Existencialismo na educação

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    mimi
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    Como o filosofia existencialista de Jean-Paul Sartre pode contribuir na construção do cidadão autêntico?

    #80150

    Olá Mimi,

    Tenho estado bastante ocupado por esses dias mas, se não criar um tempo livre eu mesmo, provavelmente ele continuará em falta, já que “falta tempo para tudo”. Assim, vou tentar tocar em alguns pontos rapidamente e, se for o caso, volto a eles depois. E vc me perdoará se as vezes eu não responder tão prontamente

    Primeiramente, vejo com satisfação que vc não abraçou uma idéia de educação que encontramos com frequência, como acumulação de informação, mais especificamente, acumulação de informação para domínio de de alguma técnica. Não perderei muito tempo com essas coisas, embora saiba que ainda há muitos que considerem um “bom advogado” quem tenha o domínio do código da lei mas sem escrúpulo e sem preocupação com a justiça, ou que considere um “bom médico” quem seja capaz de operar com precisão ainda que trate os pacientes com desprezo e sem preocupação com a sua dor.  

    Sem querer mudar de assunto ou viajar longe demais, vale uma conferida naquele seriado de TV (paga), “House”, exibido pelo Universal Channel da Fox. Quem não acaba torcendo pelo médico? Examinando superficialmente parece um bom contra-argumento da tese, mas entendo justamente ao contrário, não se trata nem de desprezo, nem de falta de compaixão.

    Indo ao ponto: tb tenho gastado algum tempo sobre o seu ideal de “construção do cidadão autêntico”, mas não gostaria de partir de Sartre agora – “minguau quente se toma pelas beiradas”.

    Não consigo falar de formação do homem – prefiro essa abordagem mais ampla do que a do cidadão, pois a segunda é mais tardia e, imagino, construida sobre a primeira – sem lembrar da paidéia grega. O termo paidéia, segundo Jaerger, ultrapassa o sentido de cultura, ele atinge a totalidade da obra criadora dos gregos. Os gregos tinham esse ideal de formação do homem (então político, cidadão da polis), sua cultura era toda ela relacionada com esse fim. O fim último dos gregos, ainda com Jaerger, é voltar o homem para as estruturas criadoras das formas mais altas de cultura. Essa a maior riqueza dos gregos, tanto que mesmo na derrota militar para Roma a cultura grega foi a dominante, caso curioso na história em que a cultura do vencido sobrepuja a do vencedor, forjando a civilização greco-romana.

    A obra de Platão tem uma importâcia singular nesse contexto, forjada numa época de crise, toda ela voltada para esse ideal de formação do homem, marcou toda a civilização ocidental. Pode-se perceber isso em diversas passagens:

    Atenienses, tenho por vós consideração e afeto, mas antes quero obedecer ao deus do que a vós, e, enquanto tiver sopro de vida, enquanto me restar um pouco de energia, não deixarei de filosofar e de vos advertir e aconselhar, a qualquer de vós que eu encontre. Dir-vos-ei, segundo o meu costume: ‘Meu caro amigo, és ateniense, natural duma cidade que é a maior e a mais afamada pela sabedoria e pelo poder, e não te envergonhas de só curares de riquezas e dos meios de as aumentares o mais que puderes, de só pensares em glória e honras, sem a mínima preocupação com o que há em ti de racional, com a verdade e com a maneira de tornar a tua alma o melhor possível?’.  
    E, se algum de vós me replicar que com tudo isto se preocupa, não o largarei imediatamente, não me irei logo embora, mas interrogá-lo-ei, analisarei e refutarei as suas opiniões e, se chegar à conclusão de que não possui a virtude, embora o afirme, censurá-lo-ei de ter em pouca conta as coisas mais preciosas e prezar tanto as mais desprezíveis. Assim farei como todos os que encontrar, novos ou velhos, estrangeiros ou cidadãos, mas mais ainda convosco, cidadãos, que estais mais perto de mim pelo sangue. São ordens que recebi do deus, podeis estar certos; e creio que nunca nada foi mais útil à cidade do que o meu ministério ao serviço do deus.
    Efetivamente, nas minhas idas e vindas pela cidade, não faço outra coisa senão persuadir-vos, novos e velhos, a que não vos preocupeis mais, nem tanto, com o vosso corpo e as vossas riquezas do que com a vossa alma, para tornardes o melhor possível, dizendo-vos que não é das riquezas que nasce a virtude, mas que é da virtude que provêm as riquezas e todos os outros bens, tanto públicos como particulares. Se é com estas palavras que corrompo os jovens, é porque elas devem ser prejudiciais; mas, se alguém afirma que não é isto o que eu digo, não fala verdade. (PLATÃO, Apologia de Sócrates, 29d – 30b)

    Tomemos o caso do Brasil… seria possível imaginar alguma coisa como uma “paidéia brasileira”?  

    Infelizmente a pergunta quase soa como piada Com o que trabalhar qdo a maioria mal sabe ler e pouquissímos cultivam o hábito da leitura? Teatro e cimena, quem viu? Na música, as rádios divulgam mais “Tigrão” e outras coisas do gênero. Na tv, Ratinhos são o deleite da massa. Mas não nos esqueçamos que rádios e tvs funcionam por concessão.

    A censura seria então a solução? Não creio. Na experiência do Brasil, qdo se fala de censura se imagina o “caminho fácil”, em que o governo incapaz apela para aquilo que está mais a mão e ao seu alcance. Recordo novamente da paidéia grega, uma de suas categorias era a liberdade. Sem o exercício da liberdade, dificilmente se formará alguém. Não há “caminho fácil” para uma empresa de tamanho porte como a de formar uma nação de milhões. E sobre a possibilidade de uma “censura difícil”? Sobre isso talvez alguém fale depois.

    Fechado esse parêntese, creio que ele pode ser útil depois, vamos ao existencialismo, mas ainda não a Sartre. Acredito que uma visita a Kierkegaard seja tb providencial (também Sartre a fez).

    Kierkegaard (a partir daqui, K.) tinha essa preocupação de “elevar o Espírito” do povo dinamarquês (e porque não pensar no mundo), entretanto, via como inimigo de batalha a ética ensinada na escola. É possível formar grandes cafajestes estudiosos de ética. Isso, concordo com ele, se dá qdo a ética fica apenas no campo da reflexão, a reflexão muitas vezes se apresenta como fuga da vida. Contra o esforço para condensar a realidade em um sistema, K. se funda no princípio de que a existência é uma tensão em direção não a uma totalidade pensada, mas, sim, em direção ao sujeito, categoria essencial da existência. K. insiste na necessidade da apropriação subjetiva da verdade, pois se trata de fundamentar o desenvolvimento do pensar na raiz mais profunda da existência, no indivíduo. “Ser ou não ser”, existir ou não existir, casar ou não casar, estudar ou não estudar, roubar ou não roubar, são coisas que afetam diretamente a vida do indivíduo, não são problemas que podem ser resolvidos apenas no campo da reflexão. (Atenção, reflexão em si não é ruim, isso ficará mais claro depois, espero.) Com isso, K. desloca o foco do “transcendente distante”, de reflexões longincuas sobre o passado, sobre o futuro, ou mesmo sobre o presente, para o instante: o que vc faz agora nesse instante é que definirá o seu futuro, que será o seu presente, e que vai influenciar como será lido o seu passado. Desnecessário dizer da importância desse pensamento para a ética.  

    O Indivíduo é energia viva, ativa, autodeterminante, que surge a partir de situações concretas de opção, uma opção que ressoará por toda a sua vida. Essa escolha feita na urgência do instante é que torna o simples indivíduo no Indivíduo Existencial, que constitui a tarefa suprema do ser humano, pois trata-se da missão dirigida a cada ser humano, é a possibilidade de todos. (Creio ter escrito já sobre isso numa das listas sobre Sartre.)

    Para K., toda especulação “imparcial” não passa de uma espécie desumana de curiosidade. Por isso, K. não tentou construir nenhum sistema, o sistema exclui o homem, nenhum sistema consegue incluir a vida. Seria errado tentar ler K. esquecendo-se de que ele era cristão, mas qualquer preconceito nesse campo tb comprometerá a qualidade da leitura, K. era bastante original, com toda a profundidade desse termo. A missão a que K. se propôs parece bastante humilde se comparada com a sua esperança de influenciar uma sociedade: não construir um sistema filosófico, mas, sim, “mostrar que uma vez um homem viu o que significa existir”. Não como aquele que já viveu tal existência, mas como aquele (ele mesmo) que viu o que significa existir. Quem esconde atrás da massa/máscara é o covarde, um tolo que não ousa ficar sem máscara, como indivíduo, diante de Deus, mas espera ser redimido como espécime de rebanho, como elemento anônimo que compõe a massa. Um anônimo tb não será salvo pela moral, o morno será vomitado, “Deus tem desprezo pela massa”. Quem espera lindos textos apáticos tomará muitos sustos lendo K.

    A dialética kierkegaardiana é subjetiva e apaixonada. Ele não acredita que valores sejam conteúdos que possam ser codificados e ensinados através de “comunicação direta”. Por isso aulas de ética transmitidas em exposições têm pouco ou nenhum proveito, se não acabarem tendo efeito negativo. Se se quer FORMAR e não apenas encher receptáculos com informações, há que se apelar para outra forma de comunicação.

    Aqui entra uma idéia de K.: se toda especulação “imparcial” não passa de uma espécie desumana de curiosidade, então, para se trasmitir valores é necessário aquele tipo de “parcialidade” que se encontra na prática da vida. Valores são valores somente se trazem um “resíduo”, uma “mensagem”, uma “recordação”, de uma experiência pessoal, seja de dor, desejo, prazer, aversão, mas experiência pessoal que não é fruto do “ouvir falar”, não será um valor se ficar apenas no “ouviu falar”.

    Como se dá essa “comunicação indireta” na obra de K.? Primeiro através do exemplo, a sua própria vida é o maior testemunho da sua obra, e ele não sofreu pouco qdo foi alvo da ironia caluniosa de um dos grandes jornais locais na época, as cartas em que se defendeu atestam o fato de que sua “luta” era apaixonada. Depois, ele escolheu escrever por heterônimos. Criava polêmicas escrevendo e defendendo um ponto de vista com um heterônimo, quando outro heterônimo seu defendia justamente o contrário. Para K., o existente tem sempre que escolher entre dois contrários, o existente será um dialético da existência, apaixonado por pensamentos (está salva, portanto, a reflexão), mas pensamentos inflamados (eis a diferença), não pensamentos objetivos, mas pensamentos apaixonados. Na dialética kierkegardiana as sínteses não acontecem como na hegeliana, na vida não é possível o “E” do sistema, somente o “OU”, e não há síntese mas salto, paradoxo, OU se casa ou não se casa, mas a escolha é uma só e vai marcar toda a vida. K. usava de muitas metáforas, uma delas o casamento, por isso alguns ainda fazem leituras românticas de alguns textos em que ele estava criticando Hegel

    Depois dessa passagem resumida por K., pela qual imagino que ainda terei que me desculpar – K. tem passagens bastante irônicas sobre aqueles que tentariam resumir e ensinar conteúdos da sua obra, demostração do quão pouco entenderam (tentativa de transmitir msg indireta diretamente?!) – vamos, finalmente, a Sartre.

    Depois do que foi exposto, será apenas coincidência ou questão de estilo que Sartre tenha escrito novelas? Pensando em paidéia e pensando em comunicação indireta… vc falava de como a filosofia existencialista de Sartre poderia contruibuir, falava de educação, pensei em método pedagógico, aliás, fora com o método, método é sistema, sistema deixa de fora a vida. Que resultados poderíamos esperar da proposta de se introduzir a leitura de textos de Sartre (porque não também de Kierkegaard ou de outros?) em sala de aula?


    Observação: sugiro evitar textos de Nietzsche porque são de muito difícil compreensão, geralmente os leitores entendem muito mal a mensagem e ele mesmo avisou que não escrevia para as pessoas de hoje, contudo, uma leva de incautos verdes se acham bastante maduros – Descartes já dizia que todos julgam ter bastante bom senso -, ou não entenderão nada ou acabarão podres. Muitos param no conteúdo direto, e o indireto é frequentemente ambíguo. Resumindo, um remédio mal aplicado pode resultar num veneno.  

    N. é incerto para quem não tem ainda muito lastro. Afinal, ele vai falar da oposição entre humano e humanitário, vai falar até contra a bondade, mas quem presta atenção se ele parte de um “mundo invertido” em que a hierarquia encontra-se defigurada e os piores dominam o cenário e não se detém perante nada para tornar real a sua vontade de poder? Quem se lembra depois que a “boa vontade de poder” do super homem tem por virtude principal a magnanimidade? Enfim, o perigo maior da leitura de N. é focar a atenção no apelo mais fácil, no profeta irritado, mas esse sem querer é quem dá a linguagem para o assassino, o mal caráter, o amoral. Nada disso é Nietzsche! Há uma hora certa para tudo.

    Bem… K. tb é uma leitura difícil, as vezes parece que ele dá a linguagem para o fanático. Parece, então, que não há filosofia sem riscos. Um ressalva, todavia, deve ser feita: ao contrário de N., que pode dar a palavra ao assassino, K. não pode dar a palavra ao fanático. K. chama a atenção para o fato de que aquele que age pela fé em Deus não encontra palavras para se justificar perante os homens, ele não terá voz, só lhe resta o silêncio. A tentativa de se explicar será mostra de que não agia pela fé em Deus mas por desejo pessoal camuflado em vontade divina. Vale a leitura, “Temor e tremor”.

    Abraços.  

    (Para quem estava sem tempo…)

    #80151
    mimi
    Membro

    Olá Pilgrim!
    É muito bom conquistar a confiança de alguém e merecer resposta. Fiquei
    contentíssima com sua atenção ao meu tema.
    Confesso que ainda estou digerindo tudo que vc escreveu a respeito Kierkegaard, pois
    não possuo um nível de conhecimento elevado que me seja fácil a compreensão. Porém,
    sei que é de grande relevância os pontos que vc levantou, visto que,segundo
    Kierkegaard, o indivíduo atravessa três estágios ao ir em busca de sua total
    realização:estágio estético, (que estando presentes as necessidades instantâneas e a
    impossibilidade de realizá-las, acabam por trazer devido a isso a sensação de
    incompletude. Neste estágio é fundamental considerar o desejo). O estágio ético
    (baseia-se em um ideal comunitário em torno de formas definidas, onde o indivíduo
    procura um lugar dentro da vida social). Kierkegaard aponta a aflição extrema do
    homem ao deparar-se com o vazio que não é preenchido nem pelos prazeres estéticos,
    nem pelas obrigações éticas. Há, por último, o estágio religioso, onde o indivíduo
    consegue se colocar diante do Absoluto, de Deus. Neste estágio é possível uma
    reflexão frente à
    existência, pois o homem revê os valores encontrados nos estágios anteriores,
    redirecionado-os à algo de maior importância que é este encontro com Deus. Valoriza
    ainda a possibilidade de escolha que pertence ao homem, encontrando nesta o núcleo
    da existência humana, descartando a possibilidade de razões lógicas que interfiram
    nas escolhas durante o curso de sua vida. A opção, enquanto possibilidade para
    todos o homens, é o que traz este caráter de um indivíduo existencial, enquanto
    vivente de uma existência autêntica. Mas não queria discutir a existência através
    de Deus.
    Preciso me aprofundar sobre esses pontos para conseguir entender melhor. Ainda fico
    muito confusa com tudo isso e é por isso q tenho maior interesse em Sartre, no que
    diz respeito a liberdade com responsabilidade total e solitário,sofrendo a angustia
    d suas escolhas, uma vez que as mesma tem implicações no que fazem parte do seu
    “mundo”.Vou elaborar melhor o meu pensamento, e procurar me expressar de forma mais
    clara no próximo encontro. Prometo. De qualquer forma gostaria de agradecer
    imenssamente a sua atenção em se prestar a leitura dessa que vos esvreve sem saber
    escrever; ignorante com fome de ir além, de passar dos seus limites, de conhecer e,
    quem sabe, um dia saber um pouquinho. Agora uma coisa eu sei, e é fato: o pouco que
    estudei da filosofia, ou o pouco que consegui assimilar, apliquei na minha vida,
    portanto acreditei naquilo entendi, e é por isso que tenho tanto interesse na
    filosofia existencialista, por ter fé…
    UM ABRAÇO E MUITO OBRIGADA
    Mimi
    PS: Gostaria que retomasse ao ponto de Sartre… se é possivel aplicar a sua filosofia na educação.
    Tem um texto na revista Educação & socidade de Burstow, que fala sobre isso, onde o autor tenta esclarecer as críticas que são levantadas por estudiosos alegando que Sartre era muito restritivo.
    Vou encaminhar o texto para que expresse sua opinião a favor ou contra.

    #80152
    mimi
    Membro

    Vou ler o texto sugerido e depois comentarei. Só queria saber se é o texto que fala da fé de Abraão? De qualquer forma vou procurar o texto e conferir!
    Abraço

    #80153

    Sim, em “Temor e Tremor”, Kierkegaard reflete sobre o significado da fé e analisa o caso paradigmático de Abraão. É um clássico da literatura, não é uma leitura fácil, mas traz passagens de rara beleza e profundidade. A propósito, leia com atenção para não levar gato por lebre, o texto é recheado de ironia :-)

    #80154
    mimi
    Membro

    Ok Pilgrim,
    Hoje mesmo vou procurar o texto na minha universidade e lerei com muita atenção.
    Abração

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