Notas sobre o ensino de Filosofia para jovens

Notas sobre o ensino de Filosofia para jovens

Marlene Santos

Algumas
das questões recorrentes entre os jovens, quando apresentados ao estudo da
Filosofia, são: "De que trata essa matéria?", "Para que serve a
Filosofia?", "Reprova?", "Cai no vestibular?", “Se não
cai no vestibular, para que serve, então?”. Tais questões revelam, mais que uma
curiosidade natural, um misto de comodismo, de ansiedade e de preocupação em
dedicar-se apenas a aquilo que for considerado imediatamente útil e aplicável nas
situações concretas do cotidiano.

O
comodismo de alguns jovens apresenta-se num modo de ser e de viver que consiste
em esperar soluções prontas, rápidas, fáceis e que possam ser utilizadas na
resolução das mais diversas situações: desde uma questão de vestibular até uma
questão ética. Cultivados numa sociedade que lhes oferece muito pouco em termos
de possibilidades de crescimento afetivo, intelectual e ético, nossos jovens
quase não exercitam sua capacidade de escuta, pois ouvem apenas fragmentos dos
diversos discursos proferidos em seu entorno, compreendem muito pouco desses
discursos e pouco apreendem em suas vivências e em sua convivência com os
demais membros da sociedade. Muitos, infelizmente, contentam-se em copiar, em
repetir, em esperar que qualquer conhecimento lhe seja dado ou passado
Tornam-se, pois, receptores passivos, apenas absorvem conteúdos
“elaborados” por outrem (por seus professores? por seus familiares? por seus
ídolos da mídia?).

A
ansiedade conjuga-se a um modo de viver apressadamente: sem tempo para
verem a si mesmos, para compreenderem suas próprias possibilidades e carências. Sem tempo para ver
o outro e reconhecer nele um reflexo de si (com similares dores e angústias,
inseguranças, desejos, planos, sonhos); sem tempo para construir, dia-a-dia, os
afetos que o tornam verdadeiramente humano: a solidariedade, o respeito, a
amizade, o amor; sem tempo para alimentar qualquer vontade de saber… Ansiosos
para tudo viver, pouco aproveitam das experiências que se apresentam a cada dia
de vida; sedentos pelo prazer imediato, poucos se permitem construir uma vida
prazerosa; desesperados por alcançar um futuro brilhante, poucos constroem seus alicerces
no presente: nem tudo que reluz é ouro!… é preciso paciência e reflexão para
compreender…

O
utilitarismo pode ser entendido como a triste herança que nossos jovens ainda
hoje recebem, nos diferentes processos educativos aos quais estão submetidos (formais
e não formais), e que os nutre de uma visão de mundo que privilegia a
fragmentação do conhecimento e de sua aplicação imediata a problemas empíricos,
a partir da utilização de um certo número de procedimentos, técnicas e
tecnologias consideradas adequadas à estes. Tal herança utilitarista leva ao
entendimento equivocado de que uma formação educacional mais ampla, contextualizada, problematizadora, transdisciplinar – e, portanto,
crítica – seria uma perda de tempo, um desperdício de energia vital com
conhecimentos que pouco ou nada teriam a acrescentar a curto e médio prazos à
sua existência.

Essa
perspectiva utilitarista, embora seja considerada ultrapassada por vários
estudiosos, continua a orientar tácitamente nossos processos educativos e,
portanto, os discursos, as idéias e as ações de nossos jovens. Muitos daqueles
que se dizem preocupados com a educação e muitos dos responsáveis pela mesma
tornaram-se, na verdade, irresponsáveis artífices de uma geração sem história,
sem compromisso social, sem criatividade, sem perspectivas e sem curiosidade,
elemento essencial para qualquer busca humana e força propulsora do trabalho
filosófico.

De
que trata a Filosofia? Trata de nos perguntarmos o porquê de perguntarmos,
o porquê de existirmos, o porquê de termos em nós tantos quereres, tantas
incertezas, de sermos escravizados por tantas ilusões. A Filosofia trata,
também, de nos apresentar a vida noutra perspectiva: uma perspectiva na qual o
valor das coisas não está apenas em seu uso como instrumento para
atingir algo; por extensão, nos mostra que o valor do conhecimento não pode ser
medido apenas pelo que ele resolve das carências e problemáticas cotidianas,
mas principalmente pelo que pode nos acrescentar em termos de humanidade:
capacidade de compreender a nós mesmos como seres históricos, criativos,
capazes de erguer, destruir e reconstruir coisas belas1. A Filosofia
trata de tudo o que é humano: das capacidades humanas de criação, de simbolização, de expressão,
de paixão e trata das possibilidades de construção de relações sociais pautadas
pela ética, pelo respeito e pela justiça de fato.

E
para que serve tudo isso? Serve para não servirmos, para que não nos
tornemos servos, para que não nos tornemos autômatos, repetidores acríticos de fórmulas
obsoletas, de crendices ingênuas e/ou absurdas, de preconceitos infames. Serve
para não sirvamos à ditadura dos modismos, da alienação, dos abusos e das politicagens. Serve para que
não valorizemos o que de pior pode produzir o ser humano: a intolerância, a
discriminação, a exclusão, as tantas violências com as quais convivemos todos
os dias e diante das quais nos comportamos ora como se estivéssemos
anestesiados, ora como se fôssemos incapazes de viver uma vida digna,
realmente produtiva, verdadeiramente humana.

“A
Filosofia tem a função de desvendar o senso comum”2, de ultrapassar
os limites das pequenas “espertezas” e do “jeitinho”, mas para tanto não deve
restringir-se a um conteúdo abstrato, excessivamente difícil e desligado das
indagações referentes à estruturação da realidade, subjacentes ao discurso
dos adolescentes. Deve propiciar a eles uma oportunidade de amadurecimento,
necessário para que possam, verdadeiramente, assumir na sociedade um papel
consciente, ativo, autônomo e responsável. Tal objetivo pode concretizar-se na
medida em que o curso de Filosofia para jovens tenha como ponto de partida
algumas questões e temas de caráter introdutório, que possibilitem a
progressiva inserção do aluno, não apenas no campo da História da Filosofia,
mas na prática mesma do filosofar. Tal tarefa poderá ser realizada a partir do
estímulo para que o jovem realize o constante exercício de colocar a si mesmo
questões acerca dos valores vigentes em sua sociedade e questões a respeito de
como o homem pode realizar-se nos planos da criatividade, da sensibilidade, da
inteligência, da ética, da afetividade etc, ainda que esteja imerso num
contexto que lhe é imposto e no qual os padrões de valor se antepõem a tal
realização. Ambos os enfoques deverão ser explorados simultaneamente, visto que
não se pode dissociar o desenvolvimento das capacidades dos indivíduos das
condições materiais e históricas que determinam o sistema de valores em que
eles estão inseridos.

Ensinar
a filosofar, pois, desafia constantemente o educador a superar suas
idiossincrasias, desafia-o a buscar o saber com a humildade de aprendiz e a
consciente atitude do compartilhar; privilégio generoso de quem sabe-se humano
e, portanto, co-responsável pela construção de conhecimentos que poderão nortear um
modo de existência que não seja refém dos dogmatismos, dos fundamentalismos, das receitas
disciplinares, das respostas insipientes às angústias da existência. Somos todos
(pais, mestres, gestores, políticos, “formadores de opinião”), em diferentes
medidas e de diversos modos, responsáveis pela triste configuração de nossas
instituições educacionais, pela geração mimada, indolente, abandonada, perdida,
sem limites éticos e carente de valores que tanto criticamos em nossas
improdutivas reuniões pedagógicas.

Filosofar
não faz milagres, nem há de salvar a pátria, apenas pode nos revelar o que, por
vezes, tentamos esconder: que temos sobrevivido tristemente e “educado” as
novas gerações para uma sobrevivência culturalmente pobre, perdida nos excessos
conteudistas, nas informações fragmentadas, nas pseudo-ciências e nos truques
ilusionistas dos charlatões de plantão. A Filosofia pode, apenas, nos colocar
em cheque, porém, para isso, precisamos aprender a querer jogar.

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Marlene
Santosi é professora de Filosofia na rede pública estadual de São Paulo.

Notas:

1. Verso da canção Sampa de Caetano Veloso.
2.É assim que o aluno Paulo Barbosa Yoshikado (2º ano do
Ensino Médio da EESG Oswaldo Catalano) define a Filosofia.

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