Universidade
de Brasília
Instituto
de Ciências Humanas
Departamento
de Filosofia
NIETZSCHE
E A MÚSICA:
Considerações
do filósofo sobre a música como
proposta
de afirmação da vida
Por
Célia
Evangelista de Paula
Brasília-DF
Setembro,
2006
Trabalho
de Conclusão do Curso de Especialização em Filosofia 2005/2006, Departamento
de Filosofia, Universidade de Brasília, como requisito para obtenção do
titulo de Especialista em Filosofia, sob a orientação do Professor (a)
Flávio René Kothe.
Prof. Flávio René Kothe
– orientador
Prof.
Rogério Basali –
co-orientador
Prof. Agnaldo Cuoco –
examinador convidado
Dedico
esta pesquisa aos meus pais, aos eternos amigos e a todos aqueles que
têm uma inexplicável “vontade de potência”; os que com coragem e determinação
dizem “sim” à vida.
AGRADECIMENTOS
Agradeço
aos Professores Flávio Kothe e Rogério Basali que, com suas orientações
e observações, ricas e pertinentes à pesquisa, forneceram-me condições
para desenvolver este estudo. Agradeço também a possibilidade de contato
com o pensamento Nietzschiano, possuidor de sabedoria inesgotável e profunda,
permitindo aos que o lêem atentamente, transformar e ampliar suas visões
de vida.
Quão
pouca coisa é necessária para a felicidade! O som de uma sanfona.
–
Sem música a vida seria um erro.
(Friedrich
W. Nietzsche)
RESUMO
Este estudo faz parte do
II Curso de Especialização em Filosofia da Universidade de Brasília – 2005/2006.
Tem como objetivo levantar algumas das principais considerações realizadas
por Friedrich Wilhelm Nietzsche
no tocante à música e sua importância
para a afirmação da vida. A partir dos livros O nascimento da tragédia (1872), O
Caso Wagner e Nietzsche contra Wagner (1888), a pesquisa procura
evidenciar e entender as reflexões desse filósofo quando da construção
dessas obras em seu contexto. O pensamento nietzschiano sobre a origem
da arte trágica grega e a força mítica dionisíaca, além de sua decepção
junto ao compositor Richard Wagner para o renascimento do trágico no drama
musical, foram analisados nas suas principais implicações e relevâncias
para a música, enquanto elemento significativamente artístico e afirmador
da vida.
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SUMÁRIO
1 APRESENTAÇÃO
2 VIDA
E OBRA – BREVE BIOGRAFIA
3 A
MÚSICA EM "O NASCIMENTO DA TRAGÉDIA": O ENCANTAMENTO POR WAGNER
4 A
MÚSICA EM O "O CASO WAGNER": DESENCANTAMENTO E DOENÇA
5 CONCLUSÃO
6 REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
Esta pesquisa tem por objetivo
explorar algumas das principais considerações feitas pelo filosofo Friedrich
Wilhelm Nietzsche sobre
a música e sua importância para a afirmação da vida, principalmente a partir
das obras O nascimento da tragédia (1872), O Caso Wagner e Nietzsche
contra Wagner (1888), além de outras vinculadas ao conjunto de textos
do filósofo.
Conforme afirma Nietzsche
“A música nos oferece momentos de verdadeiro sentimento” [1] pois
“Só a música colocada ao lado do mundo pode nos dar uma idéia do que deve
ser entendido por justificação do mundo como fenômeno estético” [2],
percebe que “A vida sem a música é simplesmente um erro, uma tarefa cansativa,
um exílio”. [3] Nestas
citações, percebe-se o quanto o filósofo atribui à música a importância
para o pensamento e para a vida, ocupando um lugar central na estética
de Nietzsche no que se relaciona à afirmação da existência humana.
Cabe ressaltar que a pesquisa
leva em consideração integralmente a mesma significação da expressão “música”
adotada por Nietzsche. Nesse sentido, esclarece Viviane Mosé: “(…) ao
se dirigir à música, Nietzsche não estava, necessariamente falando da arte
musical em si, mas de uma melodia original dos afetos ou uma melodia
primordial. (…), refere-se a uma língua originária, puramente sonora,
impossível de ser simbolizada, fundo de todas as coisas, o querer universal.
Esta música impossível de se manifestar, por se caracterizar pela ausência
de forma, é o dionisíaco”. [4]
Reforça Mosé que “Desta
música originária derivaria a música propriamente dita, a poesia lírica
e épica, a linguagem prosaica e a cientifica, em ordem decrescente. Nem
mesmo a arte musical seria capaz de manifestar esta linguagem tão primordial,
esta música dionisíaca, embora seja a que mais se aproxima dela”. [5]
Já Curt Paul Janz, especialista
na música de Nietzsche, em entrevista a Paulo César de Souza, explica que
“O pensamento de Nietzsche foi musical na medida em que foi fortemente
emocional, nascido da vivência do momento – não obstante toda a agudeza
do intelecto. Sua musicalidade influi também na configuração, na forma de
seus escritos, o que por outro lado determina sua relação com a música
(…)”. [6]
Ao levantar e confrontar
as diversas percepções, considerações e idéias nietzschianas a respeito
da música, torna-se quase impossível deixar de fora alguns aspectos pessoais
do universo do filósofo. Sua sensibilidade,
estilo singular, índole romântica, liberdade intelectual, intuição musical
e poética são, com efeito, estimulantes
nessa sua paixão pela música.
O trabalho está dividido
em dois capítulos – A Música
em O nascimento da tragédia: o encantamento
por Wagner e A música em O Caso Wagner: desencantamento e
doença – e se propõe a mapear parte dessa relação entre Friedrich
Wilhelm Nietzsche e a música, buscando evidenciar qual a importância que
esse filósofo dava à mesma, bem como entender o significado dessa relação
para a afirmação da vida.
2. VIDA E OBRA – BREVE
BIOGRAFIA
Filho
de Karl Ludwig, pastor luterano, Friedrich Wilhelm Nietzsche nasceu em
15 de outubro de 1844, em Röcken, localidade próxima a Leipzig (Alemanha).
Foi instruído pela mãe em rígidos princípios, principalmente religiosos
e seu nome foi dado em honra a Frederico Guilherme IV, rei da Prússia.
Em 1849, ou seja, aos cinco anos, perde o irmão e o pai, mudando-se com
a família para Naumburg. Cresce em companhia da mãe, da irmã, duas tias
e da avó materna.
Em
1858, obteve uma bolsa de estudos no Colégio Real de Pforta. Datam dessa época
suas leituras de Schiller (1759-1805), Hölderlin (1770-1843) e Byron (1788-1824),
cujas influências começam a afastá-lo do cristianismo. Durante o último
ano em Pforta, escreveu um trabalho sobre o poeta aristocrata Teógnis (séc.
VI a.C.). Partiu em seguida para Bonn, onde se dedicou aos estudos de teologia
e filosofia; desistindo logo após, passou à filologia. Destaca-se como
brilhante aluno e passa a lecionar Filologia na Universidade de Basiléia,
na Suíça, de 1868 a 1879, ano em que deixou a cátedra por motivo de doença.
Quando
a Alemanha entrou em guerra com a França, em 1870, Nietzsche serviu o exército
como enfermeiro, mas por pouco tempo, pois logo adoeceu, contraindo difteria
e disenteria. Em 1871, publica a obra O nascimento da tragédia no espírito
da música, com fortes influências do filósofo Schopenhauer e do compositor
Richard Wagner. Conhece este último em 1867, na cidade de Leipzig.
Em
1879, em razão da saúde frágil, Nietzsche passa a receber aposentadoria
da universidade. Publica em 1880 O Andarilho e sua Sombra. Um ano
depois aparece Aurora, obra com a qual se empenhou num estudo sobre
a moral. Em 1882, escreve A Gaia Ciência, depois Assim falou
Zaratustra (1884), Para Além de Bem e Mal (1886), O Caso
Wagner, Crepúsculo dos Ídolos, e Nietzsche contra Wagner (1888).
Passando
o inverno de 1882-1883, na Itália, ele redige Assim falou Zaratustra.
Nesta obra, o pensamento nietzschiano encontraria, num personagem persa,
o meio de expressão. No outono de 1883 voltou para a Alemanha e passou
a residir em Naumburg, em companhia da mãe e da irmã.
Foi
internado em Basiléia por doença degenerativa no cérebro, diagnosticada
como "paralisia progressiva". Nietzsche faleceu em Weimar, a
25 de agosto de 1900 e foi sepultado na cidade alemã, Rocken. São obras
póstumas Ecce Homo, Ditirambos Dionisíacos, O Anticristo e Vontade
de Potência. Além das obras publicadas, Nietzsche deixou milhares de
páginas com esboços e anotações, chamados de “Fragmentos Póstumos”.
Apesar
das dificuldades de vida encontradas – perdas familiares, problemas de
saúde, desastres amorosos, incompreensão de suas idéias – Nietzsche afirma
que “para atingirmos algo que valha a pena, devemos fazer um esforço extraordinário”.
Seu pensamento continua despertando interesse nos mais diversos pensadores
das mais diferentes áreas. Sua obra é de inesgotável valor.
3. A MÚSICA EM “O NASCIMENTO DA TRAGÉDIA”:
O ENCANTAMENTO POR WAGNER
Copleston,
em seu livro Nietzsche, Filósofo da Cultura, escreve: “Aquela alma
poética e idealista não podia deixar de ter sido influenciada pela atmosfera
religiosa da sua infância, pelos ofícios e música da igreja rural” [7].
O mesmo autor ainda conta que foi em Naumburg que a música começou a desempenhar
um papel importante na vida de Nietzsche. Já adulto Nietzsche veio a ser
um dos mestres da literatura alemã e continuou a sentir uma paixão profunda
pela música.
Nessa época,
o filósofo tinha Platão e Ésquilo como seus autores clássicos favoritos.
Compondo poemas e música, fundou com alguns amigos uma agremiação literária
denominada Germânia. Mas foi na universidade que Nietzsche, como
aluno, passou a tratar das relações entre a música e a tragédia grega.
Em Leipzig, escreve ele: “três coisas constituem para mim uma consolação:
o meu Schopenhauer, a música de Schumann e, ultimamente os meus passeios
solitários”. [8]
Seu
primeiro livro O nascimento da tragédia no Espírito da Música, escrito
em 1871, foi reeditado em 1886 com o título, O nascimento da tragédia,
ou Helenismo ou Pessimismo, obra com fortes influências do filósofo
Arthur Schopenhauer e do compositor Richard Wagner. Sobre o livro, Nietzsche
esclarece:
Vi
por várias vezes citada a minha obra com o subtítulo de “Renascimento da
tragédia pelo espírito da música”; olhou-se somente para a nova fórmula
da arte, para as intenções, com o escopo wagneriano, não se tendo observando
aquilo que esse livro continha de importante. “Helenismo e Pessimismo”
seria um titulo mais preciso, dado que ensina pela primeira vez como os
gregos se libertaram do pessimismo, com que meios o superaram (…). A
tragédia é uma prova precisa de que os gregos não eram pessimistas. [9]
Em
primeiro lugar, este livro representa uma homenagem a Richard Wagner, uma
interpretação de seus dramas musicais como obras de arte totais que igualam às
tragédias antigas. Traz uma dedicatória explícita ao compositor Wagner: “(…)
declaro que, por convicção profunda, considero na arte a missão mais elevada
e a atividade essencialmente metafísica da vida humana, no que acompanho
o pensamento do artista a quem dedico este trabalho, meu nobre companheiro
de armas, meu precursor neste difícil caminho”. [10] Em
Wagner, Nietzsche pensava ter encontrado um aliado para trazer a tragédia
para o palco, como uma transfiguração cultural e resgatar o valor da sabedoria
trágica dos gregos para a sua época.
A
obra traz a concepção que Nietzsche tinha da tragédia baseada numa visão
fundamentalmente nova da Grécia, ou seja, o sentimento trágico da vida é antes
a aceitação e celebração dessa, a jubilosa adesão ao horrível e ao medonho, à morte
e ao declínio. Ao resgatar o valor do homem trágico grego, Nietzsche elege
a música e seus significados para a afirmação da vida: amor, liberdade,
fatalismo e morte.
Na
juventude, Nietzsche identifica-se de imediato com a filosofia da música
do compositor Richard Wagner, quando este redige, em 1870, um escrito em
homenagem ao centenário de Beethoven. Passa a acreditar no drama musical
wagneriano enquanto possibilidade de uma reforma e revolução na cultura
a partir da criação artística. A tragédia não seria o desprezo da existência
e sim uma afirmação contrária à cultura metafísica cristã-platônica, a
qual padecia a cultura ocidental. Pensa o filósofo ser a música de Wagner
o meio ideal para esse fim. Assim, em 1872, Nietzsche escreve seu primeiro
livro O nascimento da tragédia.
O
jovem Nietzsche afirmava que a união das artes, e em particular das imagens
míticas representadas no palco, é necessária para tornar suportável a força
destrutiva da música pura que, de outro modo, provocaria a destruição do
indivíduo ou dos princípios individuais – tempo, espaço e causalidade.
Destacará dois
pontos – ou duas idéias – na sua argumentação. A primeira idéia é buscar
a origem, a composição e a finalidade da arte trágica grega. Para isso,
ele investigará a antítese entre dionisíaco e apolíneo. Na segunda idéia,
Nietzsche denuncia a morte da arte trágica perpetrada por Eurípedes, homem
teórico e racional que remete ao poeta e ao artista explicações racionais
baseadas nos preceitos socráticos.
Escreve
Nietzsche sobre sua obra: “Entre as duas importantes inovações trazidas
por este livro a primeira é a interpretação do fenômeno dionisíaco entre
os gregos e a segunda é a interpretação do socratismo, instrumento de decomposição
grega como tipo decadente, ou o raciocínio em oposição ao instinto”. [11]
Nietzsche
distingue na cultura grega dois princípios fundamentais: O apolíneo
e o dionisíaco. Nas palavras do próprio filósofo vem a explicação:
“Que
significam as oposições de idéias entre apolíneo e dionisíaco que
introduzi na estética, ambas consideradas como categorias de embriaguez?
A embriaguez apolínea produz, acima de tudo, a irritação dos olhos que
confere aos olhos a faculdade da visão. O pintor, o escultor, o poeta épico
são visionários por excelência. Em contrapartida, no estado dionisíaco,
todo o sistema emotivo está irritado e amplificado: de modo que descarrega
de um só golpe todos os seus meios de expressão, expulsando sua força de
imitação, de reprodução, de transfiguração, de metamorfose, toda espécie
de mímica e de arte de imitação". [12]
É então
exposta sua tese: a tragédia grega nasce a partir do coro dos sátiros e
desenvolve-se da luta entre as duas pulsões estéticas – a apolínea e
a dionisíaca. Sendo Apolo o deus da clareza, da harmonia e da ordem
e Dioniso, o deus da exuberância, da desordem e da música. Nietzsche conclui
que os dois princípios são, na verdade, complementares entre si e, não
sendo antagônicos, formam uma aliança, fazem uma reconciliação. Essa ligação
estabelecida entre o culto dionisíaco e a arte trágica fornecerá a hipótese
necessária à sua teoria da tragédia.
Expressando
a força existente nos mitos e o papel da música, encarnada no coro, Nietzsche
destaca quais importantes funções desempenhavam as tragédias gregas. Sua
obra faz uma análise profunda sobre a cultura grega, ressaltando a conexão
entre o sentido do trágico e a expressão musicalmente vigorosa da visão
mítica.
O
papel da tragédia seria então o de resgatar o mito, dar-lhe um conteúdo
mais profundo, uma forma mais expressiva, realizar a verdadeira união entre
música e mito. O instinto era despertado no homem e este, num estado dionisíaco,
sentia a própria vida, fundindo-se a ela. Segundo Nietzsche:
(…)
O homem dionisíaco é incapaz de não compreender uma sugestão qualquer,
não deixa escapar nenhum vestígio de emoção, possui no mais alto grau o
instinto compreensivo e advinhador, como possui no mais alto grau a arte
de se comunicar com os outros. [13]
Para
o filósofo, o que torna a arte trágica possível é a música e ele busca
a valorização da música para pensar a tragédia grega como uma arte fundamentalmente
musical ou com origem no espírito da música. O mito trágico, enquanto símbolo
sublime oriundo da música, arranca o ouvinte espectador de seu sonho de
aniquilação orgiástico, fundindo-o à natureza, diluindo sua individualidade.
Em sua analise, Nietzsche denuncia a percepção do valor íntimo do trágico,
captável através da música conjugada à força plástica do mito.
O
objetivo metafísico supremo da tragédia e da arte em geral era, portanto,
que a imagem apolínea protegesse e revelasse – tal qual um véu que mostra
e esconde – a força destrutiva do dionisíaco. Desse modo, tem-se “Dioniso
falando a língua de Apolo, mas Apolo, ao final, falando a língua de Dioniso”.
Os
conceitos de apolíneo e dionisíaco aparecem no sentido da essência e da
aparência, da representação e da vontade, de Schopenhauer. Descreve que
os deuses e heróis apolíneos são aparências artísticas que tornam a vida
desejável, encobrem o sofrimento pela criação de uma ilusão, ou seja, é o
princípio da individuação, processo de criação do indivíduo. Já o Dionisíaco é a
harmonia universal dada pela experiência de reconciliação das pessoas com
as pessoas e com a natureza. Tem um sentido místico de unidade e escapa
da individuação, se fundindo ao uno, ao ser e integrando a parte com o
todo ou a totalidade.
O
Apolíneo, enquanto princípio da individuação, determina as formas da aparência
e proporciona a medida, a divisão, a figuração, manifestando-se, sobretudo,
na pintura, na escultura e no ritmo das músicas cadenciadas. O Dionisíaco,
enquanto uno primordial, diz respeito à destruição de toda individuação,
a uma total e desmedida embriaguez, manifestando-se principalmente na melodia
e na harmonia dissonante, presentes na música cantada pelo coro dos sátiros.
A
junção dessas duas pulsões, proporcionaria ao espectador da tragédia, segundo
Nietzsche, a possibilidade de entrar em contato com a força destruidora
de Dioniso, sem que, entretanto, fosse destruído por ela, pois serviria
de salvação pelo poder da bela aparência oferecida por Apolo. Ambas as
pulsões tornam-se fundamentais ao homem, pois a imaginação figurativa,
que gera as artes da aparência (as palavras poéticas e as artes plásticas)
e a potência emocional, que dá voz e vez à música, são asseguradas no prazer
estético produzido pelo horror encenado na tragédia grega. Nesse sentido,
Nietzsche percebe que:
“A
vida no fundo das coisas, a despeito de toda a mudança dos fenômenos, é indestrutivelmente
poderosa e alegre. Esta consolação aparece com nitidez corporal como coro
de sátiros, coro de seres naturais que vivem inextinguivelmente por trás
de toda a civilização (…)”. [14]
A
aliança ou reconciliação entre os dois princípios aparece para estabelecer
o culto dionisíaco e a arte trágica. Assim, a multidão encantada de sátiros
e silenos dá origem à tragédia, permitindo a possessão causada pela música,
onde esta é a expressão imediata e universal da vontade, como essência
do mundo. Em suma, a tragédia, fundada na música, é a expressão das pulsões
artísticas apolíneas e dionisíacas, ou seja, é a união da aparência e da
essência, da representação e da vontade, da ilusão e da verdade. É a atividade
que permite o acesso às questões fundamentais da existência.
A
música, enquanto arte essencialmente dionisíaca, é o meio para se desfazer
da individualidade. Nesse caso, ela é acrescentada de componentes apolíneos
– cena e palavra – e o coro dionisíaco se descarrega em um mundo apolíneo
de imagens. O mito trágico, criado pelo coro, apresenta uma sabedoria dionisíaca
através do aniquilamento do indivíduo heróico e de sua união com o ser
primordial, o uno originário (vontade). A finalidade é “aceitar o sofrimento
com alegria” como parte integrante da vida, uma vez que o aniquilamento
do indivíduo nada afeta a essência da vida.
A
tragédia é na definição nietzschiana: “Um coro dionisíaco que incessantemente
se descarrega num mundo apolíneo de imagens” e, ainda, “O coro, em seu
primeiro estágio, na tragédia primitiva, é a imagem que a natureza dionisíaca
percebe de si mesma”. Portanto, “o coro dos sátiros é, antes de mais nada,
uma visão da multidão dionisíaca, como é, por seu turno, o mundo do palco
uma visão desse coro satírico”. [15] O
filósofo tenta arrancar a música ao texto, relançar suas potencialidades
significantes antes de toda captura pela palavra ou pela idéia.
Porém,
com o advento da razão em detrimento do instinto, surge o socratismo
de Eurípedes, usando as palavras do filósofo, o qual baseia-se no fato
que “tudo deve ser inteligível para ser belo” ou, como dizia Sócrates,
“tudo deve ser consciente para ser bom”. Eurípedes expulsa o elemento dionisíaco,
original e onipresente, da tragédia e o substitui por um teatro para a
arte, para a moral e para a compreensão que não eram dionisíacas.
Eurípedes,
contudo, era apenas uma máscara desta razão preponderante, uma vez que
“A divindade que falava através dele não era Dioniso, não era Apolo, mas
um demônio recém-nascido e chamado Sócrates – tal é a nova contradição
– o dionisíaco e o socrático – e nesta contradição faliu a obra de arte
que era a tragédia grega.” [16] Eurípedes
transforma-se no poeta do socratismo estético.
Esse
espírito racionalista de Eurípedes não é a única causa da morte da tragédia;
ele é, em última instância, manifestação de algo mais profundo – o racionalismo
socrático – resumido nas três fórmulas: “Virtude é saber”, “só se peca
por ignorância” e “o virtuoso é feliz”. Em detrimento do saber mítico,
começa a preponderar uma dialética e uma ética otimista, que pressupõe
serem os problemas essenciais da existência resolvidos pelo saber racional.
Desprezando o instinto, o socratismo condena e arruína a arte trágica.
Conforme
Nietzsche, isso desvalorizou a sabedoria instintiva ou inconsciente, a
visão mítica do mundo. Se o que se toma como critério é o grau de clareza
do saber ou a consciência teórica do artista, a arte trágica estaria desclassificada
e sua morte decretada. Consequentemente, o desaparecimento e a morte da
arte trágica levam consigo o saber instintivo, a expressividade mítica
e o sentir primordial, todos importantes à existência humana. Estava arruinada
na medida em que a metafísica racional socrática e criadora do espírito
cientifico estavam sobrepostos à metafísica do artista trágico.
Nesse
sentido, Sócrates põe fim à afirmação do homem trágico. Em sua denúncia,
afirma Nietzsche: “Aqui sobrepõe-se o pensamento filosófico à arte
para a obrigar a cingir-se ao movimento da dialética. (…) Sócrates, herói
dialético do drama platônico, lembra-nos o herói de Eurípedes, que também é forçado
a justificar os seus atos pelo recurso da razão e do argumento, e muitas
vezes assim se arrisca a perder a nossa compaixão trágica”. [17] Assim,
a dialética socrática distingue dois mundos: o essencial (verdadeiro e
inteligível) e o aparente (falso e sensível).
Como
juiz de sua própria arte, Eurípedes faz de sua poesia o eco de seu pensamento
consciente, mas ao reavaliar elementos da tragédia como a linguagem, os
caracteres, a construção gramática e o coro, exclui o componente dionisíaco
da tragédia, e com este, a música. A crítica nietzschiana vem rapidamente,
escrevendo ele:
“A
dialética otimista, munida com o açoite de seus silogismos, expulsa a música para
fora da tragédia: isto é, destrói a própria essência da tragédia, que só se
deixa interpretar como manifestação e figuração de estados dionisíacos,
como simbolização visível da música, como mundo sonhado por uma embriaguez
dionisíaca”. [18]
Para
Nietzsche, a grande tragédia grega apresenta como característica o saber
místico da unidade da vida e da morte e, nesse sentido, constitui uma “chave”
que abre o caminho essencial ao mundo. Os homens viviam seus deuses, que
mostravam a vida sob um olhar glorioso. Na tragédia grega, a platéia participava
também, era artista. Nos cultos, o deus se revela, mostrando o drama da
individualização. Conclui assim que, a filosofia dos pré-socráticos é afirmadora
da vida e da natureza, pois o pensamento está unido com esse fenômeno,
a vida.
Partindo
da descoberta do dionisíaco no cerne da civilização grega, Nietzsche redescobre
de modo inovador, a conexão entre o sentido do trágico e a expressão musicalmente
vigorosa da visão mítica. Numa de suas intuições geniais, exaltou a força
expressiva que o mito desempenha na tragédia grega. Inspirado, como Wagner,
nas teses shopenhauerianas, teve os relâmpagos de compreensão que o pensamento
domesticado da época recebeu como afrontas ao senso comum.
Empregando
o mito na tradução plástica do conflito íntimo de forças do psiquismo humano,
os grandes trágicos, ao tomar essa “matéria” como substância do trabalho,
superava as limitações sociais das inspirações de seu tempo, passando a
criar fora do tempo e para todos os tempos. A função fundamental
das tragédias é descrita por Nietzsche como o “poder que excita, purifica
e descarrega a vida inteira de um povo”. [19]
A
música, na visão nietzschiana, era a experiência da verdade dionisíaca
indissociável da aparência apolínea. O grande significado e papel da música é manter
a possibilidade de acesso à realidade da natureza. A música seria a voz
da natureza, a voz da realidade interior da vida. Fundar um Estado sobre
a música é fundar um Estado sobre a própria realidade, como teriam feito
os antigos helenos.
Além
da filosofia de Schopenhauer, foi com essa perspectiva citada que o filósofo
sentiu-se atraído e entusiasmado pelo projeto wagneriano de regeneração
da cultura alemã. Nietzsche acreditava estar a linguagem dos homens modernos
pervertida. Eles se tornaram escravos dos homens, das convenções, dos artificialismos,
do pensamento correto, das idéias claras e distintas. Com a música, dar-se-ia
um retorno à natureza, além de todos os limites e enquadramentos da linguagem.
Quanto
ao seu distanciamento de Schopenhauer, escreve Nietzsche: “A tragédia está longe
de demonstrar algo a favor dos pessimistas gregos, no sentido de Schopenhauer,
que poderia antes ser considerada como sua refutação definitiva, como seu
julgamento. A afirmação da vida, mesmo em seus problemas mais estranhos
e mais árduos; a vontade de viver, regozijando-se no sacrifício de seus
tipos mais elevados, por seu próprio caráter inesgotável – é o que chamei
de dionisíaco, é nisso que acreditei reconhecer o fio condutor para uma
psicologia do poeta trágico”, [20] pois:
(…)
só as almas mais espirituais, admitindo-se que sejam as mais corajosas, é dado
viver as tragédias mais dolorosas: mas é por isso que estimam a vida, porque
ela lhes opõe seu maior antagonismo. [21] O
filósofo pensa a música como arte dionisíaca que traduz diretamente a dor
e o prazer do querer, maximizando a vontade de vida, pois “(…) só é poeta
o homem que possui a faculdade de ver os seres espirituais que vivem e
brincam em torno dele; só é dramaturgo o homem que sente o impulso irresistível
de se transformar e de falar mediante outros corpos e outras almas”. [22]
Em
suma, sua análise, por meio de uma intuição excepcional, resgata e reconhece
a percepção do valor íntimo do trágico, sendo este captável através da
música conjugada à força plástica do mito.
Assim
permanecerá o pensamento nietzschiano até a publicação de O Caso Wagner,
em 1888, onde Nietzsche, desencantado com Wagner e sua música, faz um profundo
e impiedoso exame sobre o drama musical wagneriano e seus “males”.
4. A MÚSICA EM “O CASO WAGNER”: DESENCANTAMENTO
E DOENÇA
Nietzsche
conheceu o compositor Richard Wagner em 1868, em Tribschen. O
efeito de Wagner sobre Nietzsche foi imediato e esse passa a considerá-lo
como um bom representante de Dioniso que tanto buscava. O filósofo passa
a ver no compositor a representação de seus ideais quanto ao pensamento
schopenhauriano e o resgate ao valor do mito e da música, como forças afirmadoras
e criativas. Para Nietzsche, Wagner era o poeta, o músico, o dramaturgo
ditirâmbico que exprimia mais transparentemente o pensamento de Schopenhauer.
Por meio de sua música, a arte poderia retornar à sua origem na antiguidade
e recuperar a união entre vida e sentimento.
Em
busca de uma música verdadeira que deixasse soar em si o som total do
mundo, Nietzsche fica, a princípio, encantado com a música wagneriana.
O drama musical wagneriano poderia recuperar o impulso dionisíaco desaparecido
com o socratismo e ser a flauta do deus Dionísio, com seu poder
transformador. Porém, essa relação passará de um encantamento – com expressiva
amizade e defesa – a uma decepção, seguida de afastamento e críticas.
Foi
uma “ilusão” pensar o drama musical wagneriano como uma salvação do sofrimento
pelo desconforto enfrentado na cultura. Sobre sua primeira obra dedicada
a Wagner, Nietzsche esclarece:
“Para
ser justo com O nascimento da tragédia (1872), será preciso esquecer
certas coisas. Ele (Wagner) surtiu efeito e mesmo me fascinou pelo que
nele era defeito – por sua aplicação ao wagnerismo, como se fosse um sintoma
de começo. Esse escrito foi, por isso mesmo, na vida de Wagner, um acontecimento:
foi desde então que puseram grandes esperanças no nome de Wagner (…),
me lembram que sou eu propriamente o responsável, se uma tão alta opinião
sobre o valor cultural desse movimento prevaleceu”. [23]
Quando
escreveu a obra acima citada, Nietzsche estava envolvido com o wagnerianismo,
sua música e suas idéias. Neste aspecto a ópera wagneriana seria uma revolução.
O filósofo traria, junto com Wagner, a “sabedoria trágica” dos gregos –
seu pulsar de vida instintiva e mítica – para a sua época. Havia um sonho:
transformar a cultura metafísica cristã-platônica, a qual negava a vida,
para a celebração desta e sua afirmação. E ainda, o racionalismo exacerbado
de Sócrates já tinha fincado raízes bastante profundas. Era preciso interpretar
a multiplicidade do homem e re-valorizar o instinto dionisíaco tiranizado
pela razão.
A
identificação inicial com as idéias wagnerianas estava intensa quando escreveu O
nascimento da tragédia, mantendo-se, inclusive, após a sua publicação.
Entusiasmado, escreve (a Rohde), em 28/01/1872: “Firmei um pacto com Wagner.
Você nem pode imaginar como agora estamos próximos e como nossos planos
se tocam”. [24]
No
começo do século 19, a busca pelo mito possuía fortes causas para seu ressurgimento,
tornando-se um meio de apaziguar as dores da existência. Nietzsche pensa
na elevação da arte como sendo capaz de uma recriação da cultura mítica. Os
mitos e sua existência davam ao homem a força necessária para encarar a
vida, tornando-os soberanos e poderosos, à medida que superavam suas dificuldades.
Com
a perda do mito, o homem encontrava-se só e já não podia mais buscar essa
força. Ainda tinha que encarar o contexto da época: fim do Iluminismo,
autoquestionamento das limitações da razão e quebra da sociedade pós-feudal,
trazendo conseqüências penosas – utilitarismo econômico e egoísmo privado. O
homem sente-se sozinho, apavorado e enfraquecido. A unidade social, antes
reunida pelo mito, também estava perdida.
Surge O
Caso Wagner e, como uma espécie de “breve descanso”, Nietzsche escreve
essa obra no intuito de esclarecer seu afastamento quanto ao papel revolucionário
que a música wagneriana teve para ele. Sua reverência ao compositor é destruída,
surgindo assim um desencantamento e conseqüente distanciamento, definitivos
na relação de amizade junto a Richard Wagner.
Numa
carta ao amigo Peter Gast, datada em 17/7/1888, o filósofo escreve:
“[…]
Caro amigo, você se recorda do pequeno panfleto que escrevi em Turim? Está sendo
impresso agora; e peço encarecidamente a sua colaboração. Naumann (o editor)
já tem o seu endereço. O título é O Caso Wagner: um problema para músicos”. [25].
Na época,
Wagner ainda tinha pensamentos revolucionários, defendendo que a corrupção
da sociedade também corrompia a arte. Defendia ele que “o mais alto objetivo
do ser humano é o artístico”. Quando de sua amizade com Nietzsche, Wagner
estava politicamente mais “calmo”, porém não havia ainda abandonado seu
desejo de pensar a arte enquanto elemento revolucionário. Muda seu pensamento
e adota ideais ascéticos e cristãos, transformando essa arte numa espécie
de estética mercantil e de entretenimento, um espetáculo sedutor, com efeitos
calculados e hipnóticos junto ao público.
Numa
de suas sessões cortadas do livro O Caso Wagner, Nietzsche revela: “(…)
Mas falemos do mais famoso dos schopenhauerianos vivos, de Richard Wagner.
A ele aconteceu o que já sucedeu com muitos artistas: enganou-se ao interpretar
os personagens que havia criado e não compreendeu a filosofia implícita
em sua arte mais característica”. [26]
O
que Nietzsche esperava de Wagner e seu drama musical era a re-união dionisíaca
nas camadas profundas do sentimento, a significação mítica da vida. Agora,
sentindo a volta “lenta e servil” de Wagner ao cristianismo e à igreja,
afasta-se do compositor e de seu projeto cultural católico e germânico.
Tinha que subtrair essa dominação, pois não compartilhava da mesma idéia.
Em seu escrito autobiográfico, esclarece aos leitores:
“Para
fazer justiça a esta obra (O Caso Wagner) é necessário sofrer a fatalidade
da música como se fora a dor de uma chaga aberta. De que sofro, quando
padeço o destino da música? Ressinto-me de que a música tenha sido privada
do seu caráter afirmativo e transfigurador do mundo, que se tenha tornado
música de decadência, não sendo mais a flauta de Dioniso… Contudo, ainda
que se admita a causa da música como uma causa própria, como a história
dos próprios sofrimentos, reconhecer-se-á que esta obra é cheia de considerações
e sobremodo indulgente”. [27]
Em
novembro de 1874, na inauguração da Casa dos Festivais em Bayreuth,
Wagner atinge o auge de sua carreira. Explica Safranski:
“Richard
Wagner distingue o cerne da religião de seu aparato mítico com
seus dogmas e cerimônias complicados e discutíveis – todo o fundo de tradição
religiosa que apenas sobrevive na medida em que é reforçado pelos hábitos
e protegidos pelo poder oficial. (…) queria atingir o efeito sacralizador
e redentor através do caráter da obra de arte total. A arte tem de mobilizar
todas as forças. Temos a música, que encontra para o indizível uma
linguagem que só a sensibilidade compreende; temos a ação no palco, os
gestos, a mímica, a configuração espacial e, sobretudo, o ritual festivo
dos dias de espetáculo, todos reunidos em torno do altar da arte. (…)
nesses esforços ele é um expoente do comércio de arte que tanto odeia.
Sua arte (…) torna-se um ataque generalizado a todos os sentidos”. [28]
Ao
criar expectativas sobre o drama musical wagneriano, enquanto desprendido
de pretensas convenções ou impregnados de leis, Nietzsche rompe com o compositor
e se desencanta, mudando seu pensamento. A música wagneriana não seria
mais um veículo confiável para se afirmar a vida. A arte do notável músico,
considerada antes como o renascimento da arte da Grécia, agora é pensada
como “uma grande corrupção para a música, cuja função é o passe hipnótico
e a excitação de nervos cansados”.
As
divergências aparecem e “O que vai separá-los depois dessa harmonia inicial
será o contraste entre uma produção de mitos que exige validade religiosa
(Wagner) e um jogo estético com o mito a serviço do viver (Nietzsche)”. [29]
Em O
Caso Wagner vem a crítica:
“Wagner
não era músico por instinto. Ele o demonstrou ao abandonar toda lei e,
mais precisamente, todo o estilo na música, para dela fazer o que ele necessitava,
uma retórica teatral, um instrumento de expressão, do reforço dos gestos,
da sugestão, do psicológico-pitoresco. Nisso podemos tê-lo como inventor
e inovador de primeira ordem”. [30]
Nietzsche
acusa Wagner de colocar sua música a serviço da decadência cultural e contra
tudo que se esperava de revolucionário. Além de produzir espetáculos para
a burguesia e todo tipo de Filiteísmo, essa música servia ainda
como instrumento anestesiante da religião.
Sobre
esse rompimento, Janz, de maneira lúcida e neutra, distingue três níveis
nessa mudança da relação entre Nietzsche e Wagner, quer sejam:
“(…)
o humano-pessoal, o religioso e filosófico e o histórico-espiritual. Wagner
tinha uma personalidade exuberante, mas também dominadora e intolerante
para com outros artistas (como Brahms). Nietzsche tinha de subtrair a essa
dominação. Wagner nasceu em 1813 – mesmo ano do pai de Nietzsche – e ele
em 1844. Não era uma relação inter pares. É preciso lembrar que,
enquanto Wagner já era famoso mundialmente, Nietzsche era um jovem desconhecido.
No plano filosófico e religioso, as divergências foram se acentuando. Nietzsche
rompeu com o cristianismo aos dezessete anos, um passo doloroso, documentado
também nas composições da época, que eram sacras (oratórios), e subitamente
passaram à profanas. Quando Wagner compôs o Parsifal, Nietzsche
acreditou ver na obra uma conversão ou recaída do velho Wagner no cristianismo
– o que era para ele uma grande ofensa. (…). Nietzsche também desaprova
o apego de Wagner à filosofia pessimista de Shopenhauer. O terceiro plano é a
superação do romantismo por Nietzsche”. [31]
Enquanto
o livro O nascimento da tragédia trazia dedicatória ao compositor,
reconhecendo sua música quanto à importância que esta poderia trazer ao
prenunciar uma nova cultura e um melhor relacionamento entre os homens,
em O Caso Wagner, Nietzsche rompe definitivamente com esse pensamento,
afirmando ser a música de Wagner doente e possuidora de sentido moral,
religioso e metafísico. A música, significando o princípio básico da estética
nietzschiana, não poderia negar a existência, ao contrário, deveria sim
afirmá-la e torná-la mais livre.
Dessa
forma, o drama musical wagneriano não estava livre de pretensões metafísicas
ou redentoras, acabando por se tornar altamente ideológico – como já tinha
mostrado a história, de modo trágico – e consequentemente perigoso à afirmação
da vida.
Nietzsche
reconhecia em Wagner um Ésquilo moderno, o qual poderia restaurar os mitos
instintivos, tornando a unir a música e o drama em êxtases dionisíacos. É esse
o caráter de sua música que, segundo Nietzsche, junto com o povo alemão,
iria restaurar o mundo experimentado sob transe místico.
O
filósofo, que até então interpretara a música de Wagner como o "renascimento
da grande arte da Grécia", mudou de opinião, achando que Wagner inclinava-se
ao pessimismo sob a influência de Schopenhauer, convertera-se declaradamente
ao cristianismo, entre outras divergências. O que parecia ser a música
de Wagner um indício de cura, de regeneração, de recuperação e de liberdade,
apresenta-se como o sintoma mais definitivo do fracasso, da doença, da
perda e da ruína.
Wagner
já não produzia mais música que exalasse calor e vida, tendo se transformado
em um “(…) artista da décadence – eis a palavra. E aqui começa
a minha seriedade. Estou longe de olhar passivamente, enquanto esse decadent nos
estraga a saúde – e a música, além disso! Wagner é realmente um ser humano?
Não seria antes uma doença? Ele torna doente aquilo em que toca – ele
tornou a música doente”. [32]
Wagner
voltara-se ao cristianismo e Nietzsche enganara-se, pois, segundo ele,
“Richard Wagner, aparentemente um herói conquistador, mas agora um decadente
desesperado que apodreceu, deixou-se afundar subitamente, impotente e alquebrado,
diante da Cruz Cristã”. [33]
O
Nietzsche de 1872 enganara-se quando acreditou na possibilidade de uma
arte dionisíaca esquiliana na Europa, através de Wagner. O seu ressentimento
atenuou-se por saber o quanto Wagner, e sua própria arte, estavam vivendo
uma fase decadente. Porém, Nietzsche ao tomar consciência dessa crise,
procura superar-se criando uma filosofia de crítica aos valores de uma
sociedade burguesa arruinada culturalmente. E a norma socrática de decadência
“conhece-te a ti mesmo” deveria ser substituída pela norma mais humana
do “supera-te a ti mesmo”, porque o homem não precisa senão de si mesmo.
Sua
crítica a essa metafísica da arte, aliada com a rejeição à filosofia de
Schopenhauer, passa a falar agora aos europeus do futuro. De fato, O
Caso Wagner é realmente um ataque contra Wagner, mas “mais ainda um
ataque contra a nação alemã que vem se tornando cada vez mais preguiçosa
e desprovida de instinto nas coisas do espírito”, escreve ele. Nietzsche
lamenta, além disso, que Wagner ao envelhecer tenha se germanizado.
A
música wagneriana revelou-se e perdeu o seu valor para Nietzsche. Wagner
não podia ser sincero e essa ruptura, todavia, está na compreensão da música
wagneriana como uma expressão e índice da decadência e da impossibilidade
de se realizar uma arte vigorosa, uma arte heróica e poética; a música
alemã jamais poderia levar ao renascimento da tragédia na cultura européia.
A
filosofia musical de Nietzsche unida a Wagner foi uma tentativa do filósofo
em entender o universo sonoro musical como revelação de uma verdade abissal
sobre o ser humano. Porém, ao subordinar a música ao drama, o que o filósofo
repreende no compositor é este usá-la como instrumento das idéias religiosas
e da moral, transformando-a em arte de seduçãotransformando-a
em arte de seduç1886. apodreceu, deixou-se afundar subitamente, impotente
e alquebrado, diante da cruz Crist e de hipnose, alienação e anestesiamento. Sobre
sua “amizade estelar” com Wagner, escreve no seu livro A Gaia Ciência:
“Nós éramos
amigos e nos tornamos estranhos um para o outro. Mas está bem que seja
assim, e não vamos nos ocultar e obscurecer isto, como se fosse motivo
de vergonha. Somos dois barcos que possuem cada qual, seu objetivo e seu
caminho; podemos nos cruzar e celebrar juntos uma festa, como já fizemos
– e os bons navios ficaram placidamente no mesmo porto e sob o mesmo sol,
parecendo haver chegado a seu destino e ter tido um só destino. (…) e
assim vamos crer em nossa amizade estelar, ainda que tenhamos de
ser inimigos na terra”.[34]
Nietzsche
não busca um ideal de verdade, mas antes o valor do artista e de sua arte
na busca de uma interpretação que fixe o sentido dos fenômenos, reconhecendo-os
como fragmentários e parciais. Ao maximizar a pulsão instintiva do homem,
sua sabedoria, força criativa e afirmadora da vida, reconhece na música
essa força, pois esta traz junto a possibilidade de fusão entre homem e
natureza, indivíduo e existência, a aproximação verdadeira entre o uno
primordial e o cosmos.
Importava
para ele uma música distante de lágrimas e de culpas ou a que estivesse
mais próxima da vida, causando-lhe um estremecimento de temor. Em
suas palavras, descreve: “(…) Direi ainda uma palavra para os ouvidos
mais seletos: o que eu quero propriamente da música. Que ela seja
serena e profunda, como uma tarde de outubro. Que seja singular, travessa,
terna, uma doce pequena mulher de baixeza e encanto… (…)”. [35]
Somente
a música dionisíaca, livre de moralismos e castidades, possibilita o reaparecimento
dessa pulsão instintiva e vital no homem, podendo despertá-lo para uma
existência (também) livre de remorsos, ressentimentos e crises de consciência,
numa associação entregue à coragem, ao heroísmo e ao fatalismo. Para o
filósofo, plena de vida e sedenta de liberdade é a música dionisíaca, pois
expressaria a força e a fatalidade no homem. Nesse sentido, afirma Nietzsche:
“A
música, como a entendemos hoje, não é igualmente senão uma irritação e
uma descarga completa das emoções, mas não é mais que o resto de um mundo
de expressões emocionais muito mais amplo, um resíduo do histrionismo dionisíaco.
Para tornar a música possível, enquanto arte especial, imobilizou-se certo
número de sentidos, em primeiro lugar o sentido muscular (ao menos em alguma
medida: pois, sob um ponto de vista relativo, todo ritmo fala ainda a nossos
músculos): de maneira que o homem não possa mais imitar e representar corporalmente
tudo o que sente. Contudo, este é precisamente o verdadeiro estado
normal dionisíaco e, em todos os casos, o estado primitivo; a música é a
especificação desse estado, especificação lentamente adquirida, em detrimento
das faculdades próximas”. [36]
A
relevância do instinto para o homem, enquanto ser livre que sente e flui
no mundo, é acentuada em todo momento no pensamento nietzschiano. Dias
reforça a idéia destacando que:
“Para
Nietzsche, a tragédia não é apenas uma nova forma de arte ou um novo capítulo
na história da arte, ela tem a função de transformar o sentimento de desgosto
causado pelo horror e absurdo da existência, numa força capaz de tornar
a vida possível e digna de ser vivida. Para Nietzsche, o verdadeiro valor
do homem reside no instinto, pois é na realização do instinto que ele encontra
sua expressão espontânea e livre, criando e recriando”. [37]
Quando
o filósofo pergunta: “Já se percebeu que a música faz livre o espírito?
dá asas ao pensamento? que alguém se torna mais filósofo, quanto mais se
torna músico?", [38] ele
quer afirmar a força artística e interpretativa, próprias da vida, que
mais tarde vai chamar de vontade de potência, como música.
O
Dionisíaco é esta música que, ao se manifestar, precisa necessariamente
da transposição apolínea da representação, pois “(…) a luta, a dor, a
destruição dos fenômenos aparecem necessárias para nós”. [39] Ambas
as pulsões “deixam entrever algo de mais profundo que transcende qualquer
herói individual; o eterno vivente criador”. [40] Ainda,
“somente a partir do espírito da música entendemos a alegria diante do
aniquilamento do indivíduo”. [41]
Ao
criticar e excluir da história da música os últimos dramas musicais wagnerianos,
Nietzsche separa os aspectos positivos da música, ou seja, esta enquanto
transmissora de estímulos vitais, afirmadora da existência, a que clama
“sim” à vida, daquela música doente, decadente, enquanto mecanismo de manipulação
e apatia, transformada e transfigurada em omissões, cuja função é anestesiar,
alienar e distanciar o homem do valor de sua existência.
A
música, sendo uma linguagem universal em alto grau, expressa todas as sensações
humanas e seus esforços, podendo o homem exprimir-se pelas melodias. O
peso da existência é atenuado com estimulantes. Dessa forma, a música recupera
a vida, transporta beleza e desenvolve uma multiplicidade de sensações
positivas à existência. Enquanto mecanismo ativo de estímulo e criação,
a música afirma a vida e se torna importante elemento artístico, cuja função é criar
homens voltados à vida e à cultura.
Com
efeito, a música é a voz sonora de um povo, de uma cultura, de uma verdadeira
arte. Nietzsche reforça a idéia quando destaca que:
“A
música é, de fato, não uma linguagem universal para todos os tempos, como
se tem dito muitas vezes em seu louvor, mas corresponde exatamente a um
período particular e ao ardor duma emoção que envolve uma cultura individual
e perfeitamente definida, determinada pelo tempo e pelo espaço, como a
sua mais íntima lei”. [42]
O
pensamento Nietzschiano, ao criticar as formas decadentes da arte musical,
relaciona-se diretamente com o sentido afirmativo da existência, clamando
“sim” à vida. Afirma o filósofo:
“A
música é a última planta a vir à luz, aparecendo no Outono e na estação
morta de cultura a que pertence. O século XVIII – século da rapsódia, dos
ideais desfeitos e da felicidade transitória – apenas se revelou na música
de Beethoven e de Rossini. O amador de sorrisos sentimentais bem podia
dizer que toda a música realmente importante foi um canto de cisnes”. [43]
“A
música é o último hálito de uma cultura”, escreve Nietzsche. [44] A
crítica, conforme cita Copleston, “é direcionada às culturas tirânicas,
onde o homem está submetido e governado ao que ele chama de o incorreto
sentir, [45] pois
se desejam falar, a convenção segreda-lhes a réplica que hão de dar e isso
os obriga a esquecer o que, a princípio, tencionavam dizer. (…) Desta
forma se transformam em pessoas absoluta e completamente diferentes, ficando
reduzidas a objetos escravos de um incorreto sentir”. [46]
Copleston
segue em seu argumento explicando:
“Mas
quando os acordes da música dum mestre desabam sobre uma humanidade assim
doente e sofredora, o significado dessa música é o correto sentir,
inimigo de toda a convenção, de todo isolamento artificial e de toda a
falta de compreensão de homem para homem. Essa música significa o regresso à natureza
e, ao mesmo tempo, uma purificação e remodelação dessa mesma natureza”. [47]
Percebe-se
que, desde O nascimento da tragédia até O Caso Wagner, Nietzsche,
por meio de seu pensamento genial e incomparável, tenta elevar o valor
sobre a questão da existência. O homem, possuidor de instinto e de razão,
não poderia omitir um em detrimento do outro. Nesse sentido, esse “psicólogo”
da espécie humana, como se intitulava, formulará profundas e relevantes
críticas às doutrinas que menosprezem a vida – como o cristianismo, conforme
afirmava – tornando homens livres em submissos e separados da unidade da
vida.
A
música, enquanto criação humana da arte, apreendida principalmente pelos
sentimentos, remete-nos a um recurso otimista revitalizante para suportar
a realidade da dor do sofrimento humano. Seu espírito livre e sua capacidade
instintiva e criativa são despertados pela herança da cultura mítica grega,
como forma de pensar o significado da vida – seu valor e sua força.
-
Copleston,
Frederick, S. J. Nietzsche, Filósofo da Cultura. 9º v. Porto: Livraria
Tavares Martins, 1953, 9 v. -
Dias,
Rosa Maria. Nietzsche e a Música. São Paulo: Discurso Editorial,
2005. -
Nietzsche,
Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. Coleção Grandes Obras do Pensamento
Universal – 28. Tradução de Antônio Carlos Braga, São Paulo: Escala
2006. -
Nietzsche,
Friedrich. Ecce Homo. Tradução de Pietro Nassetti, São Paulo:
Martin Claret, 2003. -
Nietzsche,
Friedrich. Humano, Demasiadamente Humano. Coleção Grandes Obras
do Pensamento Universal – 42. Tradução de Antônio Carlos Braga,
São Paulo: Escala, 2006. -
Nietzsche,
Friedrich. Nietzsche contra Wagner: dossiê de um psicólogo. Tradução,
notas e prefácio de Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras,
1999. -
Nietzsche,
Friedrich. O Caso Wagner: um problema para músicos. Tradução, notas
e prefácio de Paulo César de Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 1999. -
Nietzsche,
Friedrich. Vontade de Potência. Coleção Mestres Pensadores.
Tradução, prefácio e notas de Mário D. Ferreira Santos, São Paulo:
Escala, 2006. -
Nietzsche,
Friedrich W. A Origem da Tragédia. Org. por Silvio Donizete Chagas,
São Paulo: Moraes, s.d. -
Nietzsche:
Obras Incompletas. Coleção Os
Pensadores. 3ª ed. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho, São
Paulo: Abril Cultural, 1983. -
Safranski,
Rudiger. Nietzsche, biografia de uma tragédia. Tradução de Lya
Luft, São
Paulo: Geração Editorial, 2005. -
Viviane
Mosé. Disponível , 30/03/2006.
[1] Apud
SAFRANSKI, Rudiger. Nietzsche, biografia de uma tragédia, São Paulo:
Geração Editorial, 2005.
[2] Nietzsche, O
Nascimento da Tragédia, 24. In: DIAS, Rosa Maria. Nietzsche e
a Música, São Paulo: Discurso Editorial, 2005.
[3] Nietzsche, Cartas
a Peter Gast, Nice, 15 de janeiro de 1888. In: Safranski, 2005.
[4] Viviane
Mosé é filósofa e autora do livro Nietzsche e a Grande Política da Linguagem. São
Paulo: Civilização Brasileira, 2005. Ver também <www.ajorio.com.br/vmose.htm ,
30/03/2006.
[5] Idem.
[6] Nietzsche,
Friedrich. O Caso Wagner: um
problema para músicos. Tradução, notas e prefácio de Paulo César de
Souza, São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Entrevista com Curt Paul
Janz, p. 107.
[7] Copleston,
Frederick, S. J. Nietzsche, Filósofo da Cultura. 9º v. Porto:
Livraria Tavares Martins, 1953.
[8] Idem,
p. 24.
[9] Nietzsche,
Friedrich. Ecce Homo. Tradução de Pietro Nassetti, São Paulo: Martin
Claret, 2003.
[10] Nietzsche,
Friedrich. A Origem da Tragédia. org. por Silvio Donizete Chagas,
São Paulo: Moraes, s.d.
[13] Idem,
p. 70.
[14] Nietzsche, A
Origem da Tragédia, op. cit., p. 7.
[15] Idem,
p. 8.
[16] Idem,
p. 78
[17] Idem,
p. 89.
[18] Idem,
p. 90.
[19] Idem,
p. 7.
[20] Nietzsche, Crepúsculo
dos Ídolos, p. 106.
[21] Idem,
74.
[22] Ibidem,
p. 56.
[23] Nietzsche:
Obras Incompletas, Coleção Os Pensadores, Tradução de Rubens
Rodrigues Torres Filho, São Paulo: Abril Cultural, 1983, 3 ed.
[24] Safranski,
op. cit., p. 123.
[25] Nietzsche, O
Caso Wagner, op. cit., p. 99.
[26] Idem,
p. 94.
[27] Nietzsche, Ecce
Homo, 1, p. 110.
[28] Safranski,
op. cit., p. 84-85.
[29] Idem,
p. 78.
[30] Nietzsche, O
Caso Wagner, p. 25.
[31] Janz,
Curt Paul, op. cit., p. 109.
[32] Nietzsche, O
Caso Wagner, p. 18.
[33] Nietzsche,
Friedrich. Humano, Demasiadamente Humano, apud Copleston, op.cit.,
1953, p. 32.
[34] Nietzsche, O
Caso Wagner, p. 96.
[35] Nietzsche, O
Caso Wagner, p. 97.
[36] Nietzsche, Crepúsculo
dos Ídolos, p. 70.
[37] Dias,
Rosa Maria. Nietzsche e a Música. São Paulo: Discurso Editorial,
2005.
[38] Nietzsche, O
Caso Wagner, 1.
[39] Idem,
p.17.
[40] Idem,
p. 9 e 16.
[41] Idem,
p. 16.
[42] Nietzsche, Humano,
Demasiadamente Humano, af. 171.
[43] Nietzsche, Aurora,
af. 195, apud Rosa Maria Dias, 2005.
[44] Nietzsche, Vontade
de Potência, 1, af. 92.
[45] Copleston, Nietzsche,
Filósofo da Cultura, p. 80.
[46] Nietzsche, Considerações
Intempestivas, apud Rosa Maria Dias, op. cit., 2005.
[47] Idem,
p. 134.
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