Era uma vez uma menina — linda menina que ela era! — muito linda de rosto e de gesto e de figura e de tudo, porém muito feia de coração.
Vivia esta menina com sua mãe, que a adorava, e com outra irmã que tinha, mais velha e melhor, sem comparação muito melhor.
Adorava-as a ambas, como vos digo, a boa de sua mãe, que era uma senhora moça e ainda formosa: mas pesava-lhe *) muito e muito que tanta maldade se escondesse em tão galante criatura. Quem visse a menina chamar-lhe-ia1) um anjo, que tamanha gentileza tinha; mas quem a tratasse. . . — ai! Deus do céu! nem me atrevo a pensar no que lhe chamaria. 3)
Tinha ela sete anos, uns sete anos travessos como os sete pecados mortais, e, se bem me lembra, chamava-se Luísa. Ora a menina Luísa, que vivia muito estimada e acarinhada por sua mãe, e com tantos mimos de criação, era, como vos ia contando, uma criatura muito endiabrada, muito e muito má lá por dentro. Custa-me 4) de-veras ter que dizer-vos isto de tão linda menina, mas é a puia verdade.
Fazia chegar o prazer ao coração vê-la logo de manhã bem pregada e bem penteadâ, feita um brinquinho com muitos cuidados e desvelos; era uma dor dalma, quando, meia hora depois, aparecia enxovalhada5) e desgrenhada 6) tôda outra, muito diversa do que fôra, uma bruxa horrenda para a vista. Não era isso que ela fôsse de seu natural inimiga do asseio, mas porque tanto corria, tanto saltava, tantas travessuras fazia, que em breve todo aquêle conchego, arranjo e consêrto era como se nunca lho houvessem feito.
Ora, bem vedes que menina assim só sua mãe — e tão boa como ela era — a poderia sofrer. Mas, para que melhor vejais até onde chegava a maldade daquele coração pequenino, quero contar-vos um caso que lhe sucedeu — um caso cruel, que a fêz chorar muito e por muito tempo.
Havia em casa uma cadelinha, côr de ganga, bonita — era uma perfeição. Fiel e boa amiga como quem era, limpa e nédia a não poder ser mais. Era a pérola da espécie canina: só lhe faltava
falar. Em mansidão não havia excedê-la2). Brincava com as duas meninas como se tivesse entendimento. Deixava-se arrastar, torcer e beliscar pela diabólica Luísa, sem de tudo aquilo se mostrar ofendida; antes de cada vez lhe lambia mais e mais as mãos, fazendo-lhes festas, com ar queixoso, sim, mas não agastado.
Gansada de ver que todos os seus maus tratos não enraiveciam a boa cadelinha, ou talvez inspirada pelo demônio tentador das meninas más — .que eu não quero acreditar possa haver maldade bem profunda nestas almas novinhas, ainda de pouco saídas dentre as mãos do Criador — quereis saber o que ela fêz?
Sem se importar com os bons conselhos de sua irmã, que lhe pedia com as lágrimas nos olhos 3) não fizesse tal, pegou de um cordel muito forte, e, chamando a cadelinha com o engodo de alguns bolos — arripiam-se-me os cabelos só de pensá-lo — atá-lho à cauda, e começa a apertar-lhe sem alma, \ cada vez mais e mais, com muito prazer seu e muitas sentidas queixas da pobre cadelinha, que tôda se torcia e gemia com a grande dor que lhe faziam padecer.
Enquanto o triste brutinho erguia para a horrenda pequena uns olhos lacrimosos e repreensivos, -que fariam estalar de pena o coração mais duro, ria-se4) ela como uma perdida. Ria, como se lhe tivessem dado um paraíso de alegrias. Ria3), ria, ria, e cada vez apertava mais.
A cadelinha era muito mansa, muito dócil^ mas não era de pedra. Afinal secaram-se tôdas as lágrimas do seu padecer, fugiram-lhe os gemidos dolorosos. Estava já a ponto de desmaiar de puro sofrer, quando, por um instinto de defesa, mais poderoso do que a. vontade, por um movimento rápido, muito cego e muito cheio de desesperação, voltou a cabeça e cravou os dentes .nas mãos da cruel menina.
Vejam que horror I A pobre da cadelinha logo no mesmo momento, arrependida do mal que sua dor causara, começou a ganir com mágoa ainda maior, e deitou-se de rojo ao chão, lambendo-lhe os pés, como quem se oferecia ao castigo.
Quisera eu que tôdas as crianças mal inclinadas vissem aque- ia vista. — Que vista, meu Deus! — O brutinho com um anel ensangüentado, feito pelo fatal cordel, na. cauda que dantes encaracolava com tamanha graça! E ela, a doida da *) Luísa com a mão ferida pelo desespêro do pobre animalzinho, que nunca na sua mansa vida fizera mal a ninguém. — Ai Anjos do céu! devia de ser medonho.
Mas — podereis crê-lo — a-pe- sar-da grande dor que sentia, Luísa não chorou. Não chorou, porque uma voz desconhecida lhe disse ao ouvido que tôda aquela dor só a sua maldade lha2) tinha feito, e ela nem um grito soltou’
Oh! por muito má que uma menina seja, lá
lhe há-de chegar por fôrça uma hora em que ouça aquela santa voz da consciência, que é a voz de Deus, pai de tôdas as meninas. Luísa não chorou, mas asseguro-vos que também já não ria como dantes íira. Os gemidos generosos que a seus pés soltava a cadelinha, en- traram-lhe pela alma dentro, ensinando-lhe 3) a arrepender-se’
Nisto chegou a sua mãe com sua irmã, que vira aquela desgraça e vinha tôda chorosa. Que cena para tal mãe!
O primeiro impeto de Luísa foi atirar-se-lhe aos braços, mas não se atreveu. Parecia que tinha os pézinhos pregados no sobrado 4) e tinha, que o pêso da vergonha não lhe consentiu dar um ‘ ‘ \ ‘ y-M
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A doida da Luísa — a preposição de aqui é considerada como elemento de realce. Assim dizemos: a pobre da velha. O coitado do escrivão via-se em brasas.
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Note-se o emprêgo pleonástico do pronome a repetindo a idéia de dor.
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Há verbos, como ensinar, aconselhar, mandar, etc. que têm duas construções; assim dizemos: ensinar a alguém a leitura (sendo leitura o complemento direto) e ensinar alguém a ler a fazer alguma coisa, (sendo alguém o complemento direto). Ambas estas coisas lhes ensinam o santo a reduzir à praxe, ensinou-os a trabalhar e ensinou-os a pedir. (Bern. Nova Floresta V. 161.)
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sobrado soalho ou assoalho.
passo. A boa da 1) senhora, sabendo a feia ação daquela má, tinha a custo, a muito custo, — crede-mo — composto um semblante mui severo e rigoroso; mas à vista daquela confusão em que estava posta a culpada, daquele sangue que vertia a branca e linda mão da sua filha, todo o rigor se lhe trocou em mágoa e piedade.
Sentiu-se também ferida no seio de mãe, e abriu-lhe os braços
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uns braços imensamente consoladores, vergando de perdões e misericórdias.
E como a infeliz — que assim podemos chamar-lhe 2) — e como a infeliz se achou leve de-repente! Como correu a mergulhar, naquelas ondas de compaixão, a dor do seu arrependimento! Como foi de-pressa esconder no peito de sua mãe o rosto e a vergonha ! — Se a visseis. . . que dó!
A boa mãe já lhe tinha perdoado. Perdão para tamanha culpa só poderia alcançá-lo um grande arrependimento; e o arrependimento da menina era tal como vô-lo não sei contar. Apertou-a muito, muito a si, e, por entre as lágrimas com que aljofrava o rosto, sorria-lhe ternamente como só sabe sorrir quem é mãe. Deve ser assim o céu, quando um criminoso se arrepende.
A prudente senhora não lhe ralhou, não. Bem o merecia ela, mas a consciência dizia mais à pobre menina, muito mais do que ralhos poderiam dizer. Ralhos, quanto a mim, só são para a maldade que não tem pejo nem promete emenda. Se as meninas soubessem quanto devem custar a quem é mãe êsses feios ralhos!. .. Não ralhou, como vos digo; só lhe disse, enquanto lhe lavava as feridas da mão com a água dos seus olhos, e as da alma com o desvêlo do seu amor:
“Vês, filha, quantas bocas te repreendem da tua maldade?” E de-certo repreendiam. A dor fizera entrar bem fundo os dentes da pobre cadelinha; mas a mordedura que o remorso lhe fêz no coração, essa ainda foi muito mais funda.
Teve a menina tamanha vergonha do acontecido, que por muito tempo conservou o costume de esconder a mão que fôra ferida, quando vinha alguém de fora. Também algumas vêzes foram dar com ela a abraçar a cadelinha, chorando ambas como se a cadelinha a entendesse.
Ao menos a lição aproveitou. Luísa, daí em diante, fê-se tão boa como linda. E muito mais linda ficou parecendo, porque a formosura dalma, que torna tão galantes as meninas, tôda se lhe refletiu na formosura do rosto, que tão formoso tinha. Foi tal a emenda, que todos, quando a viam passar, depois daquilo suceder, diziam dela o que já dantes afirmavam de sua irmã:
“Ali vai a rainha das boas meninas.”
Ouvi que ela e a cadelinha desde aquêle dia ficaram inseparáveis. Mendes Leal.
1) Deve-se pronunciar: pêsa-me e não pésa-me. Que significa aqui o verbo pesar? é pessoal ou impessoal?
1) Vide a nota 1) à pág. 21. 2) Vide as notas 2) e 3) à pág. 1D.
1 e 3) Note-se a regência cio verbo Chamar que, quando significa apelidar, dar nome de, em lugar da forma objetiva o, a do pronome êle, ela, pode admitir a forma lhe, e portanto dizemos: Chamavam-lhe o pai
2 não havia excedê-la = não era possível excedê-la.
3 Note-se a elipse da conjunção que, muito freqüente nas orações substantivas, servindo de sujeito ou de complemento direto a certos verbos, como: convir (impessoal), cumprir (imp.), pedir, esperar, desejar, querer, impedir, e outros: Quisera (que) me ensinásseis, senhora, o modo como hei-de salvar a meu pai. (Alex. Herc. Lendas II. 36). Pediu ao Santo (que) fizesse com que Barnabé não tugisse nem mugisse (Ibid. II. 228). Cada página era uma canção, mas canção que cumpria (que) se escrevesse em mármore (Idem). Requereu (que) lhe desse vista de tôdas as peças do processo. Nem o cansaço de trabalhosa jornada nem o hábito dos cômodos do mundo puderam impedir (a dama) acompanhasse aquelas (Eurico 130).
4 Alguns verbos intransitivos cmpregam-se com igual sentido pro- nominalmente e assim dizemos: Passaram-se ou passaram horas, dias semanas, anos. As aulas reabrem-se ou reabrem a Io de março. A procissão recolheu-se ou recolheu às 5 horas. Êles apearam-se ou apearam à porta da estalagem. Ajoelharam-se ou ajoelharam. Êles ajoelharam-se ao pé da Cruz (Eurico 33). Só Hermengarda… ajoelhou com as mãos erguida.s (Eurico 243). Êles cansados se calaram (Nova Floresta III. 47). Ria-se ou ria. Calaram todos (N. Fl. I. 55). Üniçavientc o Cardeal calava e se mostrava triste (Ibid. IV, 1., O outro calando-se ficaria desamparado. (Ibid. IV. 26). Todos os rostos empalideceram. todos os lábios calaram. (Enrico 243).
Fonte: Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores brasileiros e portugueses por Alfredo Clemente Pinto. (1883) 53ª edição. Livraria Selbach.
Fonte: Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores brasileiros e portugueses por Alfredo Clemente Pinto. (1883) 53ª edição. Livraria Selbach.
seleta4
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