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28/08/2004 às 3:34 #70167Miguel (admin)Mestre
Leo Ripa,
Optei por responder sua msg aqui pois a lista onde estava postada tratava de outro tema. Esta diz respeito à obra de Bernard de Mandeville, médico holandês, intitulada “A fábula das abelhas ou vícios privados benefícios públicos“.
A obra apresenta uma abordagem sem precedentes na filosofia antiga ou medieval: faz uma análise da ética sob a perspectiva do egoísmo ético, atribuindo o sucesso da colméia aos vícios das abelhas, ou como comenta: “sons dissonantes produzem, unidos, um harmonioso acorde”.
Na fábula, originalmente, a colméia era formada por dois grupos: os canalhas assumidos e os canalhas dissimulados. Atuavam a lei, a justiça e a participação divina, transformando o vício individual em benefício coletivo. Quando, por fim, Júpiter resolve acabar com os vícios, a colméia entra em um período de decadência.
A título de resumo: segue uma pequena amostra do texto:
Uma grande colméia, de abelhas repleta,
Que viviam em luxuosidade completa,
Porém tão famosa por leis e ação
Quanto por copiosa população,
Constituía o grande manancial
Do saber científico e industrial.
Não havia abelhas com governo melhor,
Com mais contentamento, inconstância menor;
Não eram escravas da tirania,
Nem sofriam com democracia,
Mas tinham reis, que errar não podiam,
Pois seu poder as leis comediam.
(…)Embora o enxame a fértil colméia abarrotasse,
Essa multidão fazia com que ela prosperasse;
Milhões procuravam dar satisfação
Mútua a sua cupidez e ostentação;
Outros tantos entravam na lida
Para ver sua obra destruída.
Abasteciam o mundo com sobra,
Mas tinham mais trabalho que mão-de-obra.
Alguns, com pouco esforço e grande capital,
Faziam negócios de lucro monumental;
Outros, condenados a foices e espadas
E a todas essas árduas empreitadas
Em que, voluntariamente, infelizes suavam
Para poder comer, as forças esgotavam;
Outros ainda a mistérios estavam votados,
Aos quais poucos aprendizes eram encaminhada
Que não requeriam senão o impudor,
E sem um centavo podiam se impor
Como parasitas, gigolôs, ladrões,
Punguistas, falsários, magos, charlatões,
E todos os que, por inimizade
Ao honesto labor, com sagacidade
Tiravam vantagem considerável
Da lida do vizinho incauto e afável.
Chamavam-nos canalhas, mas os diligentes,
Exceto o nome, não agiam diferente.
De todos os negócios a fraude era parte,
Nenhuma profissão era isenta dessa arte.
(…)Assim, o vício em cada parte vivia,
Mas o todo, um paraíso constituía;
Temidos na guerra, na paz incensados,
Pelos estrangeiros era respeitados,
E, de riquezas e vidas abundante,
Entre as colméias era a preponderante.
Tais eram as bênçãos daquele estado;
Seus crimes tomavam-no abastado;
E a virtude, que com a politicagem
Aprendera bastante malandragem,
Tomara-se, pela feliz influência,
Amiga do vício; por conseqüência,
O pior elemento em toda a multidão
Realizava algo para o bem da nação.
(…)Assim, o vício fomentava o engenho
Que, unido ao tempo e ao bom desempenho,
Propiciava da vida as comodidades,
Seus prazeres, confortos e facilidades,
A tal extremo que mesmo os miseráveis
Viviam melhor que os ricos do passado,
E nada podia ser acrescentado.
Como é vã dos mortais a felicidade!
Soubessem eles da precariedade,
E de que, cá embaixo, a perfeição
Não pode dos deuses ser concessão,
Teriam os animais se contentado
Com ministros e governo instalados.
Porém eles, a cada sobrevento,
Como seres perdidos e sem tento,
os políticos e as armas maldiziam,
Enquanto “Abaixo os desonestos!” rugiam.
Os próprios defeitos podiam tolerar,
Mas dos demais, barbaramente, nem pensar!
(…)A menor coisa que um erro mostrasse,
Ou que os negócios públicos trancasse,
E todos os velhacos gritavam aos céus:
“Se ao menos houvesse honestidade, oh ceus!”
Mercúrio sorria ante o descaramento,
Já outros chamavam de falta de tento
Protestar sempre contra o mais amado.
Mas Júpiter, de indignação tomado
E, por fim, irritado, jurou de vez
Livrar a colméia da fraude. E assim fez.
No mesmo momento em que ela partia
De honestidade o coração se enchia;
Tal como para Adão, se lhes revelaram
Aqueles crimes dos quais se envergonharam,
Que então, em silêncio, confessaram,
E ante sua torpeza coraram,
Como menino de mau comportamento
Que pela cor denuncia o pensamento,
Imaginando, ao ser olhado,
Que os outros vêem o seu passado.
(…)Vede agora na colméia renomada
Honestidade e negócios de mão dada;
O show terminou; foi-se rapidamente,
E mostrou-se tom face bem diferente.
Pois não apenas foram-se embora
Os que gastavam muito a toda hora,
Como multidões, que deles dependiam,
Para viver, forçadas, também partiam.
Era inútil buscar outra profissão,
Pois vaga não se achava em toda nação.
Enquanto que orgulho e luxo minguavam,
Gradativamente os mares deixavam,
Não os mercadores, mas companhias.
Fábricas fechavam todos os dias.
Artes e ofícios mortos estão.
Ruína da indústria, a satisfação
Faz com que apreciem o que possuem
E nada mais cobicem ou busquem.
Assim, poucos na colméia ficaram,
Nem centésima parte conservaram
Contra os ataques de inimigos vários,
A quem sempre enfrentavam, temerários,
Até encontrar algum refúgio forte,
Onde se defendiam até a morte.
Em suas forças não houve mercenários;
Valentemente, lutaram eles próprios.
Sua coragem e integridade total
Foram coroadas com a vitória final.
Triunfaram, porém não sem azares,
Pois as abelhas morreram aos milhares.
Calejadas de árdua lida e exercício,
Consideraram a comodidade um vício,
O que aperfeiçoou sua moderação
Tanto, que para evitar dissipação
Instalaram-se duma árvore na cavidade,
Abençoadas com satisfação e honestidade.
A essência do tema está na questão do Egoísmo Ético. Uma abordagem assim parece revelar uma boa dose de realidade, mas em muitos momentos acaba chegando em extremos que a compromete. Ela tem muita coisa em comum com a Racionalidade Instrumental de Maquiavel, segundo a qual “O Homem busca o êxito sem se importar com os valores éticos”.
Considerando a natureza humana, questões assim discutidas podem ser extrapoladas para uma abordagem mais ampla, que não só a ligada à geração de riquezas e ao jogo econômico. A ética pode sempre ser considerada numa perspectiva pendular, em mais de uma dimensão, abordando o movimento entre os pólos indivíduo X comunidade, ou a partindo dos extremos causados pelo vazio moral, entre os extremos do vício e da virtude.
Todo esse tema está integrado com o problema da necessidade de um Mínimo Legal exigido para o bom funcionamento da sociedade. Quem estabelece o mínimo legal? Estabelecido um governo, quem vigiará os vigilantes? A virtude deve conviver com os vícios? Será a “alquimia divina” a que atua como o fiel da balança entre a virtude o vício? E o que será esta “alquimia divina”? Muitas dessas questões que fazem recordar temas platônicos.
Enfim, a crítica à proposta do egoísmo ético não pode ser feita somente pela via dos efeitos da suposta atuação dos “canalhas assumidos”, isso poderia soar como atuação do grupo dos “canalhas dissimulados”, com prejuízo de credibilidade para o discurso. Por outro lado, dizer que a virtude pura não funciona não significa dizer que o vício puro funciona.
Para maiores referências tem um livro da Cia das Letras que trata do assunto: “Vícios Privados, Benefícios Públicos”, Eduarda da Fonseca Gianetti, 1993.
Por hora é só. Espero ter ajudado.
Abraços.
(Mensagem editada por fox em Agosto 28, 2004)
13/10/2005 às 2:10 #79317Miguel (admin)MestreGostaria de encontrar uma resenha sobre “A fábula das abelhas” de Mandeville, para um maior entendimento.
Atenciosamente, Sandy -
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