A MUTABILIDADE DA LITERATURA – Washington Irving

Washington Irving (Nova Iorque, 3 de abril de 1783 – 28 de novembro de 1859)

A MUTABILIDADE DA LITERATURA

UM COLÓQUIO NA ABADIA DE WESTMINSTER

Sei que sob a lua tudo decai,
E o que os mortais ao mundo trouxeram,
Cedo ou tarde a pó se reduzirá.
Sei que todos os celestes poemas das musas
Com lavor de espírito, os quais, tão preciosos
Quais sons vadios, por poucos, ou ninguém são procurados,
Que nada existe mais falaz que o mero louvor.
Drummond of HawtHornden.

EXISTEM certos estados de espírito de quase rapto, sob os quais, naturalmente, fugimos da bulha e da luz e buscamos algum recanto silente onde possamos dar azo aos nossos sonhos e, sossegados, construir nossos castelos no ar.

Nesse estado, deixei-me errar pelos velhos claustros da Abadia de Westminster, gozando aquele luxo de pensamento itinerante, a que costumamos dignificar com o epíteto de reflexão. Vai senão quando, de inopino, um bando de meninos desatinados, da Escola Westminster, no aceso de uma partida de futebol, invadiu a quietude monástica do lugar, fazendo ecoarem com a sua alegria os corredores abobadados e os túmulos.

Tratei de refugiar-me do vozerio, penetrando ainda mais fundo na solidão das colunas e solicitei a um dos bedéis ingresso na biblioteca. Conduziu-me o funcionário através de um rico portão, fragmentária escultura de idades antigas, o qual dava para um corredor sombrio que levava à casa do cabido e à sala onde está depositado o Livro do Dia do Juízo. No corredor, há uma portinha à esquerda, em cuja fechadura o bedel introduziu uma chave. Estava dupla mente trancada e, talvez pelo pouco uso, não foi sem difi culdade que a abriu. Subimos, então, por uma escada estreita e escura e, atravessando uma segunda porta, alcan çamos a biblioteca.

Encontrei-me numa clássica galeria cujo forro era susten tado por vigas maciças de velho carvalho inglês. Iluminava-a sobriamente uma série de janelas góticas, instaladas a uma boa altura do piso, as quais aparentemente davam para os telhados dos claustros.

Por cima da lareira via-se uma pintura antiga de algum reverendo dignitário da Igreja, com seus paramentos. Os livros encontravam-se em redor da galeria, arrumados em estantes de carvalho trabalhado. Consistiam principalmente em velhos escritores polemistas e estavam muito mais gastos pelo tempo do que pelo uso. No centro da biblioteca existia uma solitária mesa, e sobre a mesma, dois ou crês volumes, um tinteiro vazio e algumas penas ressecadas por longo abandono.

O lugar parecia adequado para o estudo e profunda meditação. Era fundamente sepultado entre as paredes maciças da Abadia e abrigado do tumulto do mundo. Vez por outra, eu escutava unicamente os gritos dos estudantes, partindo fracamente do convento e o ruído de um sino convocando os fiéis e que ecoavam brandamente ao longo dos telhados da Abadia.

Aos poucos, os gritos de alegria foram-se desvanecendo, até sucumbirem. Cessaram as badaladas do sino e um profundo silêncio reinou por toda a galeria. Eu havia retirado um grosso volume, curiosamente encadernado em pergaminho, com fecho de latão. Sentei-me à mesa, numa venerável cadeira de braços. Em lugar de ler, no entanto, deixei–me encantar pelo solene ar monástico e quietude mortal do ambiente e entreguei-me a uma sequência de devaneios.

Enquanto fitava os velhos livros em derredor, com suas capas douradas, arrumados nas prateleiras, e cujo repouso dir-se-ia sempre imperturbado, não pude deixar de considerar a biblioteca uma espécie de catacumba literária onde os autores, quais múmias, são impiedosamente encerrados e ali abandonados para amarelecerem e desfazerem-se no pó do esquecimento.

Quantas enxaquecas — pensei eu — terá causado cada um desses livros, ora abandonados com tal indiferença! Quantos dias de trabalho exaustivo! Quantas noites em claro! Como não terão seus autores mergulhado na solidão das celas e dos claustros! Quantos não se privaram do convívio da sociedade e da ainda mais abençoada natureza, para se devotarem a dolorosas pesquisas e intensas reflexões!

E tudo isso para quê? Para ocupar uma polegada de prateleira empoeirada — para que os títulos de suas obras sejam lidos uma vez ou outra, no futuro, por algum pastor sonolento ou errante casual, como eu, e, em época mais remota, para ser mesmo perdido de memória. Tal a importância dessa imortalidade tão galardoada. Simples notícias efémeras, repercussão circunscrita. Qual o som daquele sino que ainda agora vibrou entre as torres, enchendo-nos os ouvidos por um momento, permanecendo ligeiramente em eco e sendo jugulado finalmente como um ser que não existisse. Enquanto me punha a reflectir e a meditar sobre essas inúteis especulações, a cabeça apoiada na mão, tamborilando com a outra o volume, abri por acaso o fecho do livro.

Para suprema estupefacção, o livrinho bocejou duas ou três vezes, como alguém que despertasse de um profundo sono, depois articulou um rouco "olá!" e por fim começou a falar. A princípio, sua voz era grossa e interrompida, muito perturbada por uma teia que alguma aranha estudiosa ali houvera tecido e por ter talvez contraído um resfriado devido à exposição por muito tempo ao frio e à humidade da Abadia.

Dentro em pouco, no entanto, tornou-se mais civilizado e logo lhe descobri loquacidade e muita verve. Sua linguagem, com efeito, era um tanto esquisita e obsoleta e a pronúncia seria hoje considerada bárbara, mas esforçar-me -ei para, na medida do possível, traduzi-la para a linguagem moderna.

Começou com invectivas contra as injustiças do mundo, contra a relegação do merecimento à obscuridade e tópicos quejandos, surrados azedumes literários e queixou-se amargamente de não ter sido aberto há mais de dois séculos. Que o deão só raramente se dignava penetrar na biblioteca, retirando às vezes um ou dois volumes, com os quais se distraía alguns momentos para em seguida recolocá-los na estante.

"Com que diabos pretendem" — exclamou o pequenino volume, que me pareceu um tanto colérico. — "Com que diabos pretendem manter vários milhares de volumes encerrados aqui e vigiados por uma turma de velhos bedéis, quais beldades num harém, unicamente para serem vistos de longe em longe pelo deão? Os livros foram feitos para proporcionarem prazer e para o desfrutar. Por mim haveria uma lei que obrigasse o deão a nos visitar ao menos uma vez por ano. Se a tarefa lhe fosse muito pesada, que permitissem a livre entrada, vez por outra, de toda a Escola de Westminster para que, de qualquer modo, nos pudéssemos arejar."

"Acalmai-vos, meu nobre amigo" — respondi-lhe. — "Não estais ajuizando de como sois mais rico do que a maioria dos livros da vossa geração. Sendo arquivado nesta vetusta biblioteca, sois como os restos entesourados daqueles santos e monarcas, que jazem como relíquias nas capelas adjacentes. E não vos esqueçais de que os restos dos vossos contemporâneos mortais, que seguiram o curso ordinário da vida, de há muito reverteram ao pó."

"Cavalheiro" — retrucou o livrinho, alvoroçando as folhas e agigantando-se — "eu fui escrito para todo o mundo e não para as traças de uma abadia. Fui destinado a circular de mão em mão, como as outras obras contemporâneas. Mas aqui fui sufocado há mais de duas centúrias e podia cair presa silenciosa desses vermes que devoram minhas vísceras, se, por acaso, não me houvésseis proporcionado a oportunidade de proferir as últimas palavras, antes de despedaçar-me."

"Meu caro amigo" — obtemperei — "se vos tivésseis entregue à circulação de que falais, de há muito haveríeis perecido. A julgar pela vossa aparência, estais bem entrado em anos. Poucos dos vossos contemporâneos devem hoje existir. E esses poucos devem sua longevidade a terem sido, como vós, encerrados em velhas bibliotecas. Tais livros, permiti–me acrescentar, ao invés de os assemelhardes a haréns, podíeis com mais propriedade e justiça terdes comparado àquelas enfermarias anexas a estabelecimentos religiosos, em benefício dos anciãos e dos decrépitos e onde, por excesso de nutrição e falta de trabalho, sempre resistem a uma velhice inútil e espantosa. Falais de vossos contemporâneos, como se estivessem em circulação. Onde poderemos encontrar tais obras? Que se conta de Robert Grosseteste, ou de Lincoln? Ninguém terá lutado tanto quanto este pela imortalidade. Consta que escreveu quase duas centenas de livros. Construiu, por assim dizer, uma pirâmide de livros para perpetuar o nome. Mas, ai dele! a pirâmide de há muito ruiu e apenas alguns fragmentos estão espalhados por várias bibliotecas, onde raramente são perturbados, mesmo pelos fósseis. Que sabemos de Geraldus Cambrensis, historiador, antiquário, filósofo, teólogo e poeta? Declinou de dois bispados para que pudesse recolher-se e escrever para a posteridade. Mas a posteridade nunca indaga dos seus esforços. Que resta de Henry of Huntingdon, que além de uma erudita história da Inglaterra, escreveu um tratado sobre a contumácia do mundo, de que o mundo vingou-se, esquecendo-o? Que se diz de Joseph of Exeter, cognominado o milagre do seu século na composição clássica? Dos seus três notáveis poemas épicos um perdeu-se irremediavelmente, só sobrevivendo um pequeno fragmento. Aos outros, só uma plêiade de curiosos da literatura conhece. Já os seus versos de amor e epigramas desapareceram sem remédio. Que subsiste ainda de

John Wallis, o franciscano, que mereceu o epíteto de "Ár vore da Vida"? de William of Malmesbury? — de Simeon of Durhan? — de Benedict of Peterborough — de John Hauvill of St. Albans? — de…"

"Suplico-vos, amigo" — gritou o livro num tom imperti nente — "que idade pensais que tenho? Falais de autores que viveram muito antes da minha geração e que escreveram em latim e em francês, os quais, de um certo modo, se desterraram, sendo, pois, justo, o esquecimento ]. Mas eu, cavalheiro, vim ao mundo pelas mãos do consagrado Wynkyn de Worde. Fui escrito na minha própria língua numa época em que já se tornara definida. E, em verdade, fui considerado padrão de inglês castiço e elegante."

(Devo esclarecer que essas observações foram vazadas em termos tão obsoletos que tive dificuldades inauditas para traduzi-los para a fraseologia moderna.)

"Perdoai-me" — respondi-lhe — "por enganar-me na vossa idade. Mas isso pouco importa. Quase todos os escritores do vosso tempo caíram no esquecimento. E as publicações de Worde são meras raridades literárias nas mãos de coleccionadores de livros. A pureza e estabilidade da língua, outrossim, nas quais estribais vossas reivindicações de perpetuidade, têm sido a confiança falaz dos autores de todos os tempos, mesmo dos tempos remotos do digno Robert of Gloucester, que escreveu sua história em rimas de baixo saxão 2.

"Assim hoje, muita página do Poço de inglês genuíno e impoluto de Spencer, em quem a língua sempre jorrou de um veio ou fonte cerebral e não era uma simples confluên-cia de vários idiomas permanentemente sujeitos a mudanças e intercâmbios. Eis o que tem feito a literatura inglesa tão extremamente mutável e tão instável a reputação construída sobre ela. Se o pensamento não puder entregar-se a algo mais permanente e imutável do que a semelhante meio, até o pensamento deverá partilhar da sorte de tudo o mais e decairá também.

"Isto deverá servir de alerta à vaidade e exultação do mais popular escritor. Descobrirá que a língua em que embarcou sua fama altera-se constantemente e é passível das dilapidações do tempo e dos caprichos da moda. Olhará o passado e verá os primeiros escritores do seu país, outrora Eavoritos da sua época, suplantados pelos escritores modernos. Bastaram alguns anos para que se encobrissem na obscuridade e seus méritos só podem ser degustados pelo paladar esquisito das traças. E, assim, ele prevê a sorte do seu próprio livro, o qual, todavia, poderá ser admirado em seus dias e considerado como modelo de pureza, o que não impedirá de, no decorrer dos anos, tornar-se antiquado e obsoleto até ficar quase tão ininteligível em sua própria terra como um obelisco egípcio, ou uma daquelas inscrições rúnicas que se dizem existir nos desertos da Tartaria.

"Confesso que" — ajuntei com alguma emoção — "quando contemplo uma biblioteca moderna, plena de obras novas, com toda a bravura de ouropéis e luxuosas encadernações, tenho desejo de sentar-me para chorar, como aconteceu ao bom Xerxes quando contemplou seus exércitos, em todo o esplendor e garbo militares e reflectiu que dentro de cem anos nenhum daqueles viveria mais!"

"Ah!" — respondeu o livro num profundo suspiro — "percebo como são as coisas. Esses escribas modernos superam todos os bons escritores clássicos. Suponho que nada se lê hoje em dia senão a Arcádia de Sir Philip Sidney, as peças e o Espelho para os Magistrados, de Sackville, ou a forma ultra-correcta do inigualável John Lily."

"Ei-vos novamente enganado" — afirmei. — "Os escritores que supondes em voga, o que aconteceu realmente quando estáveis em circulação, de há muito desapareceram. A Arcádia, de Sir Philip Sidney, cuja imortalidade foi tão ardentemente profetizada por seus admiradores3 e que, com efeito, é repleta de pensamentos nobres, imagens delicadas e graciosos tropos de linguagem, é hoje raramente sequer mencionada. Sackville marchou para a obscuridade, o que também aconteceu ao próprio Lily, embora suas obras tenham sido o deleite de uma corte e aparentemente perpetuadas num provérbio. Actualmente, nem de nome é conhecido.

"Uma inteira multidão de autores, que escreveram e agarraram-se porfiadamente ao tempo foram igualmente de roldão, com toda a sua bagagem literária e controvérsias. Ondas após ondas da literatura subsequente rolaram sobre eles até que ficaram tão profundamente submersos que só rarissimamente algum escafandrista de boa vontade, em busca de fragmentos da antiguidade, traz à tona espécimes, para gáudio dos curiosos.

"De minha parte" — prossegui — "considero essa versatilidade da língua uma sábia precaução da Providência em benefício do mundo, em geral, e dos autores, em particular. Raciocinando por analogia, contemplamos diariamente as lindas e variadas espécies de vegetais brotando, florescendo, enfeitando os campos por um curto espaço de tempo e depois reduzindo-se a pó, para darem lugar a seus sucessores. Se assim não fora, a fecundidade da natureza seria uma maldição em vez duma bênção. A terra gemeria com uma vegetação excessiva e exuberante e sua superfície seria um cipoal deserto. De igual modo, as obras do génio e do saber tombam para cederem lugar às produções posteriores.

 

A língua altera-se gradativamente e com ela fenece a litera-tura dos autores, que floresceram a seu tempo. Doutra maneira, as forças criadoras do génio super-saturariam o mundo e a inteligência ficaria inteiramente perplexa diante do labirinto sem saída da literatura.

"Outrora houve muitos empecilhos a essa multiplicação excessiva. As obras eram manuscritas, o que constituía uma operação vagarosa e exaustiva. Eram escritas ou em pergaminho, que era dispendioso, ocasionando muitas vezes a necessidade de uma obra ser apagada para dar lugar a outra; ou no papiro, frágil e extremamente precário. A profissão de escritor era limitada e improfícua, quase só mesmo abraçada por frades no lazer e solidão de suas celas. A acumulação de manuscritos era lenta e custosa e quase inteiramente confinada aos conventos.

"De um certo modo, deve-se a essas circunstâncias não termos sido inundados pela intelectualidade da antiguidade clássica e não ter sofrido solução de continuidade a torrente do pensamento e perecido no dilúvio o génio moderno. Mas a invenção do papel e da imprensa puseram termo a todas aquelas limitações. Fizeram de cada um de nós um escritor e possibilitaram a todas as mentes transferirem-se para letra de forma e difundirem-se por todo o mundo intelectual.

"As consequências são alarmantes. O córrego da literatura expandiu-se numa torrente — aumentou-se num rio e extravasou-se num mar. Há alguns séculos, cinco a seis centenas de manuscritos constituíam uma grande biblioteca. Mas que diríeis de bibliotecas como as que de facto existem hodiernamente e que ostentam três ou quatro centenas de milhares de volumes, legiões de autores em novas elaborações e prelos girando nervosamente numa terrível e crescente actividade, no afã de duplicar-lhes e quadruplicar-lhes o número?

"A menos que alguma mortandade inesperada irrompa entre a progénie das musas, agora que se mostram tão férteis, apavoro-me pela posteridade. Temo que a simples flutuação da língua não será suficiente. A crítica muito poderá fazer. Cresce com o crescimento da literatura < assemelha-se a um daqueles freios salutares sobre a população, preconizados pelos economistas. Era mister, portanto, todo apoio possível à crítica, boa ou má, a fim de que se desenvolvesse. Mas temo que tudo será inútil. Em que pese a crítica, os escritores escreverão, os compositores comporão e o mundo será inevitavelmente abarrotado de bons livros. Tempo virá em que será ocupação de uma existência inteira simplesmente aprender seus nomes. Muitos homens de regular cultura hoje em dia quase que só lêem revistas. E em futuro não muito remoto, um homem erudito pouco melhor será do que um catálogo ambulante."

"Meu boníssimo amigo" — exclamou o volume, bocejando melancolicamente no meu rosto — "desculpai-me interromper-vos, mas noto que gostais de palestrar. Per-guntar-vos-ia sobre o destino de um escritor que estava fazendo algum barulho, na ocasião em que me retirei do mundo. É verdade que sua reputação era considerada efémera. A intelectualidade fechou-lhe as portas porque era um velhaco inculto, que pouco conhecia o latim e ignorava totalmente o grego, e fora obrigado a fugas sucessivas, por furtos de caça. Parece-me que seu nome era Shakespeare. Deverá ter logo caído no olvido, creio."

"Ao contrário" — retruquei — "graças exactamente a esse homem a literatura da sua época tem resistido a umaXdu-ração superior ao termo ordinário da literatura inglesa. Surgem, de quando em vez, autores que parecem prova à mutabilidade da língua, porque enraizaram-se nos princípios imutáveis da natureza humana. São como as árvores gigantescas que às vezes observamos às margens de um riacho. Estas, devido às raízes vastas e profundas, que penetram através da superfície e agarram-se poderosamente nas verdadeiras fundações da terra, protegem o solo em derredor contra a erosão da corrente ininterrupta e sustem muitas plantas vizinhas e até algas desprezíveis, garantindo-lhes a perpetuidade. Este é o caso de Shakespeare, a quem contemplamos desafiando a usurpação do tempo, conservando em uso moderno a língua e literatura dos seus dias e dando duração a muitos autores vagos, simplesmente por terem florescido na sua vizinhança. Mas também ele — pesa-me dizê-lo — vai aos poucos recebendo o estigma do tempo e a integridade das suas composições é atacada por uma pro-fusão de comentadores os quais, à semelhança de parasitas trepadeiras, quase sufocam a planta que os arrima."

Aqui o volume começou a agitar-se e a rir para logo explodir numa gargalhada espasmódica que quase o sufocou, por sua excessiva corpulência.

"Formidável!" — berrou, logo que recobrou o fôlego — "formidável! Com que então, quereis persuadir-me que a literatura de uma época deverá ser perpetuada por um vagabundo ladrão de caça! Por um homem inculto! Por um poeta, sim, um poeta!"

E aqui estourou noutra gargalhada. Confesso que me senti irritado com semelhante rudeza, o que, no entanto, perdoei, por saber que ele florescera numa época em que as regras da boa educação eram menos observadas. Obstinei, contudo, em não ceder em minhas considerações.

"Sim" — continuei energicamente — "um poeta. Dentre todos os escritores o poeta possui as melhores oportunidades para a imortalidade. Os outros podem escrever com a cabeça, mas ele escreve com o coração, e o coração há-de sempre o entender. É o retratista fiel da natureza, cujas feições são sempre as mesmas, e interessantes sempre. Os prosadores são extensos e estáticos. Suas páginas, prenhes de lugares-comuns e seu pensamento desenvolvido ao tédio. Já com o verdadeiro poeta, os temas são tratados de modo elegante, comunicativo e brilhante. Proporciona os mais escolhidos pensamentos na mais seleccionada forma. Ilustra-os com todas as coisas notáveis que encontra na natureza e na arte. Enriquece-os com quadros da vida humana, como a vê do seu prisma. Seus escritos, portanto, contêm o espírito, o aroma, se assim me posso expressar, da época em que vive. São relicários que abrigam no seu delicado bojo a riqueza da língua — suas jóias de família, que são dessarte transmitidas à posteridade, gerações após gerações. A moldura pode ocasionalmente ser antiquada e necessitar restaurações periódicas, como no exemplo de Chaucer, mas o brilho e o valor intrínseco das gemas continuam inalterados. Lançai um olhar retrospectivo sobre a longa estrada da história da literatura! Que vastíssimos vales de imbecilidades preenchidos com lendas fradescas e controvérsias académicas! Que atoleiros de especulações teológicas! Que devastações ruinosas da metafísica! Só de longe em longe, contemplamos os iluminados bardos, projectados como faróis nas suas iminências insuladas, para transmitirem a luz filtrada da inteligência poética às várias gerações."

Já me preparava para prorromper em elogios aos poetas modernos quando a súbita abertura da porta me fez virar a cabeça. Era o bedel que me viera comunicar que iam fechar a biblioteca. Procurei ter uma palavra de despedida para com o livro mas o digno volume estava mudo. Os fechos já estavam aplicados e ele mostrava-se inteiramente alheio a tudo o que se passara.

Depois desse dia já voltei duas ou três vezes à biblioteca e esforcei-me por interessá-lo em outras conversações, mas foi inútil. Se todo esse extravagante colóquio realmente se deu ou se foi outro desses esquisitos raptos a que sou sujeito, até agora não consegui esclarecer.

1 Muitos escritores de espírito davam-se ao capricho de escrever em latim e francês e, com efeito, realizaram trabalhos de real valor. Mas outros houve cuja poesia em francês representava para os franceses tal fantasia como a que se nos afigura quando ouvimos o inglês falado por franceses.

Holinshed, em sua Crónica, observou: "Mais tarde, também, por diligente viagem de Geffry Chaucer e de John Gowre, nos tempos de Ricardo II, e, após aqueles, de John Scogan e John Lydgate, monge de Berrie, o nosso citado escritor encontrou-se numa excelente estrada, muito embora esta nunca alcançasse um tipo de perfeição até o reinado da Rainha Elizabeth, quando John Jewell, bispo de Saron, John Fox e vários escritores cultos e notáveis realizaram completamente a ilustração da mesma, para seu grande louvor e imortal reconhecimento."

3 "Vive para sempre gentil livro, real imagem do espírito do teu criador c áurea coluna de sua nobre coragem; e proclama sempre ao mundo que o teu autor foi o secretário da eloquência, o alento das musas, a abelha das mais tenras flores do espírito e da arte, o fosso das virtudes morais e intelectuais, o exército de Belbona no campo de batalha, a dialéctica de Suada na Câmara, modelo de excelência em impressão." SUPERROGAÇÂO DE PIERCE – HARVEY.

Fonte: Ensaístas Americanos, Clássicos Jackson. Tradução de Sarmento de Beires e José Duarte.

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