” o platonismo é colocá-lo de cabeça para baixo, mas não escapar dele.  Uma tal visão da história da filosofia – que permite escamotear o materialismo reduzindo-o a uma simples variante do idealismo – é, no mínimo, apressada. Mas tem o mérito de ser clara. E de acarretar conseqüências que não o são menos. O que se deve fazer, caso se queira evitar cair no erro filosófico por excelência? Deve-se, simplesmente, renunciar à filosofia. Ser e Tempo continuará assim inacabado, já que se trata ainda, como indica a homenagem a Husserl, um livro de filosofia. Doravante, Heidegger não escreverá mais livros propriametne ditos. Terá também como ponto de honra – ligeiramente pueril – recusar a designação de “filósofo” para reivindicar a de “pensador”. Mas não basta declarar a filosofia “acabada” para provar que se saiu efetivamente dela. É preciso, para que essa “saída” comece a tornar-se visível, que o próprio “pensamento” se afaste resolutamente da problemática – racionalista e humanista – que, desde as suas origens gregas, concretiza o discurso filosófico. Ora, nas vésperas da Primeira Guerra Mundial, as três formas dominante desse racionalismo humanista são a forma cristã, a forma marxista e –fortemente abalada pelo choque do conflito que, durante quatro anos, devastou a Europa – a forma liberal e laica, representada, entre outros, por Husserl, Russel, Cassirer, Valéry. Como por acaso, são as três correntes de pensamento contra as quais, a partir de 1927, Heidegger não cessa mais de lutar. O marxismo, como se pode supor, lhe parece encarnar a ameaça mais grave. Ele o detesta a tal ponto que, depois da Segunda Guerra, se apoiará na divisão do seu país e no fato de que as tropas russas estacionam em Berlim para dar a entender que o combate de Hitler, no fundo, fora apenas um combate contra o comunismo. Ou seja, com o distanciamento do tempo, um “bom” combate. Do catolicismo, que foi a “fé de suas origens”, Heidegger afastou-se desde 1918. Não deixará passar nenhuma ocasião de combater o cristianismo em geral, como, por exemplo, no curso de verão de 1935, Introdução a metafísica, ou no texto de 1936, consagrado à elucidação das palavras de Nietzsche “Deus está morto”. E nem seria preciso acrescentar que, para ele, o que separa o cristianismo e o judaísmo é menos importante do que aquilo que os une; e ele os rejeita a ambos em nome de um mesmo “neopaganismo” germânico, saído diretamente do Sturm und Drang. Quanto ao racionalismo liberal, o do Aufklärung e da fenomenologia, Heidegger rompe definitivamente com ele logo depois da publicação de Ser e tempo. Doravante, dedicará uma parte essencial da sua obra a denunciar o império maléfico, segundo ele, desses três grandes “ídolos” da razão moderna que são a ciência, a técnica e a idéia de progresso. Para Husserl, a ciência encontra o seu fundamento na filosofia, ela própria concebida como ciência rigorosa. Heidegger transfere a função fundadora da filosofia para o “pensamento”, afirmando a incomensurabilidade desse último em relação à ciência. Não enfatiza, em várias ocasiões, que “a ciência não pensa”  ? Antikantiana e anti-husserliana, essa fórmula provocante não deixa de lembrar a tese 6.12 do Tractatus. Entretanto, as intenções dos dois autores são bem diferentes. Declarando que a proposição matemática “não exprime nenhum pensamento”, Wittgenstein quer simplesmente destacar a matemática do pedestal platônico sobre o qual Frege a baseara. Em contrapartida, Heidegger pretende ser “subversivo”: acusando a ciência de não pensar, visa nada menos do que lhe retirar toda dignidade intelectual. Do mesmo modo, assimila – para melhor condená-la – a essência da técnica à da metafísica, culpada de comprazer-se em um estado de dependência em relação ao logos ou à “logística” (termo pejorativo com o qual Heidegger designa todas as pesquisas oriundas de Frege e Russel), e responsabilizada globalmente – sem a menor preocupação em apresentar uma prova – por todos os males do mundo. “A devastação da terra”, lê-se em uma série de notas redigidas em resposta aos ataques de Carnap, é apenas o “resultado da metafísica”  , do qual o próprio Carnap seria prisioneiro. Com o mesmo tom peremptório, Heidegger afirma em 1935 que “a Rússia [sic] e a América são, do ponto de vista metafísico, a mesma coisa, o mesmo frenesi sinistro da técnica desencadeada”  , o lhe que permitirá, depois de 1945, não dar razão a nenhum dos dois adversários do Terceiro Reich, único capaz de deter a “decadência” espiritual da Europa. Quanto à idéia do progresso, veiculada ao mesmo tempo pelo comunismo e pelo american way of life, é evidente que ela não tem lugar em Heidegger. Como bom adepto da “revolução” conservadora, é do pasado mais longínquo, e não do futuro, que ele esperava a salvação. É no registro da “volta a” que ele tenta pensar essa salvação. Volta às fontes da filosofia (aos pré-socráticos), por um lado, mas também às fontes da germanidade, da “pureza” das origens intocadas, anteriores às misturas duvidosas. Volta também aos mitos fundadores da terra e do sangue (Blut und Boden). Volta à “pátria do Ser”, que é a mesma coisa que a pátria (Heimat), pura e simplesmente. Volta ao Volk, concebido como cálida e tranqüilizante fraternidade, família rural e protetora, clareira na floresta, caminho no campo (Holzweg), cabana nas montanhas – em suma, a esses arquétipos que, desde o romantismo e até desde a Reforma luterana, não param de escandir o canto plangente da alma alemã e a sua nostalgia da unidade perdida – ou, mais exatamente, nunca atingida. Sem falar do seu ressentimento episódico contra o judeu, imaginado como arquétipo de um modo de vida “inautêntico”, “errante” e, para dizer tudo, “antialemão”. A essa tripla aversão pela ciência, pela técnica e pelo progresso, também se liga a desconfiança bem conhecida de Heidegger em relação à ética, sua convicção de que o ético não tem lugar em um “pensamento do Ser”. Observa-se de novo uma convergência superficial com a idéia wittgensteiniana de que a “ética é impossível”. Mas as intenções são, mais uma vez, bem diferentes. Enquanto Wittgenstein se limita a observar que não se pode traduzir na linguagem dos “fatos” os julgamentos de “valor”, Heidegger contesta o próprio interesse de uma hierarquização dos valores, pois esta só poderia se operar no interior de um discurso racional, e logo, segundo ele, metafísico. A razão dessa estratégia é bem visível. Sem a preocupação com os valores, não há mais necessidade de apresentar uma justificativa para as escolhas éticas. Haveria maneira melhor de preparar o terreno para o advento de um sistema fundado na força e não no direito? Esse recurso à força remete, por sua vez, a um conservadorismo básico. Como o mais forte só tem razão durante o tempo em que é o mais forte, o importante é continuar sendo o mais forte durante o tempo mais longo possível. Daí o “discurso de autoridade” caro a Heidegger, e que continuará sendo o dele muito tempo depois do reitorado. Discurso oracular, o fato de que seja proferido pelo mestre basta para que substituía a prova (“ele disse, logo é verdade”). Discurso mágico, confere à citação – desde que seja de um outro “guia” incontestável: Hitler em 1933, Heráclito nos anos 40, Hölderlin no fim – o papel normalmente atribuído, na filosofia, à argumentação. E tanto pior se a razão demonstrativa não se satisfaz. Evidentemente, é ela que está errada. É de surpreender que, no fim desse rápido percurso, um dos primeiros textos de Heidegger publicado depois da guerra seja uma Carta sobre o humanismo (dirigida a Jean Beauret em dezembro de 1946), na qual o pensador alemã denuncia impiedosamente os “malefícios” do humanismo europeu representado então por Sartre? E que as poucas páginas da entrevista de 1966, claramente destinadas à posteridade, ainda encontram meio de desautorizar abertamente os ideais democráticos, frutos do racionalismo iluminista? Um pensamento tão deliberadamente voltado para a origem só pode tender a recusar a história real, a esvaziá-la de todo conteúdo, até mesmo a reescrevê-la de acordo com seus próprios interesses. Heidegger não saberá resistir a nenhuma dessas três tentações. Poder-se-ia objetar que a problemática da historicidade ocupa um lugar central em Ser e tempo, e que é justamente isso que, a partir de 1938, atrai Sartre para Heidegger. Mas a leitura que o primeiro – que compreende mal a língua alemã – faz do segundo entre 1938 e 1943 repousa de fato sobre um mal-entendido, que a hostilidade de Heidegger contra Sartre revela bem. Pois a “historialidade” do Dasein, tal como o concebe o mestre de Freiburg, deve ser tomada em um sentido “abissal”, que não tem nada a ver com aquilo que o comum dos mortais entende por “história”. Para avaliar a amplitude dessa defasagem que, em Heidegger, separa a realidade e o discurso, basta voltar à interpretação que este propõe, a partir de 1935, da história da filosofia ocidental. Desconcertante à primeira vista, essa interpretação se explica de fato – como mostrou bem, na França, Jean-Pierre Faye  - a partir do contexto político que a gerou. Tudo começa em 1934, com um debate interno à filosofia nacional-socialista. Em abril desse ano, o reitor da Universidade de Frankfrut, Ernst Krieck, principal representante da antropologia “racial” e candidato ao papel de ideólogo oficial do regime (mais tarde, ele se tornará Obersturmbannführer SS), desencadeia contra o seu colega de Freiburg uma operação denegridora, publicando, na revista nazista Volk im Werden (Povo em devir), um artigo no qual a filosofia heideggeriana é qualificada de “niilismo metafísico” (talvez porque se fala muito de “nada” em O que é a metafísica?) e comparada com as “elucubrações” dos “literatos judeus” (Husserl?). A essa acusação, a mais perigosa de todas, Heidegger responde invertendo habilmente a equação. Já no ano seguinte, afirma no seu curso de verão (Introdução à metafísica) que o niilismo consiste em “ficar colado” no ente ao invés de visar o Ser, que este constitui realmente a essência da metafísica, mas que o pensamento do Ser enquanto Ser (no qual está incluído o pensamento do nada) continua sendo a única maneira de livrar-se da metafísica. Em outras palavras, não é ele, Heidegger, mas sim os adversários dele (subtendido: Krieck e os nazistas anti-heideggerianos) que são os verdadeiros “niilistas”. Não se trata de uma “guinada” na obra heideggeriana, pois os textos de 1927 e 1929 já anunciavam a necessidade de uma “destruição” da metafísica, mas de uma estratégia nova, que vai obrigar o “pensador” a reescrever a história da metafísica como história do “niilismo”. Estratégia bem vantajosa, aliás, pois se, de 1935 a 1945, ela lhe permite replicar às acusações que emanam do interior do Partido, também o ajudará, depois da guerra, a firmar a sua reputação – retrospectiva e usurpada – de “oponente” ao nazismo. Três textos particularmente significados pontuam esse laborioso empreendimento de reescritura. Um posfácio acrescentado em 1943 a O que é a metafísica, evocando, sem nomear Krieck, as acusações feitas por este em 1934 (e renovadas em um segundo artigo publicado por Volk in Werden em outubro de 1940), explica que a famosa conferência já tinha como finalidade secreta “superar” o niilismo. Uma introdução acrescentada ao mesmo texto, em 1949, afirma que o niilismo se confunde com a história da metafísica inteira, de “Anaximandro a Nietzsche”. Enfim, um texto de 1955, redigido em homenagem ao escritor nacionalista Ernst Jünger – cujo ensaio A mobilização total (1930) provocou a invenção do conceito de “Estado total” pelo cientista político Carl Schmitt (1988-1985) que se tornou a referência obrigatória de todos os ideólogos fascistas -, confirma a tese segundo o qual a “superação” (Uberwindung) do niilismo (assimilado à metafísica) só pode se efetuar através da sua “apropriação”  (Verwindung), ou seja, mais uma vez, pela sua “destruição”, ou , mais exatamente, pela “desconstrução”  (Abbau) das suas representações constitutivas. Nascidas das exigências da polêmica, tais declarações podem parecer obscuras, hoje. Para compreender melhor a questão, examinemos o seu aspecto mais enigmático: a interpretação, eminentemente discutível, que Heidegger tenta dar do pensamento de Nietzsche, apresentando-o, os seus cursos de 1936 a 1950,  como a forma suprema do niilismo ocidental. Lembre-se, antes de mais nada, que – dirigida contra o platonismo, o cristianismo e o socialismo, mas também contra a estupidez burguesa e o anti-semitismo, coisas que, a seus olhos, resumiam o “espírito alemão” encarnada por Wagner – a crítica nietzscheana dos “valores” também se apoiava em uma denúncia global da filosofia européia. Por um lado, Nietzsche já a qualificava de “metafísica” em sentido pejorativo. Por outro, acusava-a de desembocar no “niilismo”, termo que Nietzsche tirou dos Ensaios de psicologia contemporânea (1883) do escritor francês Paul Bourget. Para Bourget, o niilismo, doença da Europa moderna, se explicava pela “lassidão do seu próprio pensamento”, que uma “humanidade excessivamente refletida” acabara experimentando, e se traduzia por uma renúncia à ação, por uma vontade de auto-supressão. Nietzsche só podia odiar esse niilismo, pois para ele a “vida” era o único “valor” verdadeiro. Em contrapartida, via no seu próprio niilismo “ativo”, isto é, no seu próprio projeto de destruição dos valores opostos à vida, o preâmbulo indispensável à gloriosa “transmutação” anunciada por Zaratustra. Infelizmente para Nietzsche, suas teses serão sucessivamente deformadas, depois de sua morte (1900), por usa irmã – casada com um anti-semita notório, por quem ele só tinha desprezo – e, mais tarde, pela extrema direita nacionalista alemã, durante a guerra de 1914, e nos anos 30 pelos nazistas. Estes últimos se esforçam, em particular, para recuperar em seu proveito o tema da “vontade de potência”, travestindo-o com um discurso “biológico”, baseado na exaltação da “raça” ou da força bruta. Seria fácil para Heidegger mostrar, a partir de 1935, que essa leitura é redutora. Porém o que mais lhe interessa, politicamente falando, não é corrigir um erro de interpretação, aliás grosseiro. É denunciar como “metafísica” a filosofia “biologizante” de Krieck que, pelo seu culto à “vida”, continua a mover-se – sem se dar conta disso – na linguagem “niilista” de uma filosofia dos “valores”... Em suma, com a única finalidade de mostrar-se mais revolucionário do que os ideólogos do Partido, Heidegger vai se dedicar, nos seus cursos sobre a filosofia nietzscheana, a enfatizar as deficiências desta. De fato, Nietzsche fala de inverter os postulados da metafísica, reabilitando o sensível em relação ao inteligível. Entretanto, inverter um sistema, qualquer que ele seja, permite que se mude o seu sentido, mas não permite sair dele. Assim, Nietzsche continua, contra a sua vontade, prisioneiro do niilismo. É apenas o derradeiro representante dessa “época” nefasta de uma história que começou com Anaximandro. E, por isso, é também o primeiro a fazer aparecer a necessidade, para sair dessa situação, de inventar um caminho verdadeiramente novo. Um caminho muito mais ousado que o da “transmutação” dos valores, e ao qual Heidegger afirma – diante dos nazistas primeiros, e, posteriormente, a partir de 1945, diante dos seus vencedores – que só o “pensamento do Ser” como verdadeira “pátria” do homem pode dar acesso. Tão vagas quanto arbitrárias, essas teses terão pelo menos uma utilidade: permitir que Heidegger só seja realmente importunado depois de 1945. O filósofo saberá escapar tanto das críticas dos nazistas “biologizantes” quanto daquelas dos antinazistas. Inquietante jogo duplo. Quanto à simples verdade – isto é, que a interpretação de Nietzsche foi um trunfo decisivo nas lutas de facções no seio da NSDAP – essa verdade, por todo tipo de razões, ainda está longe de ser admitida pelo conjunto da comunidade heideggeriana. Além do mais, a partir de 1945, Heidegger toma um número crescente de precauções para neutralizar qualquer investigação demasiado precisa sobre a realidade dos seus combates anteriores. A Carta sobre o humanismo, por exemplo, mostra as suas primeiras tentativas para explicar como o seu anti-humanismo, se liga, de fato, a um humanismo de grau superior (!), para desculpar a sua utilização das palavras “pátria” e “Ocidente”, para escapar à acusação de ter favorecido à barbárie pregando a “destruição” dos “valores”. Em uma conferência contemporânea da Carta, “Por que poetas?”, qualifica a sua época, marcada pela vitória americano-soviética, de “tempo de infelicidade” e de “noite do mundo”.  Depois, nos anos 50, acaba por refugiar-se em uma esfera puramente especulativa, como se sua “meditação” fosse excessivamente profunda para manter a menor relação com a história real dos homens ou com as peripécias deste mundo.  Abandonando a humanidade ao reinado pernicioso da técnica, passa o resto da vida esculpindo para a posteridade de um personagem de “pensador” incompreendido, condenado ao exílio interior, não tendo mais praticamente interlocutor nenhum além de Heráclito ou de Hölderlin. O diálogo Heidegger-Hölderlin, em particular, marcado pela transformação final da “questão do Ser” em uma pesquisa poético-mística de um “sagrado” primordial, “tautológico” ou inefável, tornar-se-á uma espécie de “objeto” cultural enigmático e fascinante. É verdade que esse fascínio permanecerá limitado na Alemanha. Em contrapartida, provocará devastações nos países latinos. E, em primeiro lugar, na França. Há na história das idéias recentes uma página curiosa que poderia se intitular: como a esquerda francesa, para fugir de Marx, salvou Heidegger do esquecimento. A moda começa muito cedo, pois no início dos anos 30 o pensametno heideggeriano já é bem recebido em Paris. Georges Gurvitch lhe dedica ma patê do seu livro sobre As tendências recentes da filosofia alemã (1930). O jovem Emmanuel Lévinas, que se entusiasmou em 1927 por Ser e tempo, publica em 1932 um artigo sobre “Martin Heidegger e a ontologia”. O engajamento nacional-socialista do reitor de Freiburg, embora conhecido desde 1933 – Alexandre Koyré, entre outros, fala disso com Lévinas  -, ainda não suscita toda a repulsa que a guerra e, depois, a revelação da Shoah provocarão. Assim, Sartre deixa-se seduzir sem muitos escrúpulos pela dialética do “ser” e do “nada”, que ele descobre na tradução francesa (1938) de O que é a metafísica?, feita por Henry Corbin, assistente de Koyré na École Pratique dos Hautes Études e futuro especialista em xiismo iraniano. Com a Libertação, o sucesso do existencialismo sartreano leva a obra de Heidegger para o foco da atualidade. Mas, enquanto isso, o peso dos engajamentos políticos do ex-reitor começa a pesar sobre a sua reputação. Com a verdadeira natureza do nazismo tornando-se clara, Sartre decide então afastar-se, publicando na sua revista Les Temps Modernes (1946=47) cinco artigos que traçam o dossiê da maioria dos elementos disponíveis. Três deles (de Maurice de Gandillac, Karl Löwith, Eric Weil) fazem um julgamento negativo do filósofo. Só Alphonse de Waelhens e Frédéric de Towarnick tentam absolvê-lo. A partir de então, o debate está aberto: pode separar-se filosofia e política? Traçar uma fronteira entre, de um lado, a condenação teórica do humanismo e, do outro, a admiração pela “revolução” nacional-socialista? Sartre responde que não. Fará, em 1952, uma breve visita a Heidegger, marcada por incompreensão mútua, mas deixará posteriormente de referir-se ao seu pensamento. Este é ainda mais nitidamente rejeitado pelos marxistas. Restam os outros, os que recusam ao mesmo tempo Marx e o Sartre “marxizante” dos anos 50; entre eles, diferentes atitudes, mais ou menos ambíguas, vão se desenvolvendo progressivamente. A primeira delas se parece com uma espécie de fascinação religiosa. Seu principal representante, Jean Beaufret (1907-82), é entretanto um ex-membro da Resistência. É difícil compreender os motivos que o levarão, pouco antes de sua morte, a escrever cartas de simpatia a Robert Faurisson, o homem que acredita ter destruído o “mito” das câmaras de gás. Mas, na verdade, também não se compreende bem por que Beaufret, que faz uma visita a Heidegger em setembro de 1946, se apressa a desculpá-lo, afirmando que a política não interessa ao “pensador”, e instaura em torno dele um culto fervoroso, do qual se torna o sumo sacerdote. Uma variante dessa atitude devota consiste em admitir – como faz, por exemplo, François Fédier, um dos principais tradutores de Heidegger em francês – que o filósofo cometeu efetivamente algumas “bobagens” em 1933, mas que o peso desses “erros” é desprezível, em relação ao valor da parte “sã” da obra. O inconveniente é que se deve então quebrar a coerência desta, pois é preciso excluir dela muitos textos, para torná-la “impecável”. E isso contra a vontade do próprio Heidegger, que se recusou até o fim a fazer qualquer autocrítica. Mais espantoso ainda é o comportamento de uma família intelectual que, a despeito das peripécias da história, pretende dar prioridade absoluta ao diálogo franco-alemão. Essa família permitiu, por volta de 1880, o sucesso de Schopenhauer e, por volta de 1930, o de Hegel. Nos anos 50, ela compreende, entre outros, Alexandre Kojève, Jean Hyppolite, Jean Wahl. Estes são ao mesmo tempo antinazistas e anticomunistas (o próprio Kojève só se diz comunista “passando por cima de Marx”). Leitores de Hegel – de quem Hyppolite traduziu, em 1941, a Fenomenologia do espírito – interessam-se por Nietzsche, por Husserl, por Heidegger. E, apesar dos enganos deste último, decidem integrá-lo na grande tradição germânica que – depois de três guerras em menos de um século – continua, para eles, com o mesmo prestígio. Por que essa escolha? Por vontade de conciliação, por preocupação em acabar logo com a briga franco-alemã e talvez por desejo de exorcizar o traumatismo que constituiu, para esses germanófilos convencidos, a revelação da Shoah. Mas, principalmente, porque a intelligentsia francesa dos anos 50, quando recusa Sartre e Marx, não sabe mais a que santo filosófico se devotar. Heidegger aparece como um salvador possível. Ainda mais que o seu pensamento, apresentando como apolítico por seus acólitos, responde exatamente aos desejos dessa intelligentsia, que, depois de Auschwitz e Hiroshima, acaba por perder suas últimas ilusões no incêndio dos conflitos coloniais. O sucesso de Heidegger na França começa realmente em 1955, com a famosa “Décade” de Cerisy-la-Salle, organizada em sua homenagem por Jean Beaufret e kostas Axelos (nascidos em 1924). Sartre e Merleau-Ponty recusam-se a comparecer, mas o poeta René Char aceita, e, à margem dessa “Décade”, Heidegger passa alguns dias em companhia do psicanalista Jacques Lacan. Char e Lacan foram apresentados a Heidegger por Beaufret. Lacan vê no existencialismo heideggeriano a dimensão trágica que falta a Sartre, e que permitiria dar às doutrinas positivistas de Freud um “suplemento de alma” filosófico. Quanto a Char, ex-membro da Resistência como Beaufret, fica lisonjeado com o interesse que o filósofo alemão lhe demonstra. Os dois se simpatizam. Ausente de Cerisy, outro escritor importante, Maurice Blanchot, que conviveu com a extrema direita durante os anos 30, também contribui para propagar nos meios de vanguarda o pensamento do “segundo” Heidegger, aquele cuja carreira começou de novo em 1946. Encantado, o filósofo seduz os novos amigos. Tem tudo a ganhar. No momento em que, na Alemanha, os jovens (Habermas) se afastam dele, a França vai se encarregar de lhe garantir uma nova notoriedade. Três seminários dados por Heidegger em Thor, perto de Avignon, a convite de René Char (1966, 1968,  1969), levam essa notoriedade ao auge. Pouco a pouco, o círculo dos heideggerianos se amplia. Aos nomes já citados, acrescenta-se os de Paul Ricoeur, Michel Foucault, Jacques Derida. Ricoeur desenvolve, paralelamente a Gadamer, uma concepção da “hermenêutica” da fenomenologia, colorida de cristianismo, de existencialismo e de psicanálise. Foucault se serve de Heidegger para reler Nietzsche. Enfim, marcado pela influência de Blanchot, Derrida inscreve o seu próprio projeto – “desconstruir” a metafísica – na linhagem da Abbau heideggeriana. Até o marxista Louis Althusser será temporariamente atingido por essa moda. Como explicar a rapidez com a qual esta se difunde nos meios intelectuais? Ao perdão de uns, à germanofilia e ao anticomunismo dos outros, acrescenta-se, no fim dos anos 60, um fator novo: a voga do estruturalismo nas ciências sociais. Evidentemente, essas ciências não interessam a Heidegger. Mas o anti-humanismo “teórico” delas – reivindicado por Lévi-Strauss, Lacan, Althusser e Foucault – só pode concordar com aquele que, a partir de 1927, caracteriza o pensamento heideggeriano. O estruturalismo, por outro lado, renova o interesse pela linguagem e pelos signos em geral: compreende-se que Blanchot, Foucault ou Derrida, atentos como são aos problemas da escrita, possam snetir-se atraídos pelo verbo audacioso do mestre de Freiburg, por sua maneira de transgredir deliberadamente os limits instituídos da expressão filosófica, esquecendo, na leitura “estetizante” que fazem, as implicações políticas do projeto heideggeriano. Só a voz discordante de Jean-Pierre Faye se faz ouvir, a partir de 1961, em diversos antigos, mas sem conseguir inverter a corrente da moda, o que também não consegue a excelente análise, de 1988, do sociólogo Pierre Bourdieu, A ontologia política de Martin Heidegger. Quanto à biografia de Heidegger por Hugo Ott (1988, tradução francesa 1990), que confirma de modo convincente aquilo que já sabiam os que queriam saber – pois o essencial dos fatos sempre foi conhecido -, a história das reações hostis que ela suscita na França já mereceria um estudo à parte. E certamente o trabalho de Ott vem tarde demais, pois, nesse intervalo, Heidegger entra na lista oficial dos autores que o Ministério da Educação francês recomenda para o exame de conclusão dos estudos secundários – lista na qual, em troca, não aparecem nem Russel, nem Wittgenstein, nem Carnap, nem Marcuse... Na entrevista de 1966, Heidegger afirma que amigos franceses (Beaufret?) lhe confessaram que, quando queriam pensar ou “filosofar para valer”, tinham que renunciar à sua língua e passar para o idioma alemão, tão grande lhes parecia a superioridade intelectual deste... Não insistamos na ingenuidade da declaração. Mas vale a pena observar, como fez Henri Meschonic , a linguagem heideggeriana. Metáforas e jogos de palavras abundam, bem como esses neologismos que a plasticidade do alemão favorece mais, efetivamente, do que a língua francesa. Se Heidegger, que usou e abusou dessas facilidades, aspirasse apenas ao nobre título de poeta, não seria um grande mal. Mas, pelo fato de que pretende sustentar um discurso verdadeiro, o próprio discurso do Ser, suas acrobacias verbais foram promovidas à honra do veículo do “pensamento” – em prejuízo, evidentemente, da linguagem conceitual e dos procedimentos demonstrativos habitualmente exigidos pela filosofia. É impossível dizer em poucas frases a influência perniciosa que essa política exerceu sobre gerações de estudantes – principalmente na França, onde os tradutores e comentaristas não hesitaram em reforçá-la, colando seu próprio jargão à algaravia do mestre e ameaçando com represálias os que protestassem. Mas, para que se queixar, se o próprio Heidegger nos impediu de fazê-lo? A razão, escreve ele em 1943, é “o adversário mais obstinado do pensamento”  . Eis uma profissão de fé anti-racionalista que não se preocupa com meios-tons. Se a tomássemos ao pé da letra, seria necessário concluir que o pensamento heideggeriano, situando-se fora do campo da filosofia instituída, escapa a qualquer critica filosófica. Não nos restaria mais nada, então, a não ser adotar a seu respeito uma das três atitudes seguintes. Ou aceitaríamos que esse pensamento é “verdadeiro”  e renunciaríamos com isso, a qualquer filosofia. Ou deveríamos classificá-lo como um “gênero” literário sem nenhuma ligação com a filosofia, para poder praticar esta última, “como se nada tivesse acontecido”. Ou então, como sugere Richard Rorty, deveríamos redefinir a prática da filosofia de modo bastante amplo para poder incluir nela, entre outras coisas, o pensamento heideggeriano. Nesse caso, diríamos que, longe de um método de análise conceitual que permite determinar, por via argumentativa, a maior ou menor exatidão de certas escolhas intelectuais, a filosofia é apenas um modo de expressão da subjetividade, dotado de uma autonomia total quanto à definição de seus próprios códigos – em suma, uma linguagem “semiprivada”, cuja finalidade se reduziria ao deleite do seu criador e, eventualmente, de seus leitores. Nenhuma dessas três soluções é plenamente satisfatória. A primeira é puramente religiosa (crer sem compreender). A segunda deixa inexplicado o impacto específico – e de modo algum desprezível – que Heidegger teve sobre muitos filósofos profissionais. A terceira, enfim, equivale a tirar da filosofia toda especificidade – e, o que é mais grave, a solapar as próprias bases da exigência racionalista. Entretanto, a situação não é sem saída, pois, observando-se melhor, a pergunta que suscitou essas três respostas – o que se deve fazer com o pensamento heideggeriano, já que este se situa fora do espaço da razão? – não é uma boa pergunta, já que provém de uma premissa errônea. De fato, ao contrário do que afirmou, Heidegger nunca renunciou a esse racionalismo que ele não pára de denunciar. Primeiro, porque passou grande parte da sua vida de professor lendo e comentando – às vezes com brilho – textos filosóficos. Depois, porque, mesmo nos mais obscuros dos seus escritos, recorreu, apesar de tudo, a conceitos e a argumentos, embora estes nem sempre sejam explícitos. Poderia ele fazer de outro modo, aliás, sem correr o risco de condenar-se a uma total ilegibilidade? Enfim, na medida em que seu pensamento é também um pensamento político, estreitamente ligado a uma ideologia determinada, o nacional-socialismo, é solidário de uma outra forma de racionalidade: aquela que, durante doze anos, permitiu a essa ideologia exercer um domínio total sobre a sociedade alemã, inclusive na organização da guerra e da “solução final”. Assim, paradoxalmente, o verdadeiro problema é o seguinte. Se não fosse mais do que pensamento puro, o pensamento de Heidegger não seria mais embaraçoso do que se fosse poesia pura. Infelizmente para ele, não é nem uma coisa nem outra. Ele é apenas, afinal, uma filosofia. Mas uma filosofia da espécie mais discutível, pois repousa sobre um anti-racionalismo de princípio, mas consegue expressar-se em ma linguagem suficientemente “racional” para convencer certos leitores. Em resumo, se essa filosofia é ao mesmo tempo problemática e perigosa, é porque nela a razão e a desrazão se casam de modo único e particularmente inquietante. Exatamente como o horror próprio a Auschwitz, que também reside em uma mistura sem precedentes de loucura (nos fins) e de racionalidade (nos meios utilizados para alcançar esses fins). Mistura cuja origem foi preciso começar a indagar depois da Segunda Guerra Mundial. Mesmo que se devesse, para isso, instruir o processo da própria razão, a fim de melhor compreender como, no espaço de dois séculos, as Luzes se enganaram a tal ponto.

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