Eternidade versus Imortalidade

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    Ariadne
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    Em A Condição Humana, uma das questões tratadas por Hanna Arendt é a contraposição entre Eternidade e Imortalidade. Imortalidade, nas palavras da autora, é a continuidade no tempo, vida sem morte nesta terra e neste mundo, tal como foi dada, segundo o consenso grego, à natureza e aos deuses do Olimpo. A preocupação dos antigos gregos com a imortalidade resultou, diz a obra, de sua experiência de uma natureza imortal (a vida perpétua da natureza) e de deuses imortais que, juntos, circundavam as vidas individuais dos homens mortais. Inserida  num cosmo onde tudo era imortal, a mortalidade torou-se o emblema da existência humana. Os homens são “os mortais”, as únicas coisas mortais que existem porque, ao contrário dos animais, não existem apenas como membros de uma espécie cuja vida imortal é garantida pela procriação. A mortalidade dos homens reside no fato de que a vida individual, como uma história vital identifcável desde o nascimento até a morte, advém da vida biológica. Da mesma perspectiva grega, porém, dada sua capacidade de feitos imortais e por serem capazes de deixar atrás de si vestígios imorredouros, os homens, a despeito de sua mortalidade individual, atingem seu próprio tipo de imortalidade e demonstram sua natureza "divina". A diferença entre o homem e o animal aplica-se à própria espécie humana: só os melhores (os aristoi), que constantemente provam ser os melhores (aristeuein, verbo que não tem equivalente em nenhuma outra língua) e que "preferem a fama imortal às coisas mortais", são realmente humanos; os outros, satisfeitos com os prazeres que a natureza lhes oferece, vivem e morrem como animais. Esta era ainda a opinião de Heráclito, opinião da qual dificilmente se encontra equivalente em qualquer filósofo depois de Sócrates. Quanto a isso, a autora observa que não faz muita diferença, no contexto de sua obra, se foi o próprio Sócrates ou se foi Platão quem descobriu o eterno como o verdadeiro centro do pensamento estritamente metafísico. Depõe muito a favor de Sócrates, diz a filósofa, o fato de que só ele, entre todos os grandes pensadores -- singular neste aspecto como em muitos outros -- jamais tenha se entregue ao trabalho de dar forma escrita a seus pensamentos; pois é óbvio que, por mais que um pensador se precoupe com a eternidade, no instante em que se dispõe a escrever os seus pensamentos deixa de estar fundamentalmente preocupado com a eternidade e volta a sua atenção para a tarefa de legar aos pósteros algum vestígio deles. Adota a vita activa e escolhe uma forma de permanência e de imortalidade potencial. Mas uma coisa é certa, diz a autora: é somente em Platão que a preocupação com o eterno e a vida do filósofo são vistos como inerentemente contraditórios e em conflito com a luta pela imortalidade, que é o modo de vida do cidadão, o bios politikos. A experiência do eterno tal como a tem o filósofo -- experiência que, para Platão, era arrheton ("indizível") -- só pode ocorrer fora da esfera dos negócios humanos e fora da pluralidade dos homens. É o que vemos, segundo ela, pela parábola da Caverna, na República de Platão, na qual o filósofo, tendo-se libertado dos grilhões que o prendiam aos seus semelhantes, emerge da caverna, por assim dizer, em perfeita singularidade, nem acompanhado nem seguido de outros. Politicamente falando, se morrer é o mesmo que deixar de estar entre os homens, a experiência do eterno é uma espécie de morte; a única coisa que a separa da morte real é que não é final porque nenhuma criatura viva pode suportá-la durante muito tempo. E é isto precisamente que separa a vita contemplativa da vita activa no pensamento medieval. No entanto, o fator decisivo é que a experiência do eterno, diferentemente da experiência do imortal, não corresponde a qualquer tipo de atividade nem pode nela ser convertida , visto que até mesmo a atividade do pensamento, que ocorre dentro de uma pessoa através de palavras, é obviamente não apenas inadequada para propiciar tal experiência mas interromperia e poria a perder a própria experiência. A theoria, ou "contemplação", explica Arendt, é a designação dada [pelos gregos] à experiência do eterno, em contraposição a todas as outras atitudes que, no máximo, podem ter a ver com a imortalidade. Talvez a descoberta do eterno feita pelos filósofos, diz, tenha sido favorecida pelo fato de que eles, muito justificadamente, duvidavam das possibilidades da polis no tocante à imortalidade ou até mesmo à permanência; e talvez o choque de tal descoberta tenha sido tão grande que eles não puderam deixar de olhar como vaidade ou vanglória qualquer busca de imortalidade, o que certamente os colocava em franca oposição à antiga cidade-estado e à religião que a inspirava. Contudo, a posterior vitória da preocupação com a eternidade sobre todos os tipos de aspiração à imortalidade não se deveu ao pensamento filosófico. A queda do Império Romano, explica a autora, demonstrou claramente que nenhuma obra de mãos mortais pode ser imortal, e foi acompanhada pela promoção do evangelho cristão, que pregava uma vida individual eterna, à posição de religião exclusiva da humanidade ocidental. "Juntas, ambas tornavam fútil e desnecessária qualquer busca de imortalidade terrena; e conseguiram tão bem transformar a vita activa e o bios politikos em servos da contemplação que nem mesmo a ascendência do secular na era moderna e a concomitante inversão da hierarquia tradicional entre ação e contemplação foram suficientes para fazer sair do oblívio à procura da imortalidade que, originalmente, fora a fonte e o centro da vita activa."   

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