Metafísica, errância e subjetividade: Da metafísica como “História de um erro” em Nietzsche

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Metafísica, errância e subjetividade: Da metafísica como “História de um erro” em Nietzsche

Roberto
S. Kahlmeyer-Mertens [1]

Resumo: O artigo pretende abordar a Metafísica como um
conceito histórico na obra de Nietzsche. Buscaremos apresentar a interpretação
que o filósofo faz dos conceitos indicados em nosso título apoiando-nos na obra Crepúsculo dos Ídolos. Objetivamos um panorama geral de diversos momentos do
pensamento filosófico em sua tradição.

Palavras-chave: Metafísica, subjetividade, Nietzsche, Crepúsculo
dos Ídolos.

O texto visa abordar, a partir
de Nietzsche, a Metafísica como a “História de um Erro”. Cumpre, portanto, a
tarefa de descrever a origem e os desdobramentos deste problema. Optamos por
tratar o que Nietzsche chama de História de um Erro demonstrando as etapas
desta história em um encadeamento que acreditamos poder ser traçado. Neste
ficará evidente a orientação dada por Heidegger para condução do problema.
Nosso ponto de partida é a passagem “Como o mundo verdadeiro acabou por
se tornar fábula” no livro Crepúsculo dos Ídolos (1889). O qual
interpretaremos como indicação da compreensão que Nietzsche faz desta história.
Pretendemos acompanhar a ordenação dada pelo autor, apenas destacando o
primeiro e segundo aforismos como a origem do problema, tendo os demais como
seus desdobramentos. Alhures, faremos contraponto com a passagem “Os Quatro
Grandes Erros” (NIETZSCHE, 2000) no mesmo livro. O texto deverá contar com uma
delimitação da origem do problema, demonstrando em que consiste o mesmo, e da
descrição dos seus desdobramentos. Durante esse momento, trataremos de algumas
compreensões da subjetividade ao longo do processo metafísico.

A
metafísica é a história de um erro. Essa afirmação talvez seja uma das
primeiras com que se depara aquele que começa a estudar a obra de Nietzsche. A
mesma afirmação, não raro, causa ambigüidades e incompreensões que podem
perdurar mais que esse começo. A afirmação parece sugerir o seguinte: a
metafísica é um erro; por ser um erro, nunca devia ter sido cometido. Não é bem
assim. Nietzsche quando trata da Metafísica não o faz como quem lida com um
caminho errado (caminho que em um determinado momento tomou-se equivocadamente;
daí a necessidade de retornar ao ponto que se efetuou o erro para tomar a
trilha certa). Nietzsche reconhece a Metafísica como uma “possibilidade” da
realização histórica do homem. “É verdade que poderia existir um mundo
metafísico; dificilmente podemos contestar a sua possibilidade absoluta.
Olhamos todas as coisas com a cabeça humana, e é impossível cortar essa cabeça;
mas permanece a questão, a saber, o que ainda existiria no mundo se ela fosse
mesmo cortada”
(NIETZSCHE, 2000).

Embora
deslocada da temática do seu Humano Demasiado Humano (1880) essa citação
nos garante pensar a Metafísica como uma experiência possível e, em boa medida,
inerente ao homem ocidental. Uma possibilidade deste homem que se concretizou e
que, uma vez concretizada, é impossível ser desfeita, pois é impossível
retornar ao momento de efetivação deste “erro”. A metafísica é, pois, para
Nietzsche, um destino histórico no qual o homem encontra-se imerso, destino o
qual não podemos secionar, nos desvencilhar, contestar ou saltar por sobre.

Entretanto,
Nietzsche ainda afirma: “A Metafísica é a história de um erro”. O que significa
então esta afirmação? O que seria esse erro? Estas perguntas possuem respostas
precisas: sabemos que a metafísica desenvolve-se em uma história; nesta, bem
como nos aponta Hegel, é possível enxergar um fio condutor que encadeia todos
os momentos históricos do pensamento em sua tradição. História que embora com
muitos desdobramentos é a história de um único problema, a pergunta pelo ser
dos entes.

Este
problema tem sua origem situada historicamente no pensamento grego. Podendo ser
traduzido de maneira resumida assim: inicialmente, para o grego arcaico, tudo
que é em realidade (Phýsis) recebe o nome de “ente” (on). O ente
é compreendido como o que está sendo. Ou ainda, como a presença do que está
se apresentando
; nunca dissociado de uma compreensão de ser. Com os gregos
o ente é tudo que verdadeiramente é; tem sua verdade tomada por evidente,
sendo, pois, pensado em aliança com esta verdade. Entretanto, vicissitudes
inerentes a essa própria maneira de pensar inserem a pergunta pelo ser dos
entes (ti tó on). Esta age como uma “cunha”, apartando o caráter de
evidente da verdade deste ente que se apresenta, criando o primado de um ser
ante o ente manifesto no fenômeno, criando a impressão de uma verdade
transcendente ao ente. Incorre-se assim, naquilo que Nietzsche caracteriza como
um dos “Quatro Grandes Erros” da Metafísica, precisamente “o erro oriundo da
confusão entre causa e conseqüência”.

Segundo
Nietzsche este é a própria perversão da razão. O problema é compreender o ente
como o efeito de uma causa anterior e externa a ele. Tal problema é gerado por
uma tendência dicotômica com a qual a metafísica já sempre opera. Consiste,
pois, em um olhar “viciado” para o fato (o ente) e compreende-lo como efeito de
uma causa externa (sua essência). E ainda, não ter clareza do em que consiste
esta causa e este efeito, a ponto de tomarmos um pelo outro, de modo que o
efeito acaba por ter sua “causa” epigonalmente deduzida de si mesmo. A
diferença entre essa postura e a que Nietzsche assume é o seguinte, a primeira
diz: o pensamento que comete o erro causa a metafísica; Nietzsche diz: o
pensamento que comete o erro, cometeu-o metafisicamente.

Considerando
o saldo desta pequena digressão, podemos atestar que a pergunta “o que é o
ente?”, que diz “o que é a verdade do ente?” e acaba por afirmar-se como “o que
é a verdade?” trouxe consigo o germe que desencadearia todo o processo
metafísico, por já partir de uma perspectiva metafísica. Pois o advento dessa
pergunta parte da obnubilação da verdade do ente em sua aparição, lançando-se,
enquanto pergunta mesma, num desenfreado processo de busca e determinação da
verdade do ente para além do ente. Assim, respondendo a pergunta inicial ‘que
erro seria esse?’(colocada acima por nós trabalho) é preciso que se diga em voz
alta: A história de um erro é a história da pergunta pela verdade. Isto é, a
história da perspectiva que procura se assegurar de uma suposta verdade
metafísica que o ente, a totalidade dos entes e logo a realidade possuiria.

Cremos ter
deixado claro os termos da pergunta e o que está em jogo na questão ‘o que é o
ente?’ Entretanto, talvez ainda não tenhamos as proporções das conseqüências da
colocação desta questão. Em um primeiro exame constata-se que ela gera uma
cisão. Uma cisão entre o ente e aquilo que seria sua verdade, entre o ente e
sua essência [ou como Nietzsche (2000) trata, ora utilizando a terminologia
kantiana, entre “fenômeno” e “coisa em si”; ora utilizando sua própria
terminologia, entre “mundo aparente” e “mundo verdadeiro”]. Aqui ainda se presencia
a seguinte situação: “Forma mais antiga da idéia, relativamente inteligente,
simples, convincente. Transcrição da frase eu Platão, sou a verdade
(NIETZSCHE, 2000).

Entretanto,
após esta cisão, nossa questão passa a ter um quadro bem diverso daquele descrito
anteriormente. Há agora o ente e algo desse ente que dá sustentação a sua
vigência constante no fenômeno, ou seja, há o ente e sua verdade, há o mundo
aparente e o mundo verdadeiro. Nietzsche ilustra esta situação assim: “O mundo
verdadeiro inatingível por agora, mas prometido ao sábio, ao virtuoso, ao
devoto. Progresso da idéia [como concebida no platonismo]; ela se torna mais
sutil, mais insidiosa, mais inapreensível…” (NIETZSCHE, 2000).

Fica,
assim, determinado a origem do problema metafísico, bem como o estado de coisas
inicial gerado pela cisão da verdade do fenômeno em dois mundos. Somente a
partir dessa situação descrita aqui poderemos iniciar a tarefa de demonstração
dos desdobramentos deste problema.

Ainda na
Grécia esse sustentáculo do ente (tratado aqui por essência, ou mundo
verdadeiro) recebeu o nome de “hypokeímenon”, que literalmente indica
algo que se encontra sob o ente, com o mesmo sentido a tradição medieval e a
modernidade traduziram este nome por “subjectum”. Cremos que seja isso
que Nietzsche trata como o caráter de sutil, inapreensível e insidioso da
idéia, pois ao elevar o produto do erro ao status de conceito, a cilada
gerada pela cisão entre o ente e a essência se institui; mais, se legitima, a
ponto do erro que o gerou tornar-se desagravado. Isso se comprova quando vemos
o conceito de hypokeímenon entre outros significados assumir, em algumas
escolas da Antigüidade, a compreensão de ente real sobre o qual recaem
determinações predicáveis
. Assim, parece instituir-se definitivamente a
crença de que tudo que é real possui necessariamente um sustentáculo (o que só
faz reafirmar a impressão do primado da essência sobre o ente). Essa
compreensão de “subjectum” perpassa todo o período medieval tratado como
elemento indispensável à lógica, permanecendo, pois, incontestado.

Com a
Filosofia Moderna presenciamos a retomada da tarefa de determinação do ser do
ente, reconhecendo a essência do ente como inatingível, indemonstrável,
indômita, por ela mesma. Mediante isso, a compreensão de “sub-instância” dessa
essência é apropriada de outra maneira decisiva, aquela que pensa pela primeira
vez este “subjectum” como sujeito. Descartes assim o faz, com ele a
essência daquilo que se apresenta é submetida à condição de sujeito autônomo,
que põe o ente à medida que o representa. Tal interpretação é assumida também
por Kant, que parte desse pressuposto para uma crítica dos limites de um
sujeito que se lança ao conhecimento dos entes. Essa situação recebe a seguinte
caracterização de Nietzsche, dando ênfase no momento Kant: No fundo, o
velho sol [grego], só que obscurecido pela névoa e pelo ceticismo; a idéia
tornou-se sublime, evanescida, nórdica, königsberguiana” (NIETZSCHE, 2000).

Partindo
disso, surge a nossa interpretação, que pode ser traduzida grosseiramente
assim: Ora, se a essência do ente, se a verdade do que se apresenta, é posta
pelo sujeito, a tarefa da filosofia, cabida a Hegel, é determinar o modo de ser
deste sujeito; e assim Hegel o faz, quando após todo o movimento de sua Fenomenologia
do Espírito,
o sujeito, na forma de “consciência”, descobre a si mesmo com
a verdade do mundo. Verdade que galgou no final do movimento reflexivo deste
sujeito enquanto consciência. O que Hegel fez foi transferir para o próprio
coração do sujeito a condição de fenômeno que Kant cingira à esfera do objeto.
Isso recrudesce, e ao mesmo tempo consuma, a perspectiva metafísica. Pois Hegel
acredita ter chegado a “Terra pátria da verdade”, onde a verdade está no
todo, e o todo da verdade é consciência absoluta. Nietzsche avalia este fato da
seguinte forma: “o mundo verdadeiro__ Uma idéia que já não serve mais
para nada, que não obriga mesmo mais nada__ uma idéia que se tornou inútil,
supérflua; conseqüentemente uma idéia refutada; suprimamo-la!” (NIETZSCHE, 2000)
O mundo verdadeiro não serve mais para nada, pois se atingiu o que se buscava
determinar ao longo dos séculos de processo metafísico.

Nietzsche
vê nestes últimos desdobramentos um acúmulo de equívocos, idéias pressupostas e
cristalizações. Entretanto, entre estes um equívoco aparece mais bem delineado,
é novamente um dos “Quatro Grandes Erros”, o erro de uma causalidade falsa: Este é a típica falácia de falsa causa. Consiste em tomar como causa de um
efeito algo que não tem uma real relação de geração. Entretanto, Nietzsche
introduz um refinamento nessa compreensão geral. Primeiramente, ele torna a
apontar para a ambigüidade quanto à compreensão de causa. Pois nesta
ambigüidade todos parecem estar certos do que é uma causa, quando na verdade
não estão. Depois, aponta para o que seriam os três maus preconceitos que
induzem a esse erro: a) Ninguém duvida de que um pensamento pode ser causado;
b) Ninguém (na modernidade) duvida que um sujeito causa pensamentos; c) Ninguém
duvida que neste sujeito pudéssemos buscar os motivos, do pensamento, da
verdade, da realidade. Assim, para dizer com Nietzsche: “O assim chamado motivo um outro erro. Simplesmente um fenômeno de superfície da
consciência, um acessório da ação que, ao invés de apresentar os seus
antecedentia, antes os oculta. E o que dizer do Eu! Ele se tornou uma fábula,
uma ficção, um jogo de palavras: ele parou absolutamente de pensar, de sentir e
de querer!…” (NIETZSCHE, 2000).

Essa
falácia estende-se a Descartes quando este submete a compreensão de “subjectum” a de sujeito. E ainda a Hegel, para Nietzsche, Hegel é um idealista, pois
suprime o mundo aparente tendo em vista um mundo verdadeiro que é determinado
pela falsa causa do sujeito enquanto consciência. Isto é o que Nietzsche chama
o erro de confundir o espírito enquanto causa com a realidade! E torna-lo
medida da realidade! Podendo assim chamá-lo de Deus, de Absoluto. (NIETZSCHE,
2000) Nietzsche aponta para essa postura de maneira crítica, apontando suas
conseqüências imediatas: “Suprimimos o mundo verdadeiro: que mundo nos resta? O
mundo aparente, talvez?… Mas não! Com o mundo verdadeiro suprimimos também o
aparente.” (Nietzsche, 2000) Só após o fim deste processo Nietzsche
reconhece o lugar de seu pensamento. E deste lugar pode assistir todo esse
processo, constatando que o que se chamou de mundo é resultado de um erro e
fantasias que surgiram ao longo da evolução do espírito. (NIETZSCHE, 2000) O
momento Nietzsche se faz a partir do Meio dia, do instante da sombra mais
curta; do fim do erro mais longo; do ponto culminante da humanidade. Aqui se
dá, o que segundo o próprio autor, seria o “Incipt Zaratustra”.

Bibliografia:

HEGEL, G.W.F. Phänomenologie
des Geistes.
Neu ed. Ausg. E. Moldenhauer, K.M. Michel. Werke, Bd. 3, Frankfurt: Suhrkamp, 1986.

___________. Fenomenologia
do Espírito
. Trad. Paulo Meneses. 2a. Edição. Petrópolis: Vozes,
1992.

HEIDEGGER. Martin. Nietzsche:
Metafísica e Niilismo
. Trad. Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume
Dumará, 2000.

____________. Nietzsche.
(vol I,II,III,IV) San Francisco: Harper Collins PBK, 1991.

NIETZSCHE.W.F. Sämtlhiche Werke. Obra
crítica em 15 volumes. (Org.) G.Colli e M. Montinari. Munique: DTV/ De
Gruyter, 1998.

___________. Crepúsculo
dos Ídolos.
Trad. Marco Antônio Casa Nova. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
2000.

__________. Humano
Demasiado Humano.
Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000.


[1] Doutorando em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ,
Professor na Faculdade de Formação de Professores da UERJ e da Professor da
Universidade Cândido Mendes/UCAM. Autor de Filosofia Primeira – Estudos sobre
Heidegger e outros autores. www.studium-kahlmeyer.com.br/

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