Resposta à questão: o que é o pós-moderno ?
Jean-François
Lyotard
(…) De todos os lados
somos pressionados a acabar com a experimentação, na arte e fora dela. (…)
Li um pensador famoso que toma
a defesa da modernidade contra aqueles a que chama de neo-conservadores. Ele
acredita que, sob a bandeira do pós-modernismo, estes querem se desembaraçar de
um projeto moderno que permanece inacabado, o do lluminismo. A dar-lhe
crédito, mesmo os últimos partidários da Aufklarung, como Popper ou
Adorno, s6 puderam defender tal projeto nas esferas particulares da vida: para
o autor de The Open Society, na da política e, para o da Aesthetische
Theorie, na da arte. Jürgen Habermas (creio que já o tinham reconhecido) pensa
que se a modernidade fracassou, foi deixando a totalidade da vida
fragmentar-se em especialidades independentes abandonadas à competência
estreita dos especialistas, enquanto o indivíduo concreto vive o "sentido
dessublimado" e a forma "desestruturada" não como uma liberação,
mas na forma de um imenso tédio já descrito por Baudelaire há mais de um
século.
Seguindo uma indicação de
Albrecht Wellmer, o filósofo considera que o remédio para esta compartimentação
da cultura e sua separação da vida só pode vir da "mudança do estatuto da
experiência estética, quando ela não mais for expressa primordialmente por
juízos de gosto", mas "for utilizada para explorar uma situação histórica
da vida", isto é. quando "for posta em relação com os problemas da existência".
Porque esta experiência "entra então num jogo de linguagem que não é mais
o da critica estética", ela intervém "nos procedimentos cognitivos e
nas expectativas normativas", ela "transforma os modos pelos quais
estes diferentes momentos se remetem um ao outro". O que pede Habermas as
artes e à experiência que elas acarretam é, em suma, lançar uma ponte
sobre o abismo que separa os discursos do conhecimento, o da ética e o da
política, e assim franquear uma passagem a uma unidade da experiência.
Minha questão é saber com que
espécie de unidade sonha Habermas. O fim visado pelo projeto moderno é a
constituição de uma unidade sócio-culrural no seio da qual todos os elementos
da vida cotidiana e do pensamento viriam encontrar lugar como em um todo
orgânico? Ou então a passagem que é preciso cavar entre os jogos de linguagem
heterogêneos — os do conhecimento, da ética, da política— é de uma ordem
diferente da deles? E, em caso afirmativo, como seria possível realizar sua
síntese efetiva?
A primeira hipótese, que é de
inspiração hegeliana, não põe em causa a noção de uma experiência
dialeticamente totalizante; a segunda é mais próxima do espírito da Critica
do Juízo mas, como esta, deve sofrer o severo reexame que a pós-modernidade
impõe ao pensamento iluminista, à idéia de um fim unitário da história e a de
um sujeito. É esta crítica que foi iniciada nâo só por Wittgenstein e Adorno,
mas também por alguns pensadores franceses ou não, que nào tiveram a honra de
ser lidos pelo professor Habermas, fato que ao menos lhes serviu para
escaparem ao rótulo de neo-conservadorismo.
O REALISMO
As pressões a que me referi no
inicio não são da mesma natureza. Elas podem até ser contraditórias. Umas são
feitas em nome do pós-modernismo, outras são para combatê-lo. Não é
necessariamente a mesma coisa exigir que se forneça referencial (portanto,
realidade objetiva), sentido (logo transcendência verossímil), destinatário
(isto é, público), emissor (expressividade subjetiva), ou consenso
comunicacional (um código gerai de trocas, como, por exemplo, o gênero do
discurso histórico). Mas nestes multiformes convites para sus pender a
experimentação artística há um mesmo apelo à ordem, ura desejo de unidade, de
segurança, de popularidade (no sentido da Oeffentlichkeit, de
"encontrar um público"), ê preciso
reintegrar os artistas e os escritores à comunidade ou, quando se a julga
doente, responsabilizá-los ao menos por sua cura.
Há um indício irrecusável
desta disposição comum: para todos esses autores nada é mais urgente do que
liquidar a herança das vanguardas. Tal é em particular a impaciência do assim
chamado "transvanguardismo".
(…) Como Thierry de
Duve o nota com penetração, a questão estética moderna não é "o que é
belo" e sim "o que é a arte (ou a literatura)".
O realismo que poderia
ser definido como o que pretende evitar a questão da realidade própria à arte,
encontra-se sempre a meio caminho entre o academicismo e o kitsch. Quando
o poder se chama partido, o realismo com seu complemento neo-clássico triunfa
sobre a vanguarda experimental difamando-a e interditando-a. E preciso então
que as "boas" imagens, as "boas" narrações, as boas formas
que o partido solicita, seleciona e difunde, encontrem um público que as
deseje como o remédio adequado à sua depressão e angústia. A exigência de realidade, ou seja, de unidade,
de simplicidade, comunicabilidade, etc, não teve a mesma intensidade nem a mesma
continuidade no público alemão de entre-guerras e no público russo posterior à
revolução: eis a razão para se estabelecer a diferença entre o realismo nazi e
o stalinista reacionário: o juízo estético não teria que se pronunciar sobre a
conformidade de tal ou tal obra com regras estabelecidas do belo. Ao invés de a
obra se inquietar com o que faz dela uma obra de arte. e se ela poderá
encontrar quem a aprecie, o academicismo político
assume e impõe critérios a priori do "belo" que
selecionam de um só golpe e de uma vez por todas certas obras e um público. O
uso das categorias no juízo estético seria assim da mesma natureza que no juízo
de conhecimento. Para falar como Kant, um e outro seriam determinantes: a expressão
primeiro é "bem formada" no entendimento e depois só se retém da
experiência os "casos" que podem estar subsumidos nessa expressão.
Quando o poder se chama
capital, e não partido, a solução "Transvanguardista" ou
"pós-moderna", no sentido de Jenks, se mostra mais adaptada que a
solução anti-moderna. O ecletismo é o grau zero da cultura geral
contemporânea: escuta-se o reggae, olha-se western, almoça-se McDonald,
janta-se cozinha local, perfuma-se parisiense à Tokio, veste-se retro à
Hong-Kong, o conhecimento é matéria de jogos televisivos. E fácil encontrar um
público para as obras ecléticas. Fazendo-se kitsch, a arte lisonjeia a
desordem que rcin?. no "gosto" do amador. O artista, o proprietário
de galeria, o crítico e o público se comprazem juntos com não importa o que e a
hora é de relaxamento. Mas o realismo do não importa o que é.o do dinheiro: na
ausência de critérios estéticos, permanece possível e útil medir o valor das
obras pelo lucro que elas propiciam. Este realismo se acomoda a todas as
tendências, como o capital a todas as "necessidades", desde que estas
tendências e necessidades tenham poder de compra. Quanto ao gosto, não é preciso se ser delicado quando o objetivo é a especulação
ou a distração.
A pesquisa artística e
literária é duplamente ameaçada: por um lado, pela política cultural, pelo
mercado de arte e do livro, por outro. O que se recomenda, ora por um canal,
ora por outro, é fornecer obras que sejam primeiramente relativas a temas que
existem aos olhos do público ao qual elas se destinam, e que em seguida sejam
de tal maneira feitas ("bem formadas") que este público reconheça do
que se trata, compreenda o que está significando, possa com pleno conhecimento
de causa dar-lhes ou recusar-lhes seu assentimento, e mesmo, se possível, possa
tirar daquelas que ele aceita algum consolo.
O SUBLIME EA VANGUARDA
(…)
Eu chamaria moderna a
arte que consagra sua."pequena técnica", como dizia Didederna. Mas
como fazer ver que há alguma coisa que nào pode ser vista? Kant mesmo indica a
direção a seguir nomeando o informe, a ausência de forma, como
um índex possível do inapresentável. Ele
diz também que a abstração vazia que s imaginação experimenta à
procura de uma presentação do infinito (outro inapresentável) é ela própria uma
prcsentaç5o do infinito, sua presentação negativa. (…)
Não é minha intenção
analisar aqui em, detalhe a maneira pela qual as diversas, vanguardas por assim dizer humilharam e desqualificaram
a realidade, investigando os artifícios ilusionistas que constituem as técnicas
pictóricas. O tom local, o desenho, a mistura de cores, a perspectiva linear, a
natureza do suporte e a do instrumento, a "fatura", a maneira de
expor, o museu: as vanguardas não cessam de desmascarar os artifícios de presentaçào que permitem sujeitar o pensamento
ao olhar e de desviá-lo do inapresentável. Se Habermas compreende, como
Marcuse. este trabalho de de realizaçào como um aspecto de
"dessu-blimaçâo" (repressiva) que caracteriza’ a vanguarda, é porque
ele confunde o sublime kantiano com a sublimação freudiana e para ele a
estética continua sendo a do belo.
O PÓS-MODERNISMO
Que é então o pós-modernismo?
Que lugar ocupa ou não no trabalho vertiginosa suas questões lançadas às regras
da imagem e da narração? Ele certamente faz parte do moderno. Tudo o que é
recebido, mesmo que seja de ontem (modo. modo. escrevia- Petrônio). deve
ser posto sob suspeita. Contra que espaço se batia Cézanne? O dos impressionistas.
Contra que objeto, Picasso e Braque? O de Cézanne. Com que pressupostos rompe
Duchamp em 1912? Que é preciso fazer um
quadro, mesmo cubista?. E Buren interroga este outro pressuposto que
considera manter-se intacto na obra de Duchamp: o lugar da presentação da
obra. Espantosa aceleração, as "gerações" se precipitam. Uma obra não pode tornar-se moderna se nào for
primeiro pós-moderna. O pós-modernismo assim entendido não é o modernismo em
seu fim. mas no estado nascente, e este estado é recorrente.
(…)
Eis pois a diferença: a
estética do moderno é uma estética do sublime, mas nostálgica; ela permite que
o inapresentável seja sugerido apenas como um conteúdo amante, mas a forma continua a oferecer ao leitor ou ao
espectador, graças à sua "consistência reconhecível, matéria de consolação
e prazer. Estes sentimentos, entretanto, não constituem o verdadeiro
sentimento do sublime, que é uma combinação intrínseca de prazer e dor: prazer porque a imaginação ou a sensinilidade não estão à altura do conceito.
O pós-moderno seria o que no
moderno alega o inapresentável na própria presentação; o que se recusa ao
consolo das boas formas, ao consenso de um gosto que permitiria experimentar
em comum a nostalgia do impossível; o que investiga presentações novas, não
para gozá-las, mas para melhor fazer sentir que há o inapresentável. Um
artista, um escritor pós-moderno está na situação de um filósofo: o texto que
ele escreve, a obra que ele realiza não são em princípio governadas por regras
já estabelecidas, e não podem ser julgadas por meio de um juízo determinante,
pela aplicação de categorias conhecidas a esse texto, essa obra. Tais regras
ou categorias são o que a obra ou o texto
procura. O artista e o escritor trabalham pois sem regras e para estabelecer
regras do que terá sido feito. Dai que a obra e o texto tenham propriedade
de acontecimento, daí também que elas cheguem sempre muito tarde para o autor,
ou, o que vem a dar no mesmo, que sua transformação em obra comece sempre muito
cedo. Pós-moderno seria compreender segundo o paradoxo do futuro (pós) anterior (modo).
(…)
(…) O século XIX e o
século XX nos legaram toda nossa embriaguez de terror. Nós já
pagamos bastante a nostalgia do Todo e do uno. da reconciliação do conceito e
do sensível, da experiência transparente e comunicável. Sob a demanda geral do
relaxamento e do apaziguamento nós ouvimos rosnar o desejo de recomeçar o
terror, de realizar o fantasma de abarcar a realidade. A resposta é guerra ao
todo, testemunhemos o inapresentável, ativemos as diferenças, salvemos a honra
do nome.
FONTE: ARTE EM REVISTA, ANO 5/ nº 7, 1983.
(Extratos de um texto publicado
originalmente rm italiano no Alfabeta, 32 e retomado em La peinture du
secret à l’âge postmoderne. posterirmenyr traduzida e publicada com pequenas alterações in Critique,
419. Avril.1982 . Seleção e tradução de Otíllia B. F. Arantes. Revisão de
Iná Camargo Costa.)
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