“Respostas escravas no Oceano Índico”
Sobre o texto:
Flight to Freedom: Escape from Slavery among Bonded Africans in the Indian
Ocean world, c.1750–1962, de EDWARD A.ALPERS
Miguel Duclos
Começamos com uma breve apresentação do autor traduzida e adaptada da sua página na Universidade da Califórnia (UCLA).
A
Alpers recebeu seu PhD pela escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres, em 1966. Depois de lecionar na Universidade de Dar es Salaam naTanzânia, entrou na faculdade da UCLA, retornando para a África para pesquisar, incluindo um ano na Tanzânia e outro Universidade Nacional Somali em Mogadíscio. Sua pesquisa e seus escritos abordam especialmente a política econômica do comércio internacional da África oriental durante o século XIX, considerando a dimensão cultural neste sistema de intercâmbio e seu impacto nas relações de gênero, dentro do campo maior do Oceano Índico ocidental. Ele trabalhou como presidente da Associação Africana de Estudos em 1994 . (Adaptado de http://www.sscnet.ucla.edu/history/alpers/ Imagem do sítio acima)
Quando abordamos as formas de resistência dos povos africanos à escravidão, um dos aspectos a ser considerado não diz respeito a ressoantes revoltas armadas, mas sim à fuga (flight, em inglês, literalmente voo para a liberdade), simplesmente, que sempre existiu, com maior ou menor incidência e frequência, onde quer que tenha existido a escravidão.
O estudioso Edward Alpers neste texto propõe-se a explanar esse tópico segundo um recorte específico: a abordagem no que convencionou-se chamar “Mundo do Oceano Índico” no período de 1750 a 1962, embora tenha consultado e mencione algumas fontes em épocas anteriores, já com a ação dos povos europeus. O Mundo do Oceano Índico, compreendendo a costa leste da África, Madagascar, boa parte do Oriente Médio a costa Oeste da Índia, além do Oriente mais distante, pouco abordado por Alpers, foi alvo de um interessente efervescente e de uma atividade incessante, que envolvia as navegações européias, com a expansão marítima portuguesa, inglesa, fancesa e holandesa, especialmente, além da sua atividade anterior, atávica, no qual a participação de povos islâmicos também era intensa, e de forma alguma cessou.
Portanto, a primeira dificuldade que o autor aponta, ao abordar o tema, é de identificar os sistemas diferentes de escravidão em que os povos africanos eram capturados e absorvidos. O autor menciona quatro tipos, adotando a distinção entre sistemas “abertos” e “fechados”, sendo que neste último o cativo não encontrava chance de integração, mesmo liberto ou aforriado. Um exemplo de sistema fechado é o sistema asiático. Distinto desse, figuram ainda o sistema islâmico, em que a escravidão era parte integrante da doutrina religiosa, o sistema ligado à Cidade do Cabo, na atual África do Sul, que configurava características próprias, e os sistemas das potências marítimicas européias, que Alpers identifica com o das ilhas americanas no Caribe, porém transposto para essa outra região geográfica, servindo a produção agrícola exploratória para exportação, nas chamadas “plantations”. Alpers argumenta que essa distinção deve estar sempre em vista, e o estudo das fugas dos africanos pode ser útil para entender os sistemas como um todo.
(Mapa da Ásia e oceania c.1550 . Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Portugueses_na_%C3%81sia )
Quando pensamos a questão da fuga dos escravos logo notamos que as principais referências focam no mundo Atlântico, na ligação da costa Oeste da África e sua integração com o Novo Mundo das “colônias” americanas, especialmente. O nicho do Mundo do Oceano Índico fornece bem menos fontes para o levantamento crítico, e o debate histórico começou a ocorrer academicamente em tempos também mais recentes, conforme as indicações de Alpers.
Um outro recorte teórico diferencia a fuga em duas vertens principais, porém de separação ainda incerta. Uma é chamada petit marronage e outra grand marronage, conforme as expressões adotadas na língua francesa. A palavra francesa marron, porém, deriva do espanhol cimarron, de etimologia disputada, com o termo “quilombola” em português sendo apenas aproxcimado (oquilombo, como é aceito, é termo derivado do idioma banto).
O que diferencia a petir marronage da grand marronage é, essencialmente, o tempo em que o cativo ficava foragido dos seus “captores”. Questões como as motivações, o plano de fuga ou se foram absorvidos ou não por outras comunidades nativas e/ou livres, ou ainda, se formaram novas comunidades refugiadas (os quilombos) não podem ser encaradas como definidoras. Alpers aponta o período de até um mês para que um fugitivo não capturado logo após a fuga “(runaway)” seja enquadrado na “pequena marronage”.
Como apontamos, tais fugas, especialmente no caso das pequenas marronages, não representam uma revolta ao sistema escravista como um todo, ou pelo menos, como uma forma de tentar derrubá-lo de maneira mais definitiva. A petit marronage representava mais uma iniciativa individual ou de poucos indivíduos, sendo que a grande maioria eram homens, seja por conta da natureza do seu trabalho, das condições físicas necessárias para efetivar a fuga num meio hostil ou a ligação das mulheres com crianças de colo. Os motivos podiam variar, além do mais óbvio, o de não aceitar a condição de cativo: um período em que o “senhor de escravo” estivesse com mais raiva e intolerante do que de costume, ameaçando com castigos severos os cativos, através de seus capatazes ou capangas, por exemplo. Ou simplesmente o desejo de rever um parente próximo ou amigo em uma outra fazenda. Ou, ainda o medo de ser “exportado” para terras distantes, ou do outro lado do mar, indo fazer parte do contigente empregado em ilhas ou numa terra estranha e distante.
O sistema de plantantion europeu, quando levado a cabo nas ilhas do Arquipélago Macarenhas, que compreendia as Ilhas Maurício e Reunião, ou nas Ilhas Seychelles, a leste da grande ilha de Madagascar, oferecia aos escravos condições mais propícias para efetuar as fugas por curtos períodos, embora fossem mais limitadas geograficamente. Quando trabalhando nas lavouras, distante das sedes, o cativo podia aproveitar falhas ou hiatos nas vigilância para evadir-se, e quando isso ocorria, era comum viver de forma mais ou menos errante. Dada a dificuldade de obter alimentos, viviam conforme o termo pejorativo, “vagabundeando”, ou sub-repticiamente, como raposas, efetuando pequenos saques e muitas vezes, causando incômodos para os fazendeiros e criando dificuldades para a empresa colonial. É também nas ilhas que estes cativos empreendiam uma terceira forma de fuga, muito mais arriscada, dada a precariedade de recursos: escapar pelo mar em pequenas embarcações improvisadas, numa aventura quase sempre fatal, mas por muitos preferível à voltar para a escravidão, numa tentativa tão corajosoa quanto desesperada de voltar à terra natal, ou no mínimo, ao continente de origem.
Madagascar por muito tempo resistiu incólume às tentativas européias de impôr um governo colonial, antes do Império francês conseguir impôr seu jugo. Todavia, o Império Merina, representando as elites autócnes da ilha, de origem antiga, mas integrada com as antigas rotas existentes no Oceano Índico, participava do tráfico de escravos, tanto recebendo cativos do continente quanto exportando, além de servir como base intermediária para as plantações nas Ilhas acima mencionadas. Em Madagascar as fugas ocorriam de forma bastante intensa, sendo os povos malgaxes, por vezes, considerados mais indômitos para a escravidão. Em Madagascar criaram-se comunidades de refugiados que persistiram como culturas locais bem depois da queda do sistema escravista. Os governantes Merina, porém, não só recapturavam fugitivos quanto ainda tentavam lucrar com a revenda destes para antigos ou novos senhores.
Sobre esses aspectos nas Ilhas Reunião eu o caráter indòmito Malgaxe, Alpers traz o seguinte quadro:
“Os quilombos eram desenvolvidos em campos localizados no interior da ilha. Os campos diferenciam em tamanho, de uma dúzia ou mais de indivíduos habitando vinte canabas de madeira. Os quilombolas cultivavamnilho, mandioca, batatas-doce, alguns vegetais, colhiam mel e obtinham outros alimentos da floresta. Eles também caçavam e pescavam para se alimentar. Além de estarem escondidos, os cachorros por vezes guardavam os campos, e os homens sempre andavam armados. Quando estavam sendo perseguidos, os quilombolas por vezes escondiam-se nas cavernas. Cada campo tinha um chefe, e os diferentes chefes mantinham uma tênue rede política e observavam uma certa hirarquia entre eles. Um deles, um homem chamado Juan, é lembrado como sendo um apontado como uma espécie de feiticeiro, é lembrado como sendo um cafre moçambiqueinho, mas outros chefes quilombolas eram malgaxes. Muitos nomes de lugares no interiorda ilha remontam à esses líderes. Quando fala da efetividade das medidas severas tomadas pelas autoridades francesas contra os quilombolas das Ilhas Reunião, Jean Barassin atribui o fim da grande marronage à redução de escravos importados de Madagascar e ao aumento de escravos importados da Costa Leste da África, depoiis de 1765, sendo que os malgaxes sempre mostraram-se os mais indômitos entre os escravos. Embora muitos quilombos deixasse de existir de forma destacada depois do século XVIII, os “grand marroon” continuaram a chamar a atenção dos colonizadores francesas décadas depois e tornaram-se o foco de uma literatura mitificante nos anos que sucederam a emancipação em 1848.” (pg. 19, tradução nossa).
E mais adiante, sobre as comunidades cimarron no interior de Madagascar:
“Madagascar foi sede de diversas “repúblicas de fugitivos”, como Campbell as chama. Embora a maioria destas comunidades tenha sido fundada e liderada por homens livres que escaparam da opressão do sistema de trabalhos forçados do império Merina, chamado fanompoana, Campbell nota que os escravos fugitivos formavam sempre um elemento constitutivo em quase toda as comunidades de refugiados. No final do século XIX, a parte ocidental de Madagascar, segundo ele, tinha fugitivos tanto malgaxes quanto do continente africano na grande comunidade Betsiriry. Na parte oriental da ilha Campbell destaca a presença de escravos malgaxes como membros da comunidade de ex-escravos de Taimoro que haviam escapado das plantantions da costa leste nos anos 1830, e em outra comunidade nas florestas orientais por volta de 1889. (pg 10. tradução nossa)
Outro evento que suscitava o desejo de fuga era a chegada de recém-capturados, que, ao contrário de escravos de gerações sucessivas, não tinham inteorizado a submissão ao sistema escravista e mantinham aceso o desejo de voltar à vida anterior. Não somente estes eram fugitivos mais frequentes, como contagiavam os escravos existentes para as intenções e planos de escape.
No continente, a fuga tinha aspectos distintos da praticada nas Ilhas. Nestas, com exceção da grande massa de terra que é Madagascar, como mencionamos, não haviam povos autócnes, e os acessos e as condições geográficas eram muito mais limitados. No continente, existia a possibilidade de acolhida por parte de povos que não estavam submetidos à ingerência européia ou mesmo islâmica. É que ocorria na região da Zambézia, no atual Moçambique, sob o controle dos portugueses. A fuga ali era distinta das ilhas, primeiramente porque os cativos não eram transpostos por longas distâncias, afastando-se da terra natal, mas capturados domesticamente no interior. E regiões livres podiam oferecer acolhida para os fugitivos. Alpers menciona que expedições militares dos portugueses contra o Monte Morumbala, sempre tinham dentre a pauta de negociações para acordos de paz, cláusulas sobre a devolução de pessoas que outrora serviam como cativos. No tocando aos fugitivos nos domínios portugueses, é importante destacar que chegaram a causar problemas e ameaçar o sistema de prazos da Coroa.
E não somente aldeias nativas eram buscadas como refúgio. Muitos procuravam proteção também dos missionários, como os jesuítas, preferindo ser absorvidos por um sistema religioso distinto, evangelizante, do que voltar para a dura vida de trabalhos forçados em que era encarado como propriedade de outra pessoa.
As características da escravidão islâmica também merecem considerações a parte. O emprego como mão de obra na lavoura, por exemplo, era mais raro, embora certos sultões adotassem o mesmo modelo, plantando inclusive açúcar, na costa da África, e ligado ao comércio da civilização swahili.. O escravo era visto como um bem doméstico, com empregos diferentes. Conforme a doutrina islâmica, o escravo podia emancipar-se ao se converter ao islamismo, uma vez que o Corão proíbe a escravidão de um muçulmano por outro. Porém, muitos escravos assim libertos permaneciam ligados à casa dos seus senhores, sendo difícil conquistar uma independência mais completa. No Oriente Médio, mais do que nas regiões islâmicas da África, a fuga era quase inexistente, existindo poucos dados sobre elas. O mesmo ocorre na Índia, embora Alpers mencione algumas fontes, mas que estavam especialmente centradas nas possessões portuguesas na costa da Índia, onde a abolição foi finalmente implantada em 1854.
Alpers cita Frederick Bahr sobre Sohar, cidade na costa norte de Omã:
“alguns ex-escravos escolhem manter sua associação com os antigos senhores através de vários meios simbólicos, especialmente no uso de alguns cumprimentos submissos ou servindo como açougueiros para a casa dos antigos senhores, ou exercendo um papel especial nos ritos de passagem da sociedade dominante.” (pg. 58, tradução nossa)
Em relação ao período de tempo do estudo, é necessário destacar que as “marronages” sofreram um acréscimo considerável no século XIX, e avançaram no XX, que é abordado porque a escravidão institucional só foi abolida no Oriente Médio neste século, em Omã, por exemplo, só em 1970. Porém, a escravidão ou condições de trabalho análogas à escravidão persistiram – e persistem, mesmo depois do triunfo do abolicionismo, constituindo um motivo de preocupação permanente e foro de debates para políticas preventivas e indenizatórias.
A conclusão de Alpers é importante para termos uma visão abrangente dos seus objetivos e se foram ou não alcançados pela sua exposição. Vejamos
“Agora deve estar demonstrado que, onde quer que os africanos tenham sido escraviados no Mundo do Oceano Índico, a fugia é um aspecto indissociável da sua história. Como vimos, os cativos recém-chegados, especialmente os malgaxes, eram propensos a fugir. Mesmo que nem todos os escravos intentassem ser fugitivos, onde quer que as circustâncias e oportunidades tenham aparecido de forma favorável, muitos aproveitam a chance. Seja classificado como petit ou grand, a fuga ou a ameaça de fuga tiveram um aspecto significativo na capacidade de sociedades escravistas de operar com efetividade máxima, e, onde quer que nós tenhamos registros, como nas Mascarenhas, no Cabo, na África oriental, é igualmente claro que a marronage criou uma atmosfera de séria apreensão entre os senhores de escravo. Finalmente, quando os escravos não tinham vontade ou oportunidade de escapar de sua condição, como na Árabia ou no sul da Ásia, nós observamos que muitos deles expressavam seu profundo desejo de liberdade logo que a emancipação tornava a fuga possível. Mesmo onde a fuga tenha sido uma característica comum durante a escravidão, os exemplos de Maurício e de Madagascar acerca da emancipação revelam como é precária a aborção dos escravos libertos no mundo que seus antigos donos criaram.” (pg. 13, tradução nossa).
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