Markheim – Robert Louis Stevenson – conto de crime

Markheim

Robert Louis Stevenson

Robert Louis Stevenson nasceu em Edinburgo, na Escócia, no ano de 1850 e, dedicando-se às letras, foi passar alguns anos na França. Desde cedo sentiu-se voltado para as descrições das paisagens e para os relatos me rais dos camponeses de sua terra natal.

Homem de saúde delicada, viu-se obrigado a fixar-se numa das ilhas Samoa, em 1891. Apesar de ter anteriormente publicado alguns volumes, a sua vida literária se inicia realmente com a "Ilha do Tesouro", narrativa dos velhos tempos de piratas, primeiramente publicado em jornal e popularizado imediatamente.

Trouxe Stevenson, para a literatura inglesa, importante contribuição em histórias em que predomina o mis’ tério. Mas, já no "Estranho caso do Dr. Jekyll e Mr. Hide" abandonou a maneira usual para escrever uma alegoria sobre o bem e o mal, coexistentes na criatura humana.

A diversidade do seu talento permitiu-lhe, entretanto, abordar os mais diversos gêneros, sendo, além de notável novelista, um grande autor de livros de viagens, nos quais verteu a experiência de suas inúmeras excursões pelo mundo. Em tudo quanto escreveu revelou-se sempre um artista. Era mesmo tão escrupuloso nesse particular, que os críticos estranham como pudesse ter obtido tão largo êxito.

As suas obras mais conhecidas são: "A Ilha do Tesouro", "O estranho caso do Dr. Jekyll e Mister Hide", * ?*">itc das ilhas", "A flecha negra", etc.

Falecido em 1894. deixou algumas obras inacabadas.


árvore de natal
IM — disse o antiquário — nós não temos sempre a mesma sorte; de resto, os meus lucros são de várias espécies. Alguns fregueses são ignorantes e eu ganho com eles o que entendo no meu alto saber. Alguns são desonestos — acrescentou, erguendo a vela, que tinha na mão, de modo a iluminar a cara do visitante. — E, nesse caso, tenho de ganhar pela minha virtude.

Markheim tinha apenas deixado a claridade da rua e seus olhos ainda não se haviam familiarizado com a meia obscuridade da loja. Ouvindo as pala vras do negociante e antes que a luz lhe ferisse a face, esquivou-se, procurando olhar para o outro lado. O negociante riu maliciosamente e disse: — O senhor vem à minha casa no dia de Natal, quando sabe que estou só, já tendo fechado as portas e preferindo recusar negócios. Terá pois de pagar por isso. Terá de pagar minha perda de tempo, que deveria empregar na verificação dos meus livros. Terá de pagar, além disso, por umas maneiras que lhe estou a notar hoje, muito fortemente. Sou a essência da discrição. Não costumo fazer perguntas estúpidas. Mas, quando o freguês não pode encarar-me, tem de pagar por isso.

E riu-se ainda o logista. Em seguida, retomando a sua voz comercial, na qual havia ainda uma ponta de ironia, continuou:

— Há de poder dar-me, decerto, como de costume, uma informação clara de como o objeto chegou às suas mãos. Trata-se ainda da coleção do seu tio?

O antiquário era um homem de pequena estatura e pálido. Ergueu-se, na ponta dos pés. Olhou para Markheim, por cima do aro dos óculos e abanou levemente a cabeça, com ar de absoluta descrença. O freguês retribuiu-lhe o olhar com outro de infinita piedade e um sentimento de repulsa.

— Desta vez — disse êle — o senhor está enganado. Não vim vender, mas sim comprar. Não tem aí nenhuma "curiosidade" que eu pudesse adquirir? O gabinete de meu tio já está despido até o teto e mesmo que assim não fosse, estaria êle disposto a enriquecê-lo, pois fêz bons negócios na Bolsa. Mas o objeto que procuro é coisa muito simples. . . Ando em busca de um presente de* Natal para uma senhora — continuou êle, tornando-se mais prolixo ao reatar o discurso que havia preparado. — Decerto devo pedir-lhe desculpas, vindo incomodá-lo por uma coisa tão pequena. A verdade porém é que me esqueci disso ontem. Devo comparecer hoje ao jantar, para levar meus cumprimentos à pessoa em questão. E, como sabe, um casamento rico não é coisa para desprezar.

Seguiu-se uma pausa, durante a qual o antiquário parecia estar a sopesar sua incredulidade. O tique-taque de vários relógios, entre muitos objetos amontoados na loja e o rodar abafado das carruagens fora, quebravam o silêncio. . .

— Bem, senhor — disse o antiquário: — admiro-lhe a habilidade. Afinal, o senhor é um freguês antigo. E se, como diz, tem a probabilidade de fazer um bom casamento, longe de mim a idéia de lhe opor um obstáculo. Aqui está, pois um belo objeto para uma dama: um espelho de cabo, obra do século XV, garantida. Foi também de uma bela coleção. Guardo o nome do colecionador, no interesse do meu cliente que é exatamente como o senhor, sobrinho e único herdeiro de um notável colecionador.

Enquanto assim falava, com o seu tom de voz seco e mordaz, o lojista tinha tirado de uma prateleira o objeto em questão. Olhando-o, Markheim sentiu um abalo nervoso, que o fêz vibrar da cabeça aos pés e lhe transpare-

ceu na face, de algum modo convulsionada por um tumulto de paixões. Mas aquilo foi rápido. Como veio, assim passou, ficando-lhe apenas um certo tremor na mão, com que agora recebia um espelho.

— Um espelho! — disse êle, com voz rouca; e, depois de uma pausa, repetiu mais claramente: — Um espelho! Para presente de Natal? Decerto que não serve.

— E por que não? •— volveu o lojista — por que não serve um espelho?

Markheim olhava-o, com uma expressão indefinível.

— O senhor pergunta-me por que não? Pois bem, olhe isso! — disse, pondo o espelho diante da cara do antiquário — gosta de se ver? Não! Nem eu. Nem ninguém.

O homenzinho deu um salto para trás, quando Markheim lhe pôs o espelho na cara. Mas, logo percebendo que não houvera nada de mal no seu gesto, disse, rindo com malícia:

— Sua futura esposa, senhor, deve ser altamente bela!

— Ora, deixe lá! — volveu o freguês — peço-lhe um objeto para presente de Natal e o senhor me vem com isto, esse maldito recordador dos anos, dos pecados e das loucuras; esse despertador de consciências! Que pretende com isso? Teve alguma idéia oculta? Fale, vamos! Será talvez mesmo melhor para o senhor. Quero supor que seja um homem discretamente caridoso. Não?

O lojista olhou com mais atenção para o freguês. Era singular! Markheim não parecia estar gracejando. Ao contrário, havia em seu rosto como que um raio de esperança, mas nenhuma alegria.

— Onde quer chegar? — perguntou-lhe.

— Nada de caridoso, não é? — replicou Markheim, com ar sombrio — nada de piedade. Nada de escrúpulo. Desamoroso. Insensível. A mão sempre pronta a agarrar o dinheiro. Um cofre para guardá-lo. Não é isso. tudo, senhor? Santo Deus! O homem não é senão isso.

— Já sei o que é — disse o lojista, com alguma penetração. Depois se pôs a rir de novo. — Vejo que se trata de um casamento de amor e que esteve a beber à saúde de sua dama.

— Eu não — protestou o freguês — só se é o senhor que está enamorado. Conte-me lá, então, alguma coisa disso.

— Eu? — exclamou o lojista — eu enamorado! Nunca tive tempo, nem muito menos hoje, para essas loucuras. Afinal, o senhor vai querer o espelho?

— Para que essa pressa? — perguntou Markheim. — Acho muito agradável estar aqui a conversar. A vida é tão curta e tão incerta, que não é por uma questão de pressa que eu vou deixar perder um momento de prazer, muito menos um momento tão interessante como este. Pelo contrário, devemos nos agarrar com força ao mais fútil pretexto de prazer como se agarra um homem à beira de um precipício. Cada segundo é um precipício; pense bem nisso… Um precipício de uma milha de altura… Bastante alto para, se cairmos, perdermos tudo o que em nós existe de humano. E’ melhor, pois, conversarmos prazenteiramente. Palestremos, um com o outro, e sem máscaras. Troquemos nossas confidências. Quem sabe se não viremos a ser amigos?

— Tenho apenas uma palavra a dizer-lhe — replicou o antiquário — ou o senhor compra ou retira-se da minha loja.

— Tem razão, tem razão, — disse Markheim — nada de brincadeiras. Vamos ao negócio. Mostre-me mais alguma coisa.

O lojista foi repor o espelho na prateleira onde estivera. No movimento que fêz para isso, seus cabelos finos e louros lhe caíram sobre a testa e sobre os olhos. Markheim aproximou-se dele com a mão no bolso do casaco; inclinou-se, tornou a se erguer e respirou a plenos pulmões. Várias emoções se denunciavam na sua face: de fascinação, de terror, de decisão, de repugnância. Um riso selvagem contraiu-lhe o lábio superior, deixando aparecer–lhe os dentes. . .

O lojista tinha-se curvado para apanhar o outro objeto, ao mesmo tempo que começava a dizer:

— Isso talvez lhe possa agradar. . .

E ia erguer-se quando Markheim, num gesto brusco, atacou-o pelas costas. A lâmina de um punhal brilhou um momento e sumiu-se nas costas do velho. Este deba-

teu-se como uma galinha, bateu com a testa na prateleira e caiu ao chão.

Por umas vinte pequenas bocas falava o tempo naquela loja: umas graves e lentas, como convinha à sua muita idade; outras, loquazes e rápidas. Todas marcavam os segundos num coro de tique-taques entrelaçados.

Passaram-se alguns momentos durante os quais Markheim esteve como que fora de si, sem dar conta do que se passava à volta. . .

Depois um ruído de passos de um jovem veio quebrar o coro de tique-taques que reinava na loja e arrancar Markheim ao alheamento em que se achava. Olhou em torno de si, com terror. A vela estava sobre o contador, e sua chama esguia, alta, tremulava solene, iluminando com a sua luz amarela as figuras de bronze, a face dos retratos a óleo, os contornos das porcelanas da China, os mil e vários objetos do comércio de antiguidades, que tremiam como as imagens refletidas na água.

Uma porta para o interior da casa estava levemente entreaberta e uma réstia de luz passava por aquela abertura, deixando ver os primeiros degraus de uma escada.

Os olhos de Markheim volveram-se para o corpo de sua vítima, encolhido e achatado, e que parecia estranhamente muito menor que em vida. O lojista, com a cabeça deslocada, nas suas roupas de avarento, parecia um montão de pó. Markheim assustou-se ao vê-lo, mas logo se refez… Não era nada!

Contudo, aquelas roupas velhas, aquela poça de sangue, começaram a ter vozes eloqüentes. "Aquilo" devia ficar ali sem que ninguém pudesse animar-lhe os membros desarticulados, nem provocar o milagre do movimento. E ali permaneceria até que fosse descoberto. Descoberto! E depois? Aquela carne morta ergueria um grito que repercutiria por toda parte, em ecos de perseguição. <— Sim, mesmo morto, — pensou — êle continuaria a ser seu inimigo! . . .

"Foi no tempo em que os cérebros fermentaram" — pensou, e esta palavra "tempo" feriu-lhe o espírito. O tempo, agora que o ato estava consumado…; o tempo, que deixara de existir para a vítima, tinha para o assassino uma importância capital. Aquela idéia agitava-se ainda dentro dele quando todos os relógios que havia na

loja começaram a bater. Primeiro um, logo em seguida outro, depois outro. Uns de som profundo como o de um sino de catedral, outros de som. cantante, como as notas de um prelúdio de valsa; e todos bateram três horas da tarde.

A súbita irrupção de tantos sons, naquele ambiente mudo, fêz com que Markheim vacilasse. Começou a andar de um lado para outro, com a vela na mão, assediado pelas sombras movediças e tremendo com o imprevisto dos reflexos, até o fundo da alma. As reflexões assaltavam–Ihe o espírito, ao acaso. Viu, em muitos espelhos, sua face refletida repetidamente, como se estivesse sitiado por um exército de espiões. Seus próprios olhares se entre-cruzaram, e o surpreenderam. O ruído dos seus próprios passos, ainda que leves, abalavam a tranqüilidade do ambiente, e afligiam-no. E, se bem que estivesse a encher os bolsos de algo de valor, acusava-se mentalmente, com teimosia, das mil faltas que julgava, agora ter cometido. Devia ter escolhido uma hora mais tranqüila, ter preparado um alibi, não ter usado punhal, ter sido mais cauteloso. Devia apenas ter amarrado e amordaçado o lojista, e não matado. Devia ter sido mais audacioso e matado a criada também. Enfim, ter feito tudo de outro modo. Pungentes arrependimentos! Inúteis esforços da mente, para alterar o que agora era inalterável, para projetar o que já estava feito, o que constituía um irremediável passado. Terrores cruéis começaram a fervilhar no seu cérebro, como um bando de ratos numa água-furtada. Imaginava a mão de um policial pousando pesadamente sobre o seu ombro. Seguiram-se as imagens de um grosseiro carro celular, rodando ao galope, a prisão, o julgamento, a forca, enfim, um ataúde tosco. . .

O terror às pessoas que passavam na rua invadia-lhe o espírito como um exército sitiante. Era impossível — pensava — que o ruído da luta não lhes tivesse chegado aos ouvidos e despertado a sua curiosidade; e então, em todas as casas vizinhas as pressentia sentadas, imóveis, de ouvidos alertas. . . Gente solitária, condenada naquele dia de Natal, a refugiar-se nas suas lembranças e bruscamente perturbada naquela hora sentimental; felizes reuniões de família, emudecidas repentinamente em torno da mesa; a mãe, ainda com o dedo no ar, e todos, sim, todos nos

seus lares, de ouvidos atentos, tecendo a corda com que seria enforcado. Às vezes parecia que não era capaz de se mover com a necessária ligeireza; o tilintar das grandes taças de cristal de Boêmia ressoava-lhe aos ouvidos como um sino e, extremamente alarmado pelos tique-taques, esteve tentado a parar os relógios. Mas logo a seguir, numa brusca transição dos seus temores, o próprio silêncio do lugar se lhe afigurou fecundo em perigos; este insólito silêncio devia agarrar-se ao transeunte e deixá-lo gelado. Então, punha-se a caminhar com um passo mais decidid* e afanava-se, ruidosamente, por entre o barulho da loja, para imitar as idas e vindas de uma pessoa vivamente ocupada com os afazeres da casa.

Porém, via-se de tal maneira assoberbado pelos temores diversos, que, enquanto uma parte do seu cérebro se conservava ainda viva e lúcida, a outra roçava pelos confins da loucura. Uma alucinação, entre outras, se apoderou fortemente do seu espírito. O vizinho escutando, de rosto pálido, por trás da sua janela; o transeunte, que parava na rua, assaltado por uma horrível suspeita! Esses, no pior dos casos, não podiam fazer senão conjeturas, nada podiam saber; através das paredes de tijolo e das janelas fechadas, passariam, quando muito, os ruídos. Mas, a1 dentro de casa, estaria só? Sabia que estava só: tinha vigiado a criada que saíra para encontrar-se com o noivo, modestamente endomingada, com licença para estar fora todo o dia, como se depreendia dos seus enfeites e dos seus sorrisos. Sim, estava só, evidentemente. E não obstante, por cima dele, na grande casa vazia, soava o ruído de um passo ligeiro. . . Tinha a consciência nítida, inexplicavelmente nítida, da presença de alguém. Sim, a sua imaginação seguia esse alguém através de todas as dependências e cantos da casa. Tão depressa o seu rosto era como que uma coisa, que tinha, no entanto, olhos para ver, como era uma sombra de si mesmo, ou ainda a imagem do comerciante morto, ressuscitado pela astúcia e pelo ódio.

Algumas vezes, fazendo um esforço violento, lançava uma olhadela através da porta entreaberta. A sala era grande; o postigo do sótão, pequeno e sujo; o dia estava enevoado, e a luz, que se filtrava até o rés-do-chão, era extremamente débil e espalhava-se vagamente sobre o um-

bral da loja. E, apesar disso, no meio daquela faixa de luz incerta, não se via balouçar uma sombra extravagante!

Subitamente, da parte de fora, um gentil-homem, muito jovial, começou a bater com a bengala, na porta da. loja, acompanhando as pancadas com graçolas às quais se misturava continuadamente o nome do lojista. . .

Markheim sentiu um arrepio e olhou para o morto. Mas, não! Estava quieto. Estava bem longe de ouvir aquelas, pancadas e aquelas pilhérias. Mergulhara para sempre num mar de silêncio e o nome, que outrora teria ouvido mesmo por cima do rugido de uma tempestade, havia-se convertido num som vazio de sentido.

O aiegre gentil-homem desistiu enfim de bater, e foi-se.

O incidente feriu fortemente o espírito de Markheim.

Devia apressar-se, fugir dali, abandonar aquela vizinhança acusadora, indo diluir-se no mar da multidão londrina e no fim do dia alcançar a cama e apresentar sua inocência. Um visitante tinha batido à porta. A qualquer momento poderia vir outro, e ser mais obstinado. Depois de tanto trabalho feito, não colher o fruto seria um formidável fracasso. Era o dinheiro que agora o preocupava; e o meio era descobrir as chaves. . .

Olhou para trás, para a porta interior, entreaberta. O mesmo reflexo de luz se estendia pela abertura. Dirigiu-se, sem nenhuma repugnância, para o corpo da sua vítima. Tomou o cadáver pelos ombros e virou-o de frente. Achou-o estranhamente leve. A face estava privada de toda expressão, mas de uma palidez de cera. Uma têmpora estava horrivelmente manchada de sangue. Foi para Markheim a única circunstância desagradável. Isso fê-lo volver atrás, por um momento, a lembrar-se de um dia de festa, numa praia de pescadores, — dia cinzento, vento agreste, a multidão na rua, a guizalhada dos carros, e rufos dos tambores, a voz rouca de um cantor ambulante naquele encontro de vendedores, se achara, de repente, diante de uma barraca, onde se exibiam, com bárbaras tintas, os quadros representando Browning e o seu aprendiz, os Manings e o seu hóspede assassinado. Weare no abraço mortal de Thurtell e mais uns vinte crimes célebres. A visão era tão clara que o iludia. Era outra vez aquele

menino, com a mesma sensação de revolta, diante daqueles quadros abjetos; o rufar dos tambores ensurdecia-o ainda. Vinha-lhe à memória um compasso da música desse dia e foi então que êle experimentou, pela primeira vez, um desfalecimento, uma súbita fraqueza das pernas, que teve ao mesmo instante de vencer. Julgou mais prudente encarar, que fugir à situação e por isso mesmo olhou para a face do morto e começou a considerar a natureza e a enormidade do seu crime. Aquela face, havia pouco, ainda denunciava as alterações das idéias, as mudanças de sentimento; aquela boca falava; aquele corpo governava energias. Agora, por obra sua, aquela fração da vida tinha cessado de vibrar, como um relógio que pára, pela intercessão do dedo de um relojeiro. Assim raciocinava êle em vão. Não podia elevar-se acima de sua consciência, cheia de remorsos. O mesmo coração, que se havia sensibilizado diante de gravuras de cenas grosseiras de crime, mantinha-se impassível diante da realidade. Sentia apenas um raio de piedade por aquele que havia sido favorecido por tantos recursos, capazes de tornar o mundo um jardim encantado, e que, contudo, nunca houvera vivido e agora jazia ali morto! Mas de arrependimento, nada, nem um tremor!

Enfim, libertando-se dessas considerações, Markheim achou as chaves. Avançou para a porta entreaberta. . .

Fora, tinha começado a chover fortemente. O rumor da chuva, caindo no telhado, quebrava completamente o silêncio. Como numa caverna, onde goteja água, o ruído, que esta fazia, ressoava dentro da casa, vindo ferir os ouvidos do assassino, meio apavorado, de par com o tique–taque dos relógios.

Quando Markheim se aproximava da porta, pareceu–lhe ouvir, em resposta ao seu próprio andar cauteloso, os passos de outros pés que subiam a escada. A réstia de luz da vela continuava a iluminar, frouxamente, os primeiros degraus. Um forte impulso de decisão, Markheim impeliu a porta, que se abriu de todo. . . No aposento reinava uma meia claridade, produzida pela luz do dia, penetrando por uma clarabóia. Sempre cauteloso, Markheim entrou. . .

Não estava ali ninguém. Num recanto via-se uma armadura, completa, de pé, tendo uma alabarda na mão. Pelas paredes estavam pendurados vários quadros, emoldurados em pau preto entalhado. O barulho, produzido pela chave, fazia-se agora, mais alto dentro da casa; e aos ouvidos de Markheim se distinguiam, estranhamente, por vários sons. Eram passadas e suspiros. O tropel de regimentos, marchando a distância. Tinir de moedas. Ranger de portas, furtivamente entreabertas. A sensação de que não se achava só cresceu dentro de si, até à ameaça da loucura. De todos os lados, sentia-se cercado e perseguido por misteriosa presença. Ouvia passos no andar superior. Da loja, pareceu-lhe vir um rumor de homem a mexer com as pernas como se tentasse pôr-se de pé. E, quando começou a subir os degraus da escada, dir-se-ia que pés fugiam, rapidamente, diante de si, enquanto outros o seguiam. "Se ao menos eu fosse surdo — pensou — quão mais tranquilamente estaria na posse do meu espírito!" Mas, refletindo melhor, sentia-se feliz por este estado de inquietação que o mantinha alerta, como uma verdadeira sentinela de sua vida. Sua cabeça girava continuadamente sobre o pescoço. Seus olhos parecendo saltarem das órbitas, exploravam o ambiente, de um lado e outro e de cada lado, eram recompensados pela vista de alguma coisa, percebendo-lhe a causa de uma indizível e estranha aparição. Os vinte e quatro degraus para o primeiro andar valeram-lhe por outras tantas agonias.

No primeiro andar as portas estavam entreabertas. Três delas pareciam três emboscadas, abalando-lhe os nervos, como bocas de canhão. Teve a sensação de que não poderia defender-se, furtar-se suficientemente de olhares observadores. Desejou com ardor estar em casa, encerrado entre paredes, metido debaixo dos lençóis, invisível para todos, ainda que não para Deus. E esses pensamentos trouxeram-lhe à memória as narrações relativas a outros assassinos, de quem se contava que haviam temido a vingança celeste. Com êle, pelo menos, não era assim. Receava as leis da natureza, tinha medo de que, por meio dos seus imutáveis e insensíveis processos, elas guardassem alguma prova do seu crime. Temia dez vezes mais, com um terror aviltante e supersticioso, uma falha da capacidade humana, uma obstinada

injustiça da natureza. Jogara uma partida, submetendo-a a regras, calculando as conseqüências. E que seria agora se a natureza, tal um adversário derrotado, procurasse desfazer o seu sucesso? O mesmo tinha sucedido a Napoleão quando, na invasão da Rússia, o inverno perturbou seus planos de campanha. O mesmo poderia acontecer a Markheim. As sólidas paredes poderiam tornar-se transparentes e revelar os seus feitos, como o das abelhas encerradas num cortiço de paredes de vidro. As tábuas daquele soalho poderiam ceder sob seus passos, como acontece na areia movediça, e prendê-lo. Eis aí acidentes que poderiam perdê-lo. E se aquela casa caísse e o aprisionasse com a sua vítima? E se a casa vizinha pegasse fogo e os bombeiros invadissem aquela em que estava? Essas coisas sim, êle temia. A elas poder-se-ia chamar a mão de Deus erguida contra o crime. Mas quanto a Deus. Markheim sentia-se tranqüilo. Seu ato era sem dúvida excepcional, mas Deus bem sabia quantas eram as suas escusas. Era pois junto a Deus, e não junto ao homem, que êle sentia certo de justiça.

Quando êle chegou na sala onde estava o cofre, e fechou atrás de si a porta, sentiu-se ao abrigo de alarmas. A sala estava inteiramente desarranjada; os tapetes fora do lugar; caixas e embrulhos, de toda ordem, espalhados; peças de mobiliário, diferentes; grandes espelhos de três peças, em que a pessoa se vê, ao mesmo tempo, em três posições; muitas telas, umas emolduradas, outras não, algumas voltadas para a parede; um belo parador e uma cômoda marchetados; enfim, um grande e antigo leito, coberto de tapeçarias. As janelas eram de vidraças; mas por fortuna, as bandas de madeira, de dentro, estavam fechadas, de modo que ocultavam a vista aos vizinhos. Todavia Markheim passou em revista a porta como o chefe de uma força sitiada, que se apraz em verificar as suas defesas. Mas na verdade sentia-se tranqüilo. O ruído da chuva caindo na rua, soava-lhe com naturalidade. Agora, podia ouvir, vindos do outro lado da rua, os sons de um piano, acompanhando um hino, entoado pelas vozes de muitas crianças. Como era imponente e consoladora aquela melodia!! Quão fresca eram as vozes infantis! De ouvido atento Markheim sorria, enquanto tirava as chaves

do bolso. Seu cérebro enchia-se de idéias correspondentes a imagens; eram crianças caminhando para a igreja, aos apelos de um grande órgão: crianças soltas, no campo, umas se banhando em regatos, outras correndo pelos prados, escondendo-se entre silvados. . . A uma nova cadência do hino, volveu-lhe outra vez a imagem da igreja, os domingos modorrentos de verão, a voz alta do pároco (de quem êle sorriu um pouco, ao recordar-se), os painéis biblicos, a letra dos Dez Mandamentos, traçadas no santuário…

E, como êle se sentasse, ao mesmo tempo preocupado e alheado, sentiu-se de repente sobressaltado. Um suor frio, uma baforada de calor: o sangue deu-lhe uma volta. Markheim permaneceu de pé, a tremer. Alguém vinha subindo a escada, com passos furtivos. . . Estava agora pondo a mão no trinco da porta. . . Ia abri-la. . . Markheim sentiu-se dominado de medo. Quem era que ia entrar? Não sabia. Seria o morto que caminhava? Seria a polícia? Ou seria alguma testemunha, cujo depoimento iria levá-lo à forca? E, quando uma face apareceu na abertura da porta, sondou o aposento com o olhar, saudou-o inclinando a cabeça, sorrindo como um amigo que o tivesse reconhecido; e, depois, recuou, fechando outra vez a porta, seu medo explodiu num grito rouco.

— Chamou-me? .— perguntou, gentilmente, ao mesmo tempo que entrava e fechava a porta atrás de si.

Markheim tinha os olhos muito abertos e pregados na figura do estranho visitante. Talvez uma névoa lhe empanasse a vista. Mas não. Os contornos da pessoa do recém-chegado distinguiam-se, como os da figura de bronze, iluminadas pela luz da vela, embaixo, na loja. Ora Markheim pensava já ter visto aquele indivíduo, ora achava-lhe mesmo alguma coisa de parecido consigo. No íntimo, ganhava a convicção de que aquela espécie de aparição não pertencia à terra, nem vinha do céu.

E, contudo, aquela criatura tinha um ar de banalidade, quando se pôs a olhar para Markheim, a sorrir. Sua voz era de absoluta polidez, quando lhe perguntou:

— Creio que está à procura do dinheiro, não é? Markheim não respondeu.

— Devo avisá-lo — continuou o visitante — que a criada deixou hoje o namorado mais cedo que habitualmente. Não tarda por aí. Se o senhor fôr encontrado nesta casa, não necessito dizer-lhe quais serão as conseqüências. ..

— O senhor me conhece?

O visitante riu-se.

— Desde há muito tempo o senhor é um dos meus favoritos. Desde há muito o observo e procuro ajudá-lo.

— Mas quem é o senhor? — perguntou Markheim, com voz alterada. — É o diabo?

— Quem eu possa ser .— volveu o outro — não pode afetar o serviço que me proponho a prestar-lhe.

— Presta-me serviço, o senhor? Não. Nunca! O senhor não me conhece. Graças a Deus, o senhor não me conhece!

— Conheço — retrucou o visitante, com convicção — ora se conheço!

— Conhece-me! — continuou a exclamar Markheim. — Quem é que pode conhecer a outrem? A vida do homem é uma paródia de si mesmo, todos vivem a se contrafazer. Todos os homens fazem o mesmo, todos os homens valem mais do que esse disfarce, que cresce com eles e os sufoca. Se o senhor, pudesse ver os seus rostos, verificaria que eram absolutamente diferentes como os dos heróis ou dos santos. Sou pior que a maior parte deles. A minha justificação conheço-a eu e Deus. Mas eu seria — quem sabe? — capaz de revelar. . . Se tivesse tempo. ..

— A quem? — volveu o visitante — a mim?

— Sim, ao senhor — respondeu o assassino; — por que não? Mas eu supunha que o senhor fosse inteligente. Que pudesse ler no coração. Mas o senhor quer julgar-me pelos meus atos! Ora, imagine: pelos meus atos! Medite nisto; eu nasci e vivi num mundo de gigantes, que me arrastaram pela mão desde que saí do seio de minha mãe. . . — os gigantes das circunstâncias. E o senhor a querer julgar-me pelos meus atos!. . . Não pode então ler na minha consciência? Não pode compreender que o mal me é odioso? Não vê na minha consciência, nunca desfigurada por sofismas voluntários, embora a tenha des-

cuidado com demasiada freqüência? Não vê em mim uma coisa que deve ser comum a toda a humanidade: o pecador, mau grado seu?

— Tudo isso foi dito com muito sentimento, mas a mim não interessa — foi a resposta. Essas explicações excedem à minha competência e pouco me preocupa saber que violências o arrastaram, uma vez que deixou de seguir o bom caminho. Mas o tempo voa. A criada, embora se detenha a olhar para os transeuntes e para os anúncios das paredes, sempre se vai aproximando; e lembre-se, é exatamente como se a própria força avançasse a grandes passadas para o senhor, através das ruas deste dia de Natal. Quer que o ajude, eu que sei tudo? Quer que lhe diga onde se encontra o dinheiro?

— Por que preço? — perguntou Markheim.

— Ofereço-lhe os meus serviços como um presente de Natal.

Markheim não pôde evitar um sorriso, onde havia uma certa expressão de amargo triunfo.

!— Não — disse êle. Não aceitarei nada de suas mãos. Estivesse eu a morrer de sede e o senhor chegasse aos meus lábios um copo de água, eu teria a coragem de recusar. Talvez seja superstição. . .

— Olhe que eu não me oponho ao arrependimento na hora da morte! — considerou, com gravidade, o visitante.

— Por que não acredita na sua eficácia?

— Não digo tal — replicou o outro; — mas encaro essas coisas debaixo de outro ponto de vista e, quando a vida acaba, o meu interesse desaparece. O homem viveu para me servir. Mas, quando se aproxima a hora da sua libertação, já não pode prestar-me senão um único serviço: arrepender-se, morrer com o sorriso nos lábios, e. assim, fortalecer a confiança e a esperança dos mais timoratos dos meus servidores, que sobrevivem; eu não sou um amo tão severo como o senhor possa supor. Experimente. Aceite o meu auxílio. Busque na vida os prazeres, como tem feito até aqui. Busque-os ainda mais. Com os cotovelos sobre a mesa, e, quando a noite começar a cair, e as cortinas estiverem corridas — digo-lhe para sua grande consolação — ser-lhe-á sempre fácil chegar a um acordo com a sua

consciência e fazer com Deus uma paz abjeta. Venho precisamente neste momento de ao pé de um leito onde morreu alguém no mesmo estado de espírito e o quarto estava cheio de carpidores sinceros, que escutavam as últimas palavras do moribundo; e quando olhei para aquele rosto que se havia levantado contra toda a misericórdia, vi nele o sorriso da esperança.

— Supõe, então, que eu pertenço a essa espécie de pessoas? — perguntou Markheim. — Julga, porventura, que eu sou daqueles que não tiveram em vida desejo mais nobre do que pecar, pecar, pecar, e que por fim acabam por se meter furtivamente no céu? O meu coração revolta-se contra tal idéia. É essa, pois a sua experiência da humanidade? Ou será porque me encontra com as mãos manchadas de sangue que me considera capaz de tal baixeza? É tão ímpio este assassinato que chegue a secar as próprias fontes do bem?

— O assassinato não constitui para mim uma categoria especial — replicou o outro. — Todo pecado é um crime, como toda vida é uma guerra. Considero a sua raça como marinheiros famintos sobre um balseiro, arrancando a pele com as garras da fome e alimentando-se com a vida dos outros. Sigo os crimes para além do momento em que são cometidos; em tudo isso, sempre encontro, como última conseqüência, a morte. E, aos meus olhos, das mãos da formosa rapariga que, por exemplo, a propósito de um baile, contraria sua mãe com modos lisonjeiros, não goteja menos sangue humano do que escorre das mãos de um assassino como o senhor. Já lhe disse que sigo o rastro de todas as faltas. Também sigo o traço das virtudes: não há entre elas a diferença de uma unha; tanto umas como outras são a foice da morte. O mal, para r qual vivo, não consiste na ação, mas na consciência. O homem mau me é querido; não a ação má, cujos frutos, se pudéssemos seguir bastante longe na catadupa vertiginosa das idades, talvez reconhecêssemos serem melhores do q os das mais raras virtudes. Não é pelo fato de ter o senhc assassinado um lojista que eu me propunha facilitar a sua evasão, mas tão-sòmente por ser o senhor quem é.

— Vou-lhe abrir o meu coração — disse Markheim — O crime que me viu cometer, é o meu último crime. Par-1 chegar a êle, aprendi na vida muitas coisas. Este crime é, por si. mesmo, uma lição, uma importante lição. Até aqui tenho sido arrastado, contra a vontade, a fazer o que não queria; era o escravo aguilhoado à pobreza, maltratado e vencido. Há virtudes robustas que podem resistir a tais tentações: a minha não é dessas. Tinha sede de prazeres; mas hoje, mercê deste ato, conquisto, ao mesmo tempo, uma experiência e riquezas…; simultaneamente, uma nova resolução de ser eu próprio e o poder de a realizar. Torno-me um ator, livre no mundo, começo a ver-me todo transformado: as mãos, instrumentos do bem, o coração, em paz. Alguma coisa que não pertence propriamente ao meu passado, volta a mim; alguma coisa do que sonhei em tardes dominicais, ao som do órgão; alguma coisa do que entrevia, quando derramava lágrimas sobre livros elevados, e do que falava, quando criança inocente, com minha mãe. Aqui tem a minha vida. Durante alguns anos, errei mas agora vejo uma vez mais a cidade do meu destino.

— Vai jogar esse dinheiro na Belsa? Suponho que sim i— fêz notar o visitante — e já lá perdeu alguns milhares de libras.

— Ah! —- interrompeu Markheim. — Mas desta vez tenho um plano seguro.

— Desta vez — volveu o outro imperturbável — perderá também.

— Bem, mas porei metade de lado! — exclamou Markheim.

— Também a perderá .— disse o outro.

— Bom! E isso que importa? .— disse. •— Admitamos que perdi tudo e que ficarei novamente reduzido à pobreza: deverá uma parte de mim mesmo, e logo a pior, dominar a melhor? O mal e o bem são fortes em mim, atraindo-me nos dois sentidos. Não me limito a amar só uma coisa: amo tudo. Posso conceber grandes ações, renunciar a martírios; e embora me tenha envilecido até cometer um crime, a piedade não é estranha aos meus pensamentos. Sinto compaixão pelos pobres; quem, melhor do que eu, conhece as suas provações? Tenho compaixão por eles e ajudo-os; aprecio o amor como uma alegria do melhor quilate; não há sobre a terra nada de bom ou de verdadeiro que eu não ame de todo o meu coração. Acaso só os meus vícios hão de dirigir-me a vida, e as

minhas virtudes, como um peso morto sobre a consciência, não terão nenhum efeito?

Mas o visitante, levantando o dedo, disse:

— Há trinta e seis anos que o senhor está no mundo e, através de muitas vicissitudes da sorte e de diversidades de humor, tenho acompanhado a sua queda constante. Há quinze anos o senhor esteve quase a praticar um roubo; há três quase se torna assassino. E hoje, há algum crime, alguma baixeza perante a qual recuará? Daqui a cinco anos, apanhá-lo-ei em flagrante. Assim, será o seu caminho: para o fundo, sempre para o fundo. . . Só a morte o poderia deter.

— É verdade — disse Markheim. — De certo modo, deixei-me dominar pelo mal. Mas assim sucede sempre: os próprios santos, ao simples contacto com as coisas do mundo, tornam-se menos escrupulosos e descem ao nível das pessoas que os rodeiam.

—- Vou fazer-lhe uma única pergunta e, conforme responder-me, lhe direi o seu horóscopo moral. O senhor degradou-se ao praticar certo número de coisas. E’ possível que tenha tido razão para proceder assim. De resto, o mesmo acontece a todos os homens. Concedo-lhe isto. Mas, há por acaso, qualquer pormenor, por insignificante que seja, pelo qual tenha dado provas de vigiar estreitamente a sua conduta, ou pelo contrário, sempre se deu rédea solta, sempre, em todas as coisas?

— Algum pormenor? — repetiu Markheim, com um acento de ansiedade. — Não! acrescentou com desespero. — Nenhum!

— Então — disse o estranho visitante — contente-se em ser o que é porque nunca se modificará; as palavras do seu papel sobre o palco da vida estão escritas irrevogavelmente.

Markheim ficou silencioso por muito tempo. Foi o visitante o primeiro a quebrar o silêncio.

— Sendo assim — disse — quer que lhe mostre o dinheiro?

— E o perdão? — exclamou Markheim.

— Não experimentou já? ¡— replicou o outro. — Não o vi eu, porventura, há dois ou três anos em reuniões edificantes, e neles não era a sua voz que dominava a dos outros, quando cantavam os hinos religiosos?

— É verdade — disse Markheim —, e agora vejo claramente o que me resta a fazer. De toda a minha alma, lhe agradeço estas lições; os meus olhos abriram-se por fim, e vejo-me tal qual sou.

Naquele momento ressoou através da casa o agudo som da campainha; o visitante modificou imediatamente os seus modos, como se tivesse esperado um sinal combinado.

.— A criada! — exclamou. .— Está de volta, como já o tinha prevenido, e ei-lo, de novo, um momento difícil. O senhor vai lhe dizer que o patrão está doente; mandá-la-á entrar com ar decidido, mas um pouco grave. . . Nada de sorrisos, nada de exageros, e eu garanto-lhe o êxito. Quando ela tiver entrado, o senhor terá o cuidado de fechar a porta. E, com a mesma habilidade e destreza com que já uma vez se desembaraçou do lojista, se livrará deste último perigo. A partir desse momento, terá a noite por sua conta para roubar os tesouros da casa e providenciar sobre a sua própria segurança. Sob a máscara do perigo, é, afinal, um auxílio que lhe entra pela porta adentro. — Ânimo, amigo! A sua vida está pendente de um fio! Levante-se e mãos à obra.

Markheim olhou fixamente para o seu conselheiro.

— Se estou condenado a só praticar más ações — disse uma porta de liberdade me resta ainda aberta… Posso deixar de agir. Se a minha vida é qualquer coisa de maléfico, posso renunciar a ela. Ainda que esteja, como o senhor muito bem disse, à mercê de qualquer tentação, resta-me a possibilidade de me pôr fora do alcance de todas elas. O meu amor pelo bem está condenado à esterilidade; pode ser que assim seja. Mas existe também em mim o ódio pelo mal e verá como por êle posso conquistar coragem e energia.

As feições do visitante começaram a sofrer uma maravilhosa transformação. Iluminaram-se e suavizaram-se com um resplendor de triunfo e, ao mesmo tempo, esbateram-se e apagaram-se. Mas Markheim não se deteve a observar, ou procurar a explicação daquela metamorfose. Abriu a porta e desceu lentamente, todo pensativo. O passado desenrolava-se claramente diante de si; via-o horrível e tortuoso como um sonho.. . uma refrega revolta e confusa. . . uma noite de derrota. A vida, tal como a via desfilar, nos seus vários episódios, deixou de o tentar. Mas

por outro lado, entrevia um porto seguro para a sua barca. Deteve-se no corredor e olhou em volta da loja, onde a vela continuava sempre a arder, ao lado do cadáver. Silêncio. Enquanto o fitava, os gestos e as idéias do lojista afluíram-lhe ao espírito. E, de novo, a campainha retiniu impacientemente.

Num momento estava diante da criada. Tinha na face alguma coisa como um sorriso. E disse:

— Seria bom que fosse chamar a polícia; eu matei o seu patrão.

homem e criada

Fonte: Livro de Natal – Livraria Martins Editora. Ilustraçações de R. Zamboni. Seleção e Notas de Araújo Nabuco, 1955.

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