ATUALIDADE DE SANTO AGOSTINHO
Côn. José Geraldo Vidigal de Carvalho
Professor no Seminário de Mariana – MG
Enorme
o interesse que "O Mestre do Ocidente", Santo Agostinho vem
despertando neste início de milênio.A interioridade que flui de seus escritos
não deixa de ser um antídoto para a angústia metafísica do homem de hoje.
Deve-se salientar como a doutrina agostiniana impregna os documentos do
Vaticano II. Uma das análises mais exploradas e ricas dos escritos do Bispo de
Hipona é sobre o tempo e a eternidade, razão de ser de uma síntese feita neste
texto.
Palavras
chaves: interioridade, Vaticano II, tempo, eternidade.
É
impressionante em nossos dias o interesse que as obras de Agostinho de Hipona
vem despertando na juventude estudiosa, até mesmo de outras religiões. Ele é,
sem sombra de dúvida, o grande "Mestre do Ocidente". Para a
Filosofia cristã é um referencial obrigatório. O homem moderno, porém, vai
buscar no autor das "Confissões" uma resposta a seus problemas,
dilemático, atônito ante as promessas de um progresso que não lhe satisfaz a
sede do Transcendente. Ante a caducidade dos bens terrenos e o insaciável de
seus desejo ante a atração irresistível de um ideal nunca realizado nas
estreitezas e misérias da vida, ante o mistério insondável da eternidade, o ser
racional, mais do que nunca, sofre torturas indizíveis, angustias imensas de
uma pessoa em anelos da realização de sua plenitude. É esta insofreguidão de
base metafísica, inseparável à natureza humana, seu tormento e sua glória, que
faz do homem um animal glorioso, o qual possui uma alma que quer alçar vôos ao
infinito. Seus anelos não estão contramurados em terrenos horizontes. O homem
de hoje, porém, assiste uns após outros no trono de suas quiméricas adorações
subir e tombar ídolos fugazes e impotentes e, nesta queda sucessiva das falsas
opiniões dos falazes arquitetos de idéias, com a experiência repetida de
desenganos dolorosos, ele sente enraizar dentro de si a dúvida e, com a
dúvida, a tortura, o desespero e com ela a grande decepção de sua inteligência
embaída. Sai então à cata de uma doutrina que lhe restitua a dignidade de ser
pensante na busca da Verdade e do Bem, libertando-o de seus desenganos. Para
tanto nada melhor do que entrar em contato com o pensamento agostiniano, pois
grande a sua modernidade. Quem estuda com atenção os Documentos do Concilio
Vaticano II e conhece os escritos de Santo Agostinho percebe ao vivo como os
textos conciliares estão impregnados da mensagem agostiniana. Muitas vezes
candentes enunciações são transcritas, como na Constituição Pastoral
"Gaudium et Spes" no capítulo primeiro que trata da dignidade da
pessoa humana, citando a famosa expressão de Santo Agostinho, que patenteia a
imperiosa necessidade da abertura para o Ser Supremo: "Fizestes-nos para
Vós", Senhor, "e o nosso coração permanece inquieto enquanto em Vós
não descansar" (Conf. 1,1) Dostoievsky num instante de pulcra inspiração,
com razão, proclamou, bem na linha do Hiponense, que o incomensurável e o
infinito são tão necessários ao homem como o pequenino planeta que ele pisa. A
Constituição Dogmática "Lumen Gentium", entre outras, traz esta
belíssima assertiva da Cidade de Deus, referente à Igreja que "entre as
perseguições do mundo e as consolações de Deus avança peregrina" através
da História. A "Dei Verbum" sobre a Revelação Divina várias vezes
apela para este Doutor como base do ensinamento em tela. O mesmo fazem os Padres Conciliares nos outros documentos. O Papa Paulo VI nutria uma
especial admiração por Santo Agostinho que para ele era "inigualável mestre
da vida espiritual e cristã em que se pode encontrar as expressões mais
felizes, atrativas, comprometidas e confortáveis que se poderia encontrar no
vocabulário do nosso colóquio com Deus e com a alma". O Papa João Paulo II
escreveu uma memorável Carta Apostólica por ocasião do XVI centenário da
conversão de Santo Agostinho, ostentando que este fato foi um marco na
História do cristianismo. Esta influência profunda de Santo Agostinho se deve
à persistência com que ele buscou a Verdade. Trilhou veredas eivadas de erros
como o materialismo, o racionalismo, o ceticismo, mas, iluminado pela graça
divina que veio em ajuda à sua inteligência privilegiada, acabou por encontrar
a autêntica doutrina. Nos seus escritos se percebe uma sinceridade fascinante,
impregnada de uma humildade arrebatadora. Ler Agostinho é encontrar um roteiro
muito humano de como se deve buscar o verdadeiro pábulo intelectual para a
inteligência e o bem supremo para o coração. Ele deixa claro que quem não se
empenha em chegar ao porto da eternidade estará sempre frustrado. A
universalidade e a profundidade de seus ensinamentos estão unidas a uma
linguagem filosófica, teológica, mística, poética que encanta a cada passo. A
interioridade a que levam seus escritos é um dos pontos mais luminosos de toda
a sua obra. Ele escreveu num de seus comentários ao Evangelho de São íoão:
"Explora e reconhece o que existe dentro de ti. Desce à tua intimidade. Desce
à câmara secreta da tua consciência. Se te afastas de ti mesmo, como poderás
aproximar-te de Deus? " Ele declarou que só queria conhecer Deus e a alma.
Então nas profundezas da mente humana ele deparou a imagem divina. Deste modo o
homem então pode se elevar até Deus e encontrar nele a razão de ser da
sabedoria e do amor. No campo teológico, o sentido profundo do mistério imerge
o leitor numa arraigada fé, numa esperança fulgente e sobretudo num oceano de
amor. Dirá Agostinho: "Ama e faze o que quiseres"! Abre-se um
horizonte infinito e a alma se vê imersa num notável clima sobrenatural.
Estremecimento profundo de emoção e de estupor se apossa então do estudioso de
seus trabalhos lavrados com tanta acuidade. A Verdade, porém, patenteada por
Agostinho penetra suavemente o ser humano e este compreende então que Deus é,
de fato, Amor! É que para Agostinho "o amor é a força motriz do mundo
humano, a razão que governa os homens e os faz dançar à sua música" (De
Ord. 2,5).
Um.dos
temas abordados com originalidade por Santo Agostinho é a questão do tempo. No
livro Confissões lançou esta questão: "Que é, pois o tempo"? (XIV,
17). Ele vê na sucessão temporal uma marca da impotência humana, da miséria do
ser racional diante do infinito poder do Ser Supremo. O caráter instintivo do
conhecimento humano do tempo mostra bem os limites de sua noção sobre este
assunto. Trata-se de algo muito familiar, dado que cada um vive no tempo, mas
que, vertiginosamente, lhe escapa. O tempo resiste a uma explicação porque é
inconcebível. Ele inscreve sua essência na fuga. Ninguém, a não ser Deus, o
pode compreender e árduo é para o homem tentar conceitualizá-lo. Intuí-lo é o
máximo que está ao alcance da inteligência. Cumpre, porém, tentar captar qual é
a qüididade desta intuição. É preciso, antes de tudo, retornar à distinção
entre o passado, o presente e o futuro. Aí surge de imediato um impasse, pois
o passado não é, dado que não está presente. Assim também o futuro, uma vez
que não existe ainda, é provável. Resta o presente que flui, contudo,
inexoravelmente. Os latinos diziam: Fugit irreparabile tempus – foge o
irreparável tempo, como bem se expressou Virgílio (Geórgicas III, 284).
O presente é algo real que não se estabiliza nunca. Deste modo, o movimento
caracteriza o tempo, é seu modo de ser. Por isto, das coisas e dos seres vivos
que lhe estão submissos se diz que tudo é contingente: existe, poderia não
existir e tende a desaparecer. Tudo que começa propende a acabar. O que nasce
está fadado a perecer. Este aspecto Agostinho assim o sintetizou na Cidade
de Deus: "O tempo que se vive diminui a própria vida e não passa de
uma trajetória para a morte; com efeito, todo ser vivo está fadado a morrer,
dado que, desde a origem, a morte atenta contra sua vida. Daí sua assertiva em Confissões: "Podemos afirmar que o tempo é o que tende a não mais
ser" (XI, 14). Como o tempo é um movimento perpétuo, cumpre distingui-lo
da eternidade. São dois opostos. Um se contrapõe ao outro como a instabilidade
à constância. A eternidade é estática, imutável, estável. A eternidade não
conhece nem princípio, nem fim, ao passo que o tempo não cessa de começar e de
acabar. Miséria do homem que está imerso no tempo; grandeza de Deus que existe
desde toda a eternidade. A Moisés Ele afirmou: "Eu sou aquele que é"
(Ex 3,14).
Eis
o que então diz Agostinho ao Ser Supremo: "Os vossos anos são tomo um só
dia, e o vosso dia não se repete de modo que possa chamar-se cotidiano, mas é
um perpétuo "hoje", porque este vosso "hoje" é a
eternidade" (XIII, 15) O ser racional vive um presente mutável, fugaz,
ininterruptamente incerto, eternamente irreversível. O não-ser do tempo
chancela a limitação humana. A humanidade vive a inconstância temporal. Donde a
eventualidade que cerca quem existe. O tempo escapa inteiramente à jurisdição
do animal racional por causa de seu irreversível dinamismo que o faz
irredutível. Tal é a condição humana: somos corruptíveis e finitos e somente
Deus é eterno. Segundo Santo Agostinho, porém, pela memória, de certo modo, se
supera o tempo, dado que pela lembrança do passado se pode ir contra a corrente
do movimento temporal. Trata-se de se trazer o passado para o presente e, até
mesmo, se pode fazer uma previsão com relação ao futuro. Daí Agostinho falar do
"presente do passado", do "presente do presente" e do
"presente do futuro". A memória como que retém o tempo, eternizando,
de certo modo, o instante vivido e antecipando o porvir. Agostinho exalta, portanto,
o poder da memória sem a qual nada se poderia imaginar nem conhecer,
compreender ou apreender. Diz ele: "O pretérito longo outra coisa não é
senão a longa lembrança do passado"(XI,28).. O homem que possui a memória
detém a capacidade de criar sua própria duração interior, que é uma
equivalência de tempo, da qual ele é o senhor. A reminiscência faz existir o
passado no presente e, pela projeção, até mesmo o futuro. Trata-se de uma
atividade do espírito que transcende o tempo. Tudo isto infunde um otimismo
antropológico de grandes proporções. O homem, de fato, finito, limitado,
possuindo uma alma espiritual, participa, assim, do próprio eterno
"hoje" de Deus! O tempo torna-se um sinal de eternidade.
APÊNDICE
A
CAMINHO DE DEUS
Na
obra Confissões merece especial atenção o livro VII que mostra
como sempre encontra a Verdade quem sinceramente a procura.
Nele
Agostinho trata do problema de Deus e do problema do mal, aborda a questão da
astrologia, compara o que de verdadeiro encontrara no platonismo e,
posteriormente, nas Sagradas Escrituras, e apresenta a solução do problema do
mal.
Foi
difícil para Agostinho conceber o Ser Supremo como um puro espírito. Assim se
dirige a Deus: "Apesar de não Vos conceber sob a forma de corpo humano,
necessitava, contudo, de Vos imaginar como sendo alguma coisa corpórea
situada no espaço, quer imanente ao mundo, quer difundida por fora do mundo,
através do infinito".
Por
ter seguido o maniqueísmo, grande o seu mérito em aceitar o argumento do bispo
Nebrídio contra estes hereges,í cuja doutrina segundo Agostinho era "digna
de abominação", por levar à conclusão errônea de que o Verbo de Deus é
corruptível. A questão envolvendo Deus e o mal sempre preocupou a mente de
notáveis pensadores, mas como Agostinho achasse que o mal era algo de positivo
e não mera ausência de ser ou de perfeição, dolorosas foram suas dúvidas.
Antes
de resolver esta questão, ele mostra que "também já tinha rejeitado as
enganadoras predições e os ímpios delírios dos astrólogos".
O
problema do mal
Libertado
estava destes equívocos, contudo era angustiante para ele o problema do mal.
Afirmava, porém, ante "um misterioso aguilhão" que o atormentava,
estar o seu tumor decrescendo ao contado da mão oculta da medicina de Deus.
Pôde
declarar que "a vista perturbada e entenebrecida da minha inteligência
melhorava, de dia para dia, com o colírio das minhas dores salutares". Nos
livros neoplatônicos ele não encontrou Cristo e isto lhe mostrou ainda mais o
vazio que nestes escritos havia ao compará-los com o que ele passara a ler na
Bíblia. Foi ao entrar dentro de si mesmo que o mistério divino começou a
aclarar para ele: "Recolhi-me ao coração, conduzido por Vós. Pude fazê-lo,
porque Vos tornastes meu auxílio".
Agostinho
então percebeu vivamente que todos os seres são contingentes, existem, mas
poderiam não existir. Em Deus, unicamente, está o fundamento de tudo que
existe.
Reconhece
que Deus é o Ser absoluto e que todo ser existente é bom, sendo obra deste
Deus, que, portanto, não poderia nunca ser a origem do mal. A criação, de fato,
canta os louvores de Deus. Agostinho passou então a rever seus erros sobre o
Senhor Absoluto. Conclui que todo mal é se apartar de Deus.
Ele
já podia asseverar: "Procurei o que era a maldade não encontrei uma
substância, mas sim uma perversão da vontade desviada da substância suprema –
de Vós, ó Deus – e tendendo para as coisas baixas: vontade que derrama as suas
entranhas e se levanta com intumescência". De fato, o pecado outra coisa
não é senão a aversão a Deus e a conversão para as criaturas. Faltara a
Agostinho a humildade e conhecimento perfeito de Jesus, Deus e homem
verdadeiro.
Nas
cartas de São Paulo, contudo, ele aprendeu a vencer o orgulho e a praticar a
piedade. Pôde, deste modo, no final deste livro sétimo afirmar: "Nos
livros platônicos ninguém ouve Aquele que exclama: "Vinde a Mim, vós, os
que trabalhais". Desdenham em aprender dele, que é manso e humilde de
coração".
Como
Deus se inclina para os humildes de coração, ao se deixar embalar por esta
virtude, Agostinho no Livro X, capítulo 27, lançará a belíssima sentença que
vem ecoando vibrante pelos anos afora: "Tarde Vos amei, ó beleza, tão
antiga e tão nova, tarde vos amei!". Ele tornou-se um pedagogo da
humildade, um mestre da interioridade, tendo reformulado seu modo de pensar
sobre todos os problemas que o atormentavam.
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