A Revolta em Albert Camus
por Isabel Maia
Índice
As pessoas como eu desejariam um
mundo, não em que se tivesse deixado de matar (nós não
somos tão ingénuos quanto isso!) mas um mundo em que o
assassínio não fosse legitimado. Estamos em plena
utopia e contradição, com efeito. Porque estamos
justamente a viver num mundo em que o assassínio é
legitimado e que devemos transformar se o não aceitamos.(…)
Seria inteiramente utópico desejar que nunca mais ninguém
voltasse a matar. Essa seria a utopia absoluta. Mas exigir que o
crime deixe de ser legitimado, seria uma utopia bem menor. Por outro
lado, as ideologias marxista e capitalista, ambas baseadas na ideia
de progresso, ambas convencidas de que a aplicação dos
seus princípios deve fatalmente conduzir ao equilíbrio
da sociedade, são utopias muito maiores e que, ainda por cima,
nos estão a custar demasiado caro são as palavras
de Camus nos Actuais.
Este pequeno excerto expressa
de forma clara, julgo, o problema fundamental com que se depara a
geração de Camus e que por sua vez é o pano de
fundo de O Homem Revoltado: o homicídio deve ou não
ser legitimado? À partida, esta questão é
essencialmente utópica uma vez que no nosso mundo o homicídio
é legitimado, de forma que a questão deverá ser
formulada noutros termos, ou seja, uma vez que o homicídio é
legitimado, só há duas atitudes possíveis:
aceitá-lo ou transformá-lo se o não aceitamos.
O mundo em que vivemos é um
mundo que se tem vindo a desumanizar, consentindo cada vez mais numa
vida sem lustro, mecânica, habitada pela solidão, pelo
silêncio e pelo egoísmo.
A luta por parte do homem no sentido
de conquistar uma dignidade e um lugar que veja reconhecidos e
respeitados, foi revestindo cada vez mais uma dimensão
totalitária e totalitarista, acabando por se identificar com
uma guerra sem tréguas onde tudo é permitido.
Para Camus, não se trata da
idealização do mundo perfeito onde não se
matasse, pois isso seria a total utopia. Não se trata de banir
o "mal", mas tão somente de o minorar.
Camus apela à nossa reflexão,
à tomada de consciência da nossa condição,
do mundo em que vivemos onde, de uma forma ou de outra, todos somos
carrascos e/ou vítimas.
Toda a obra camusiana é uma obra "no
século do medo" e para o "século do medo".
De facto, toda a sua obra vai no sentido de encontrar uma solução,
o ponto de equilíbrio (digamos até) para o próprio
conflito de valores que sacudiu e abalou a Europa no século
XX, Europa esta que pretende fundar a revolta na razão.
É neste ambiente que a mensagem camusiana
adquire todo o seu sentido; as críticas tecidas ao humanismo
burguês e à revolução de século XX
(a qual desenvolveu potencialmente o seu niilismo até à
destruição universal) são, no fundo, a tentativa
de Camus para compreender o seu tempo.
Contra o niilismo e a destruição
universal a obra camusiana é, indiscutivelmente, polarizada
pela ideia de felicidade, desde a felicidade presente em Núpcias
até à felicidade de Calígula.
É como génese da revolta
que o absurdo tem lugar e só nessa medida podemos compreender
a revolta, os sentimentos que lhe estão na base e as
consequências que dela advêm. Mas absurdo por que motivo?
Porque acontece que os cenários desabam. Os gestos de
levantar, o carro – eléctrico, quatro horas de escritório
ou de fábrica, refeição, carro – eléctrico,
quatro horas de trabalho, refeição, sono e
segunda-feira, terça, quarta, quinta, sexta e sábado no
mesmo ritmo, esta estrada segue-se com facilidade a maior parte do
tempo. Só um dia o ‘porquê’ se levanta (…).i
É este "porquê" que nos torna estranha
toda a nossa cadeia de hábitos e é neste preciso
momento que a nossa vida começa a ruir- este é o
momento do absurdo, o qual não é mais do que a
estranheza do mundo, o mal-estar que sentimos, a "náusea",
como lhe chamou Sartre, sendo na morte que ele adquire toda a sua
grandeza. A morte é o desconhecido, o inefável e mais
do que nunca nos põe face a face com a pergunta pelo sentido,
isto é, vale a pena ter esperança apesar de tudo ou é
preciso matarmo-nos?
O ser humano tem uma sede desmesurada
de absoluto; quer compreender o mundo, quer reduzi-lo a si mesmo,
quer fazê-lo seu, só que entre o mundo e o homem há
um grande divórcio. Não se trata de uma exclusão
,mas antes de uma presença comum de duas realidades que são
mutuamente alheias e ininteligíveis.
Tanto de si como do mundo, o homem só
conhece estilhaços, pedaços aqui e acolá que de
forma alguma lhe proporcionarão um verdadeiro conhecimento. De
nada servirão ao homem as mais perfeitas e acabadas teorias da
ciência que perversamente tudo pensam explicar, quando nem de
si próprio o homem tem certezas!
O divórcio, a distância
que separa o desejo incomensurável de unidade e de clareza do
mutismo do mundo, é o próprio absurdo. Esta falta de
coincidência entre o homem e o mundo, entre o homem e a
natureza, abre um fosso entre o homem e as forças que o
rodeiam e o absurdo expressa precisamente esse momento em que "se
quebra a aliança com as coisas". Ao mesmo tempo que é
divórcio, o absurdo acaba por ser o único elo de
ligação entre o próprio homem e o mundo. No
entanto, isto não conduz ao desespero na medida em que agora
não se trata de medir a vida em termos de ter ou não
ter sentido, pois é precisamente o "não ter
sentido" que confere à vida um sentido, ou seja, não
ter sentido é o seu sentido. Sendo esta a única certeza
do homem, trata-se de saber se é, e como é possível
viver com o absurdo. Mas se o absurdo é essa tensão
entre o mundo e o homem, há que condenar necessariamente o
suicídio na medida em que este seria a eliminação
de tal divórcio; eliminar um dos pólos desta dicotomia
(mundo/homem) será eliminar o absurdo- é necessário,
pois, que se mantenham numa tensão perpétua.
De facto, todo este universo de
angústia, de impotência e, por outro lado, o desejo de
unidade não são tão originais de Camus. Muitos
filósofos e pensadores nossos conhecidos se familiarizaram com
esta temática: Kierkegaard, por exemplo, mais do que descobrir
o absurdo, viveu-o de uma forma desesperada; Jaspers defende o nada
como única realidade e o desespero como única atitude;
Heidegger afirma-nos uma existência humilhada…
Tanto Kierkegaard, como Jaspers ou
Heidegger se situam num espaço onde não há lugar
para a esperança, só que embora tenham partido, de
facto, do universo do absurdo acabaram por divinizar tudo aquilo que
os oprimia, encontrando, por fim, a esperança, esperança
esta de ordem religiosa. Jaspers dá um "salto" e
transforma o absurdo em Deus ao afirmar um sentimento supra – humano
da vida. A partir do momento em que a noção de absurdo
serve de "ponte para a eternidade", já não
está de forma alguma ligada à lucidez humana . O
"salto" para Deus é o próprio fim do absurdo
enquanto tal. É necessário que não exista
esperança- este é o pressuposto da luto entre o homem e
o absurdo.
Penso que é importante ter aqui
em linha de conta a dificuldade de Camus na sua relação
com Deus; por uma lado a inegável presença da ideia de
Deus e, por outro, o inegável sentimento da sua ausência.
Ainda em Kierkegaard, o desejo de
clareza deve renunciar a si mesmo para encontrar satisfação
e isto não é mais do que dizer ao homem absurdo que
haverá um final em que todas as contradições não
passarão de jogos, isto é, há também em
Kierkegaaard lugar para a esperança. Por isto mesmo, o homem
absurdo não é o de Kierkegaard, mas sim aquele que se
mantém fiel ao absurdo -a evidência que o despertou do
seu sono fastidioso e quotidiano.
Olhar o absurdo é fazê-lo
viver, e fazer viver o absurdo é viver! Se é necessário
que se viva esse absurdo, se é necessário que não
nos afastemos dele, só há uma saída coerente: a
revolta. Esta revolta não é mais, no fundo, do que a
luta eterna entre o homem em si e a sua opacidade.
Pouco atrás chegamos à
conclusão de que há que condenar o suicídio na
medida em que ele suprime um dos termos da tensão homem
/mundo. Sendo assim, há que explorar, esgotar todos os
instantes, sugando a vida em cada uma das suas verdades. O homem
absurdo tem de esgotar tudo e esgotar-se a si próprio.
Podemos colocar agora a seguinte
questão: se não há esperança, se não
há eternidade, onde fica a liberdade, se é que
existe?…O absurdo destruiu a possibilidade de uma liberdade eterna,
mas exactamente por isso, exalta um outro tipo de liberdade: a
liberdade de acção na medida em que aumenta a
disponibilidade do homem. Esta liberdade é a certeza do tempo
e a inexistência de futuro. O absurdo aumenta a disponibilidade
do homem; mais do que nunca ele é agora livre. Paradoxal? Não,
na medida em que até à experiência absurda, o
indivíduo preocupava-se com o futuro, fazia planos e agia
"como se" fosse livre, mas de facto não o era; era
sim escravo dessa sua pretensa liberdade na medida em que esta não
passava de uma ilusão. A partir da experiência absurda
há certeza de pelo menos uma coisa: não há
amanhã e se não há amanhã não há
compromisso! Doravante o homem absurdo experimenta a verdadeira
liberdade. A estranheza que ele sente em relação à
sua própria vida é o primeiro passo da sua libertação;
o universo afigura-se-lhe como algo sem possibilidades, mas por outro
lado, um universo onde tudo é concedido ,onde "vale
tudo". Para além deste universo, o nada.
A lucidez, a liberdade, a revolta e a
paixão, são pois as consequências do absurdo;
agora há que enfrentá-lo, exacerbá-lo mediante a
inteligência e os sentidos.
Por outro lado, a consciência
aguda da morte (onde o absurdo adquire a sua maior grandeza, como já
referi) dá à liberdade o seu profundo significado, pois
o que é o absurdo senão esta aprendizagem da solidão
individual? O que é a morte, senão a mais pura
expressão desta solidão individual? É pois a
morte que marca ao homem absurdo o limite do seu conhecimento, e o
próprio desconhecimento de Deus, a sua ausência
inegável, o início do desconhecido.
O absurdo é assim para Camus o
ponto de partida e o começo de uma nova disponibilidade para a
busca da felicidade; desta forma, é o absurdo que alimenta e
recupera a liberdade. Não será esta liberdade uma
revolta? A revolta concede maior grandiosidade ao absurdo pela
gratuitidade que proclama. O herói absurdo reivindica a
responsabilidade de manter viva uma lucidez sem tréguas.
Sísifo não tem ninguém
à sua espera na montanha, o seu esforço, não
terá recompensa. Sísifo é o nunca acabar de uma
solidão; sem passado e sem futuro, ele é o presente
eternamente condenado ao recomeço. No fundo ele é um
destino irreparável! O carregar do rochedo até ao cimo
da montanha, será uma "tarefa" eternamente
recomeçada e Sísifo é herói, simplesmente
porque recusa a derrota. Esgota o presente, não porque
desacredite propriamente o futuro, mas apenas porque este lhe não
interessa verdadeiramente, a não ser nesse permanente devir,
que são todos esses presentes. Apesar de tudo, Sísifo
conhece aqueles instantes, ou melhor dizendo, aquele instante em que
se encontra a si próprio-o espaço de tempo em que o
rochedo rola pela encosta abaixo. É preciso imaginar Sísifo
felizii,
senhor de si e dos seus movimentos.
Quem é também Mersault?
Não é também ele o homem absurdo, para quem tudo
não passa de uma longa, ou melhor, de uma interminável
sucessão de dias, iguais uns aos outros, uma monotonia de
horas e horas de trabalho sentado numa secretária?…Tudo é
fadiga e tédio e desta forma, encontramos em Mersault a
gratuitidade do crime.
O inconformismo que encontramos nesta
personagem é resultado de um desconhecimento das regras já
institucionalizadas, dos próprios princípios de
convivência e de sociabilidade. Não era Mersault o homem
que logo após a morte da mãe tomava banhos de mar e
iniciava uma relação com uma mulher? Não era
Mersault o homem que "matava um árabe por causa do sol?".
É a lucidez sem tréguas de que ainda há pouco
falava, o que caracteriza essencialmente a absurdidade de Mersault.
É preciso imaginar Sísifo
feliz, Mersault feliz. Enfim, a felicidade é o lugar comum da
obra camusiana. Não obstante ser o tema central da obra
camusiana e apesar das personagens de Camus procurarem de uma ou de
outra forma essa coisa chamada "felicidade", terá
essa palavra (felicidade) o mesmo sentido? Na mesma obra e na mesma
época, não revestirá esta palavra aspectos
diferentes?
Todas as personagens de Camus parecem possuir
"felicidades" diferentes, apesar de inseparáveis
umas das outras.
A felicidade camusiana é um
estado onde o sujeito que ama está unido ao objecto amado, o
ser vivo com a vida e o existente com a existênciaiii,
ou seja, em Camus a felicidade traduz um acordo; um acordo do ser com
a existência que leva, ou seja, trata-se de uma união e
assim, o desejo de felicidade confunde-se de certa forma com o desejo
de unidade. "Felicidade" quer dizer "unidade",
não sendo, no entanto, uma unidade puramente afectiva, mas
também intelectual e espiritual: Não há
felicidade se não há saber.iv
Quando a personagem de Camus encontra,
ainda que por fugazes momentos, esta unidade assim entendida ela é,
de facto, feliz. Mersault é feliz quando se acha unido ao
mundo e Calígula e Sísifo quando se sentem unidos ao
seu ideal de revolta: Há uma felicidade metafísica
que afirma a absurdidade do mundov.
Se há diferentes "felicidades", se todas as
personagens de Camus têm felicidades diferentes é, de
facto, porque amam objectos diferentes, isto é, há
tantas felicidades quantos os objectos amados, sendo no entanto a
felicidade total, ou melhor dizendo, ideal, o encontro daquela
unidade total com toda a existência, aquela adesão
total…mas muito antes disso, o homem de Camus pode encontrar
felicidades, digamos que, parciais.
À felicidade metafísica,
por exemplo, pode-se dar um nome de um valor espiritual como a
liberdade ou a paz. O homem revoltado agita-se em nome de um valor,
ainda que confuso, mas do qual tem o sentimento de que é comum
a todos os outros homens. Mas será felicidade esta procura
metafísica? Por que não, se for realmente possível
alcançá-la? De facto, a felicidade de Camus é
uma felicidade muito difícil que exige uma ascese, mas não
entendamos esta ascese no sentido religioso do termo!
União com o mundo, união
com o homem, ou união com os valores transcendentais, tudo
isto são "felicidades". As únicas possíveis?
Pensemos agora em Calígula, em Sísifo e em Clemence;
para qualquer um deles a felicidade não se trata de nenhuma
união nem com a natureza, nem com o homem, nem com nenhum
valor transcendental, mas muito pelo contrário, trata-se de
uma união com algo negativo, uma união no vazio, na
própria falta de união. Exactamente porque lhes é
insuportável esta falta de união, porque lhes é
impossível viver sem felicidade, tudo eles farão para
encontrar um sucedâneo desta. No lugar da unidade com a
natureza, com o homem ou com o absoluto (que consideram impossível)
eles vêem antes uma dualidade revoltante que acaba por fazer,
por construir uma infelicidade comum e é dessa dualidade
revoltante e irreconciliável que Sísifo, Calígula
e Clemence farão a sua felicidade.
Sísifo sabe que não pode
encontrar uma harmonia com o mundo e aceita a absurdidade dete.
Aceitar o impossível, o nada é para Calígula uma
maneira de ser feliz. Clemence possui outras "armas": o seu
orgulho para fazer a sua felicidade,,um orgulho indiscutivelmente
egoísta na medida em que se une ao seu próprio "eu"
mortal e ilusório.
O acordo fundamental do ser e da sua
existência que Camus nos refere é, para estas três
personagens, algo impossível, algo irrealizável.
Nesta linha de ideias surge a questão:
que mundo é este afinal? É um mundo de união ou
um mundo de cisão? O tema da felicidade é assim reposto
pelo problema da união e da separação. Se não
resolver este problema, o homem camusiano não pode ser feliz
de facto, porque pôr o problema da felicidade é no fundo
pôr o problema da união e da cisão. Será
esta cisão algo temporário ou algo que possa ser
ultrapassado ? Calígula, Sísifo e Clemence respondem
negativamente, mas será mesmo assim?
Este problema da cisão é
extremamente bem colocado por Camus em O Mito de Sísifo,
onde se diz: Se eu fosse árvore entre as árvores,
gato entre os animais, esta vida teria um sentido, ou melhor ,este
problema é que não o teria, porque eu faria parte deste
mundo. Seria este mundo ao qual agora me oponho com toda a minha
consciência e toda a minha exigência de familiaridade.vi
O homem camusiano está
em luta com sentimentos contraditórios. Perante o mundo ele
sente-se um estrangeiro, um Mersault, solidário, mas
solitário. Há uma alternância de amor e ódio,
de união e de cisão que regula as relações
com todo a sociedade. O pensamento de Camus faz.-nos, de facto,
pensar em termos de antinomias, de binómios e é
precisamente no drama destas antinomias, no afastamento, por um lado,
e na nostalgia de uma "união perdida" por outro, que
se encontra a dimensão humana da mensagem de Camus. Utilizo a
expressão "união perdida" não sem
razão…o homem de Camus é uma espécie de
primeiro homem que começa a sua vida com um acordo, numa
espécie de "paraíso" com as cores de Núpcias.
No entanto, este "paraíso" (aliás como todos
os "paraísos") está condenado a "curta
vida" pois depressa a consciência desperta e com ela toda
uma crua lucidez, pois o que fazia a felicidade deste "primeiro
homem" eram uma ignorância e uma inocência que se
dissiparam para descobrir a grande inquietude. Se por um lado o homem
se "despede" do seu "paraíso", por outro
lado, encontra-se livre como na grande Queda. Para além
do acordo animal que anteriormente mantinha com a terra, há
que agora procurar (onde?) uma outra unidade, uma unidade necessária
que fará a sua verdadeira felicidade. Com o despertar da
consciência vem o medo e vem a angústia, e como já
tive oportunidade de referir, o absurdo é esta separação.
Deste absurdo fundamental decorre uma discrepância entre tempo
e espaço (mais um dos binómios camusianos): Vivemos
sobre o futuro: "amanhã", "mais tarde",
"quando tivermos uma boa situação", "com
a idade compreenderás"vii.
O homem pertence ao tempo, mas sonha com o amanhã. Este amanhã
é um amanhã com os outros; toda a obra de Camus é
constituída em função do outro, no
entanto, convém ter em conta que este outro não
é o inferno sartriano na medida em que as relações
com o outro são, para Camus, relações de
amor, ao mesmo tempo que são relações de ódio
(mais uma vez aqui constatamos como Camus nos faz pensar em termos de
dicotomias). O despertar da sua consciência revela-lhe não
só a sua existência, ma também a existência
do outro, no entanto, ele reconhece que o seu "eu" é
só, distinto e separado dos outros: o outro não
é apenas o outro- sujeito, mas também o outro
-mundo; no fundo, o não-eu está pleno de
hostilidade surgindo como uma ameaça, algo que está
pronto a declarar guerra. Este tudo-o-que-não-sou-eu,
revolta o homem pela sua indiferença, espessura e estranheza.
Consciente dessas hostilidades, o homem de Camus para viver, ou
melhor, para sobreviver, terá necessariamente que se defender,
mas é precisamente ao defender-se que ele se apercebe da sua
duração limitada, da ineficácia das suas armas,
das suas reduzidas possibilidades.
Aquela paz, aquela "unidade
perdida" que ele deseja reencontrar, não fazem parte dele
próprio, nem do outro– isto é a angústia.
Angústia causada pela separação e pelo desejo
paradoxal de unidade que habita no interior de si próprio.
Assim, a angústia e a nostalgia
apresentam-se como dois sentimentos inseparáveis: separação
e comunhão. Estes aspectos estão em jogo e constituem
um jogo neste problema da felicidade.
Para o homem camusiano tudo o que é
consciente aspira, de uma forma ou de outra, à unidade seja
ela o amor, o acto religioso ou até o acto criminoso.
A atitude do homem camusiano perante
esta separação, este desejo quase insustentável
de união, é a revolta. Fora do suicídio, a
reacção do homem é a revolta instintiva. A noção
de revolta está lá bem no centro de Calígula;
revoltado contra o mundo onde os homens não são felizes
e que dispondo de um poder absoluto, experimenta a revolta absoluta
tentando igualar-se aos deuses, imitando a sua crueldade em toda a
sua extensão, querendo apropriar-se do impossível. Para
Sísifo, que rejeitou o suicídio, esta revolta não
é apenas um dever ou uma consequência, mas acima de
tudo, uma dignidade. Mas se as personagens de Camus experimentam
felicidades diferentes, também experimentam revoltas
distintas. A revolta de O Mito de Sísifo não é
a mesma da de O Homem Revoltado; enquanto que nesta última
obra, o homem revoltado na tentativa de encontrar a união, a
fraternidade, o amor, revolta-se por um valor universal, na primeira,
a revolta é "para nada":
No mundo hostil e perante a ameaça,
a questão é: pode o homem por si só criar os
seus próprios valores? É preciso revoltarmo-nos para
agirmos, mas dentro de que limites? Ou por outra, há limites
para a revolta? Veremos…
Mas voltando aos "heróis
revoltados", podemos dizer que apesar de herdeiro de Calígula,
das suas experiências e das suas "nuances", Sísifo
muda a táctica da revolta; vai vingar de certa forma calígula,
ou seja, vai transformar a derrota de Calígula numa vitória,
num grito de alegria e num grito de desespero.
O que Calígula lamentava,
Sísifo exalta. O que interessa a Sísifo é a
quantidade, o temporal e não o eterno, como dis Nietzsche: o
que importa não é a vida eterna mas a eterna
vivacidade. Sísifo pretende viver com as contradições,
ao passo que Caligula pretende aboli-las. O que é com
efeito, o homem absurdo? Aquele que sem o negar, nada faz pelo
eterno. Não que a nostalgia lhe seja estranha. Mas prefere-lhe
a sua coragem e o seu raciocínioviii.
Como o seu objectivo não é a eternidade, mas pelo
contrário, o tempo e a pluralidade, Sísifo vai
empenhar-se empregando "meios positivos" e irá
trocar a qualidade pela quantidade, o eterno pelo temporal, a unidade
pela totalidade, multiplicando o que não pode unificar. A
crença no sentido da vida pressupõe sempre uma escala
de valores, uma escolha, as nossas preferências. A crença
no absurdo, segundo as nossas definições ensina o
contrário.ix
Também em Don Juan encontramos
esta ética da quantidade, em detrimento de uma ética da
qualidade; o que interessa a Don Juan é viver mais, porque
para ele o que conta é a quantidade de satisfação;
o que vem depois da morte não lhe interessa, apenas porque
ignora a esperança. Esgotar o número de mulheres é,
para Don Juan, esgotar todas as suas possibilidades. Trata-se de
ganhar a sua moral quantitativa. Mas não ultrapassará
este desafio a própria força humana? Não é
possível viver eternamente aceitando o ódio e a
separação: Trabalhar e criar para nada, esculpir na
argila, saber que a nossa criação não tem
futuro, ver a nossa obra destruída um dia, sendo consciente de
que, profundamente, tal não tem mais importância do que
construir para séculos, eis a difícil sageza que o
pensamento absurdo autoriza.x
Como é que podemos ser felizes neste inferno? Mas se Sísifo
tem muito a ganhar a Calígula, Calígula ganhou a Sísifo
na consciência de que para ganhar a tal moral quantitativa é
preciso eliminar os outros. Lícito?
Para ser, o homem deve revoltar-se,
mas a sua revolta deve respeitar o limite que ela descobre e onde os
homens reunindo-se começam a serxi.
Esta passagem mostra a direcção que vai tomar a revolta
camusiana, por outras palavras, os homens para viver vão
reunir-se e não mais se separar. A revolta tem para Camus o
mesmo papel que a dúvida metódica de Descartes;
deixa-nos no impasse, mas orienta-nos de facto numa nova procura. Eu
posso duvidar de tudo, não acreditar em nada, dizer que tudo é
absurdo…mas eu não posso duvidar do meu grito; ele faz-me
crer ao menos no meu protesto. Camus vai por conseguinte tirar da
revolta a existência de um primeiro valor positivo: a unidade.
A revolta nasce de um espectáculo de insensatez perante uma
condição injusta e incompreensível. Mas o seu
impulso de cega reivindica a ordem no meio do caos e a unidade mesmo
no âmago daquilo que foge e se desvanece. Ela grita, ela exige,
ela quer que o escândalo cesse e se fixe(…).xii
Se o homem revoltado é o homem que diz
não, é também o homem que diz sim, pois o "não",
não é uma renúncia, é antes uma recusa,
ou seja, a afirmação de um determinado limite, de uma
fronteira: "até aí sim, a partir daí não"!
A revolta é no fundo a recusa de uma violação
intolerável e ao mesmo tempo a própria consciência
de um direito de certa forma ainda confuso. No entanto, se eu me
revolto é porque de alguma forma sei que tenho razão,
logo, trata-se de defender o que sei que quero preservar para cá
dessa fronteira que imponho. O "não" é a
recusa à violação desse espaço. O "sim"
é a afirmação de um valor que, pouco a pouco,
vai adquirindo mais e mais sentido.
Para além de qualquer destino propriamente
individual, a revolta funda um valor universal, que é o valor
da natureza humana, a qual justifica e implica a solidariedade entre
os homens, afirmando apaixonadamente a dignidade humana. A primeira
verdade que é descoberta (e que será fundamento da
revolta unitária) é a exigência de unidade
universal, mas não é esta uma exigência de amor?
A reivindicação da unidade em todos os movimentos de
revolta confunde-se com o amor.
Para compreendermos melhor o movimento da revolta,
vamos situar-nos no quadro hegeliano da dialéctica
senhor/escravo: o escravo durante muito tempo aceitou tudo,
obedecendo às ordens do senhor. Pouco a pouco a impaciência
vai-se instalando e com ela nasce um sentimento que se extende a tudo
anteriormente aceite. Nasce um valor, algo pelo qual vale a pena
viver, dar a vida, se assim for preciso. Este valor é uma
espécie de bem supremo. Agora é tudo ou nada- eis a
vertigem da revolta. O escravo quer identificar-se com esse valor,
com esse bem supremo e no limite pode, inclusivamente, aceitar a
morte em nome desse valor. Este "tudo ou nada" significa o
homem que sacrifica tudo por um bem que para si ultrapassa o seu
próprio destino. A revolta integra o homem de uma determinada
maneira, numa certa cumplicidade que o une aos outros homens. No
entanto, convém sublinhar, porque essencial, que o movimento
da revolta é estritamente individual; parte do indivíduo
concreto e denuncia a sua condição específica,
embora o valor descoberto pelo indivíduo seja um valor
universal, ou seja, o respeito que o indivíduo sente por si
próprio, identifica-se de certa forma com o respeito do outro,
mas isto verifica-se porque há um confluir de interesses,
porque há algo comum e não porque seja a revolta de
âmbito colectivo. A revolta é um movimento estritamente
individual. Na revolta o homem supera-se no seu semelhante visto que
há um destino comum, uma condição comum que
movimenta tudo e penso que é neste sentido que podemos falar
de uma solidariedade metafísica.
É devido à própria condição
mortal, ao mal, que o espírito do homem se volta contra a
criação inteira; esta é a revolta metafísica
que não é, tenhamos isso em conta, necessariamente um
movimento ateu, mas que muito pelo contrário penso que
denuncia todo um Deus que é tido por responsável dos
limites próprios da vida e que confia o seu império aos
homens. Sendo assim, pode-se dizer que com o advento do cristianismo
aparece a autêntica revolta metafísica.
De Caim a Nietzsche, toda a revolta é feita
contra um Deus implacável, no entanto, não é a
revolta,a nagação absoluta da divindade?
Para Sade, que é Deus senão uma
criatura injusta, demasiado cruel? Se assim é, nada impede de
matarmos o nosso semelhante; uma vez que o universo é
destituído de Lei, só há um imperativo: o
instinto, o desejo. A natureza precisa do crime e assim sendo é
preciso destruir e admitir o assassínio…
Em Dostoievski, a revolta é niilista e supõe
por conseguinte uma recusa da salvação. No limite da
revolta o homem torna-se Deus, recusando todo e qualquer tipo de lei
que não seja a sua!
Depois de constatar que Deus está
morto, Nietzsche consente em se revoltar e de crer em novos valores
que permitam a responsabilização do super-homem na
vontade de poder. Assim, é preciso dizer sim a tudo, até
ao assassínio se assim for necessário. Diante de
Deus!-Agora, porém, esse Deus morreu! Esse Deus, ó
homens superiores era o vosso maior perigo. Somente desde que ele jaz
no túmulo, vós ressuscitastes. Somente agora chega o
grande meio-dia, somente agora o homem superior se torna o senhor!
(…) Vamos! Coragem, homens superiores! Somente agora a montanha do
futuro sente as dores do parto. Deus morreu; nós queremos,
agora, que o super-homem viva.xiii
Não estarão, no entanto, tanto Sade
como Nietzsche a culminar e a aderir ao niilismo, á falsa
teoria? Não serão eles os traidores da revolta? Sim,
estamos no campo dos limites. Se o revoltado à falta de
"modéstia" pretende a liberdade absoluta, acaba é
por pretender uma ordem absoluta. Os precursores da revolta perpétua
acabam por exigir do outro a mais total das submissões,
acabando por exaltar o assassínio, pois estas duas forças
afirmam-se até se enfrentarem e neste momento, uma delas é
necessariamente destruída. Assim, o movimento da revolta
mostra-se de certa forma vicioso, porque o rebelde que de início
se insurgia contra a sua condição, acaba por contestar
dessa insurreição o poder do senhor, daquele que o
oprime.
Onde conduzem, portanto, a fidelidade ou a
infidelidade do homem revoltado às suas origens? É aqui
que se coloca o problema da revolta e da revolução.
Existe ou não revolução? Não é ela
uma traição da revolta? Não legitima ela o
crime? Veremos que em Camus não há revolução,
porque a revolta é uma tensão perpétua que, como
tal, tem de ser mantida.
A evolução económica do mundo
moderno e em particular todo o desenvolvimento da indústria
nos países europeus, fizeram da revolta não só
uma realidade humana mas também "a nossa realidade
histórica". As democracias que eram fundadas sobre a
escravatura cederam lugar aos feudalismos que desabrocharam em
monarquias absolutas. Estas monarquias cederam lugar pouco a pouco a
uma burguesia industrial e comercial que para atingir os seus
objectivos exaltou no povo o desejo de liberdade e de igualdade.
Evidentemente que a rebelião exprime paradoxalmente uma
aspiração à ordem, mas esta nova ordem nega, por
seu turno, a revolta ou então "domestica-a". A
revolta é permanente vigilância.
Cada revolta é, pois, uma nostalgia de
inocência e de apelo ao ser, mas um dia essa nostalgia pega em
armas e assume a culpabilidade total e, por conseguinte, o crime, a
violência e todas as revoltas em geral do século XX,
aceitaram uma culpabilidade cada vez maior, uma vez que o propósito
era instaurar uma liberdade total. A partir do momento em que como
Nietzsche, se diviniza a espécie e se pretende realizar um
ideal de super-humanidade para todos se salvarem, trai-se a revolta!
Os regicidas de 1793 puseram fim à revolta e
inauguraram os tempos revolucionários, seguindo o "Novo
Evangelho" do "Contrato Social" que rejeita a antiga
ordem.
Nasce com a revolução francesa uma
mística nova, a mística que diviniza a vontade geral e
que lhe atribui um poder ilimitado e infalível. Mata-se o rei,
diviniza-se a razão. Em nome da justiça deve-se atacar
o representante Deus na Terra. É a ambição de
ser total, o que a justiça tem de comum com a Graça.
Luís XVI é morto de facto
e este assassinato simboliza a própria dessacralização
da nossa história contemporânea e a desencarnação
do Deus cristão, pois até aqui, Deus havia estado
sempre unido à história através dos reis. Há
que agora inaugurar uma nova igreja sobre os escombros. A data de
1789 afirma a divindade do homem. O novo Deus continua a ser
constituído por três "pessoas", só que
agora elas são: a verdade, a justiça e a razão.
A fé é substituída pela razão
precipitando-se esta na história de tal forma que agora ela
não é mais a razão reguladora, mas uma razão
conquistadora, eu diria até, uma razão devastadora.
Obedecendo ao niilismo, a revolução voltou-se
efectivamente contra as suas origens de revolta.xiv
O homem que a princípio odiava a
morte quis depois libertar-se dela mediante a imortalidade da
espécie, só que enquanto a espécie não
reinar sobre o mundo, continuar-se-á a morrer inevitavelmente.
O homem quer reinar através da revolução, mas
para quê? A destruição do homem é ainda a
afirmação do próprio homem. A revolução
contemporânea, que pretende negar todo e qualquer valor é
já em si mesma um juízo de valorxv.
Embora o niilismo absoluto não exista (ou em última
análise, somente no suicídio) tudo isto é
suficiente para esterilizar o homem. Este furor niilista acabou por
transformar uma terra de humanismo, num mundo perfeitamente desumano.
Na Rússia, o terrorismo individual deu corpo
a um valor: o da emancipação do homem só que, de
facto, nenhum dos intelectuais de 1825 tinha um programa sólido
para levar a cabo esse projecto. O terror é utilizado como
meio de governo e a revolta é doravante negada ou traída.
Movimentos como os de Mussolini ou Hitler, mostraram
que a acção perpétua é tomada como um
valor, unindo-se ao terror perpetuo a nível do Estado. A
negação por parte do hitlerianismo uniu-se ao nada, ao
passo que o comunismo russo ainda conservou a ambição
metafísica de edificar a cidade do homem divinizado.
Do ponto de vista "profético"
digamos assim, o marxismo pode ser entendido como uma espécie
de religião que anuncia um amanhã longínquo. No
entanto, este messianismo de Marx é por um lado burguês
e por outro lado revolucionário: burguês, uma vez que
todas as esperanças de Marx são depositadas no
desenvolvimento industrial e no progresso científico;
revolucionário, uma vez que Marx atribui ao capitalismo os
antagonismos existentes na sociedade, antagonismos estes que
desaparecerão numa síntese que será a própria
sociedade sem classes.
Apesar de fracassadas as suas teorias, Marx
revelou-se um génio extraordinário e a sua grandeza
reside precisamente no facto de ter reivindicado a dignidade do homem
no trabalho. Não obstante isso, Marx condenou todo um estado a
desaparecer a partir do momento em que o proletariado estabelecesse o
seu reino de sociedade sem classes. Sob o pretexto de materializar o
sonho de unidade primitiva, o mundo comunista acabou por se "enrolar"
num totalitarismo que, no mínimo, esmagou toda a liberdade.
Mas não só o comunismo como também o fascismo,
uma vez que também este está fundado sobre o cinismo
político e sobre o niilismo moral.
A Revolução Russa ao voltar-se contra
as origens revoltadas, segue as ideologias do consentimento e se
consente, o revolucionário abdica da sua revolta, mas se
persiste é perseguido: por isso todo o revolucionário
acaba em opressor.
Revolta e revolução são,
por conseguinte, palavras que entram em contradição, em
oposição; a revolução faz-se humilhação
e finalmente traição da revolta. Dominada pela vertigem
da revolta, a revolução converte-se em negação
do ser e da natureza humana, renegando-se a si própria. A
reivindicação da revolta é a unidade; a
reivindicação da revolução é a
totalidade.xvi
Ao passo que a revolta procura criar para ser cada
vez mais, a revolução força-se a produzir para
negar cada vez mais. A revolução histórica
obriga-se a agir na esperança sempre frustrada do amanhã
longínquo, do "vir q ser". A revolta diz-nos que em
vez de matar e de morrer para criar o ser temos, sim, é que
viver e fazer viver para criar aquilo que somos.
O movimento da revolta contém em si um valor
que é a própria renúncia à violência
de princípio e implica logicamente a impossibilidade de se
fazer uma revolução.
O crime atraiçoa, portanto, o valor que havia
sido posto em evidência pelo movimento revoltado. Aquele que
tido nega e que se permite matar, seja ele Sade ou outro qualquer,
reivindica uma liberdade total; o niilismo confunde numa raiva
desmesurada o criador e as criaturas. A revolta compromete-se com o
conhecimento mútuo dos homens no que refere ao seu destino e
contra o niilismo, defende uma regra de conduta.
Todo o revoltado é acérrimo defensor
da vida, comprometendo-se a lutar, nesse sentido, contra a servidão,
contra a mentira, contra o terror. É isto que permite ao
revoltado sair do niilismo- a longa cumplicidade dos homens em luta
contra o próprio destino. A liberdade de matar, a legitimação
do assassínio não é, pois, de forma alguma,
compatível com a revolta. A revolta não é de
forma nenhuma um processo, ou uma busca da liberdade total no
verdadeiro sentido do termo,. Muito pelo contrário, ela
contesta o poder ilimitado que autoriza a violação do
espaço que ela sempre quis preservar e que esteve na sua
génese. O revoltado quer que realmente se reconheça que
a liberdade tem também os seus limites e que esses limites
estão onde se encontra um ser humano. À liberdade que
mata, o revoltado diz "não". Se a revolta exige uma
unidade, então ela deve ser necessariamente força de
vida e não força de morte. A lógica da revolta é
precisamente a criação e para se manter viva (só
assim ela é revolta) deve manter os termos, os pólos da
sua contradição: fiel ao "sim" do valor que
se elevou e fiel ao "não" que afirma o limite.
Os niilistas, os anarquistas, recusam a ordem
existente e tentam substitui-la por estruturas imaginárias que
não passam disso…a paixão niilista destrói a
velha exigência e despoja-se das razões límpidas
da revolta.
A revolta deixaria de ter razão de ser se o
homem por si só fosse capaz de introduzir no mundo, a tal
unidade desejada. A revolta existe, porque de facto a injustiça,
a mentira, a violência fazem parte integrante da condição
do revoltado. O valor que o revoltado possui terá de ser
mantido incessantemente.
O revoltado recusa a história, contesta-a em
nome de uma ideia que possui da sua própria natureza. Recusa a
sua condição, pois em grande parte ela é
histórica, uma vez que a injustiça e a morte só
se podem manifestar na história. Repelir isto, significa
repelir a história, mas não negá-la, visto que é
na própria história que o revoltado se procura afirmar
necessariamente, e se participa inevitavelmente do crime da história,
não o legitima.
Nietzsche constitui um exemplo deste corte, desta
cisão, desta traição da revolta (aliás,
como já foi referido). A liberdade que Nietzsche exige é
uma liberdade tão esgotante que impõe, a quem se situa
acima das leis tradicionais, a criação de novos
valores, de novos deveres. O heroísmo nietzschiano acaba por
se fortificar numa submissão sem reservas às próprias
forças naturais. A lógica de Nietzsche conduz a um
mundo de senhores e de escravos e, portanto, mais uma vez, à
glorificação do assassínio.
A revolução é, para Camus, a
perda total de equilíbrio, pois mergulha no mundo do terror.
Camus recusa o "amanhã" revolucionário, o
"vir a ser", porque simplesmente esse amanhã é
aleatório.
É, por conseguinte, a espera fiel do espírito
de revolta- que não é mais do que a consciência
dos seus limites- o que pode evitar a desmesura do terror e da
guerra.
Para além de niilismo existe, de facto, um
pensamento revoltado que pode salvar o mundo do crime, que é o
próprio movimento da vida, amor, fé e unidade; revolta
sagrada, capaz de restituir a lama a uma Europa que acaba por
esquecer que na luz, o mundo fica, permanece o nosso primeiro e o
nosso último amor.
A revolta não pode prescindir de
um estranho amor, como já referi, e assim os que não
encontram descanso nem em Deus nem na história, condenam-se a
viver para quem, como eles, não pode viver: para os
humilhados.xvii
Com efeito, a revolta sem aspirar a
resolver todas as coisas, pode já, pelo menos, opor-se. A
partir deste instante, o meio-dia inunda o próprio movimento
da história.xviii
Fidelidade à terra, à obra, à
dimensão humana: Camus.
Contra o céu, escolheu a terra
grave, o sofrimento com todas as suas fatalidades, os seus enigmas e
a morte por fim. A justiça é, para Camus, a primeira
aproximação à felicidade, bem como a liberdade
que se chega a confundir com a própria felicidade: esta
liberdade pela qual os homens aceitam morrer se assim for necessário.
E eis que para o "século do medo" Camus nos deixa a
sua mensagem: Eu pelo contrário, escolhi a justiça a
fim de permanecer fiel à terra. Continuo a pensar que este
mundo não tem qualquer sentido superior. Mas sei que nele, se
alguma faz sentido é o homem, porque ele é o único
a exigi-lo. Este mundo possui pelo menos a verdade do homem, e é
nosso dever dar-lhe razão contra o próprio destino. E
essa razão não é outra senão o próprio
homem. É ele que fará com que seja salva, se quisermos,
a ideia que fazemos da vida (…) o que é salvar o homem?
(…) É não o mutilar, dar todas as oportunidades a
essa justiça que só ele é capaz de conceber.xix
Notas
xix
Albert Camus, Cartas a Um Amigo Alemão, pp. 80/81.
crèatrice et structure de l’oeuvre littéraire,"Essais
d’Art et Philosophie", J. Vrin. Paris, 1971.
Trad. De J. Terra, Ed. Livros do Brasil, Lisboa, s/d.
R. De Carvalho, Ed. Livros do Brasil, Lisboa, s/d.
Trad. De J. C. González e J. Serrano, Ed. Livros do Brasil,
Lisboa, s/d.
A Quadros, Ed. Livros do Brasil, Lisboa, s/d.
de V. Motta, Ed. Livros do Brasil, Liboa,s/d.
Trad. de U. Tavares Rodrigues e Ana de Freitas, Ed. Livros do
Brasil, Lisboa, s/d.
moralismo", in Aut-Aut, nº53, 1959, pp.303-317.
penseé de Camus, Ed. Bordas, Paris-Montréal, 1971.
Camus., Col. Profil.,Ed. Hatier, Paris, 1977.
em Camus", Revista de Filosofia, Universidade de La
Plata, nº19 (1967),pp-7-22.
Paris, Seuil. Colof. 1963.«Écrivants de toujours».
Camus, Bertrand Editora, Lisboa, 1978.
du Bonheur chez Albert Camus, Col. Langages, Ed. La
Baconnière-Neuchatel, Suíça, 1968.
Trad. De Márcio da Silva, Ed. Civilização
Brasileira, Rio de Janeiro, 1986.
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