Sobre a ideologia

Sobre
a ideologia

Flávio Sposto Pompêo (UnB)

A escolha da ideologia para este
debate coloca grandes dificuldades, já que poucas categorias têm trajetórias
tão conturbadas quanto esta. Se o envolvimento em polêmicos debates teóricos
fosse sinônimo de grande capacidade explicativa, o conceito de ideologia
seria fundamental para a compreensão da sociedade.

A palavra ideologia foi
literalmente inventada pelo francês Destutt de Tracy, no final do século
XVIII. Tipicamente iluminista e positivista, de Tracy pretendia criar uma
nova ciência, neutra e universal, que desse conta das idéias e sensações
humanas. A essa ciência, chamou ideologia. Seria a mãe de todas as ciências:
todos os outros estudos humanos seriam ramificações dela.

Foi com Napoleão, porém, que o
conceito de ideologia começou a envolver nas polêmicas que perduram até hoje.
Napoleão passou a criticar a ideologia como ciência vã e especulativa, e mais
tarde, quando a situação política piorou, passou a classificar todos os
fenômenos contrários ao governo como ideologia. A verdade é que Napoleão fez
da crítica da ideologia e dos ideólogos (os associados de de Tracy) uma arma
política. Logo, todos os problemas da França passaram a ser culpa da
ideologia. Napoleão chegou inclusive a debitar na conta da ideologia a perda
de uma guerra3.

A
concepção crítica da ideologia, em que tal conceito é usado como arma, foi
alçada a novos patamares por Karl Marx. Segundo Terry Eagleton (1997, p. 71),
“a teoria da ideologia de Karl Marx é provavelmente mais bem entendida como
parte de sua teoria da alienação”4.

A maior parte das concepções de Marx sobre o conceito de ideologia estão explícitas na obra “A ideologia alemã”. Para
entender tal livro, é necessário entender o contexto em que surgiu e suas
intenções políticas. Apesar de “invertê-la”, Marx foi inegavelmente influenciado
pela filosofia alemã, principalmente com a obra hegeliana e com os
debatedores de tal obra, com os quais ele dialogou durante boa parte de sua
vida. Neste sentido, a obra A Ideologia Alemã é uma resposta a este legado
filosófico. Marx, um materialista histórico, queria detonar seus precursores
idealistas. Assim, fez este trabalho sobre os “ideólogos” da filosofia alemã,
delimitando, já no prefácio, o que é ideologia, da qual seus filósofos
antagonistas padeciam: “até o presente os homens sempre fizeram falsas
representações sobre si mesmos. […] Os produtos de sua cabeça acabaram por
se impor à sua própria cabeça” (Marx, 1979[1847], p. 17). Ou seja, desde este
início, já é possível notar a idéia que fundamenta a ideologia como uma
espécie de alienação: as idéias e representações, produtos das condições
materiais em que os homens vivem, reificam-se e impõem-se aos homens como
idéias externas e com vida própria. Em outro trecho, aplicado tanto aos
jovens quanto aos velhos hegelianos, a crítica de Marx se fundamenta na
medida em que todos estes fazem com que seus os produtos de suas consciências
se tornem entidades autônomas e independentes (idem, p. 25). Estas
consciências se concretizam por meio de fraseologias, e os filósofos que
tentam combater estas fraseologias nada mais fazem do que impor outras
fraseologias, “não combatem de forma alguma o mundo real existente” (idem, p.
26).

Neste ponto,
faz-se necessário apresentar uma representação proposta por Marx para
entender o mundo, fundamentada na distinção entre base e super-estrutura.A
formulação de tal idéia aparece de maneira clara no famoso prefácio da
“Contribuição à critica da economia política” (Marx, 2003[1859]). Segundo
esta idéia, a base estaria mais ligada ao plano material, ao econômico etc,
englobando, na expressão de Marx, as forças produtivas. A super-estrutura, que engloba as relações sociais de produção, seria um produto ou uma conseqüência, em algum grau, da
disposição da base. É neste plano que se situariam as condições jurídicas,
morais, éticas, políticas, artísticas etc de um dado modo de produção. Este
raciocínio é profícuo para a compreensão da ideologia em Marx na medida em
que a ideologia é vista como parte do terreno da super-estrutura, ou seja, as
ideologias, que são falsas representações do mundo, são decorrências de
contradições fundamentadas nas condições materiais da sociedade. A ideologia
começa a surgir com a divisão do trabalho social, que traça distinção entre o
trabalho manual e o trabalho intelectual. Nas palavras de Marx, “a produção
de idéias, de representações, da consciência, está, de início, diretamente
entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens,
como a linguagem da vida real” (Marx, 1979, p. 36). Ou, em outras palavras,
“se, em toda a ideologia, os homens e suas relações aparecem invertidos como
numa câmara escura, tal fenômeno decorre de seu processo de vida
(idem, p. 37, ênfase minha). Em outra formulação, “não é a consciência que
determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (idem, p. 37).

Uma das
manifestações ideológicas mais relevantes se dá com relação aos interesses.
Os indivíduos têm como interesses mais imediatos e mais relevantes os
particulares ou referentes a si próprios. Por características do modo de
produção, os interesses particulares não coincidem com os interesses comuns,
e as pessoas, desprezando estes, agem de maneira egoísta. Para Marx, “este
interesse comum faz-se valer como um interesse “estranho” aos indivíduos,
“independente” deles, como um interesse “geral” especial e peculiar” (idem,
p. 49). No caso, todas as classes sociais, tal como definidas em Marx em
outras obras, teriam interesses objetivos, definidos historicamente. O
próprio conceito de consciência de classe representa a confluência entre os
interesses objetivos (de classe) e os interesses particulares. O problema é que as
ideologias servem para “nublar” o processo, de inúmeras formas, na medida em que as pessoas não percebem seus interesses objetivos, nem
os interesses comuns de classe.

Neste
sentido, a dificuldade de confluência dos interesses se dá por causa de uma
particularidade “cruel” da lógica das estruturas da consciência: “as idéias
(Gedanken) da classe dominante são, em cada época, as idéias dominantes, isto
é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo,
sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios de
produção material dispõe, ao mesmo tempo, dos meios de produção espiritual”
(idem, p. 72). Em outras palavras, as idéias dominantes são a expressão da
dominação material. O fato de a classe dominante dispor dos dispositivos
culturais é parte do mecanismo de dominação, tanto material como ideológica.

Vimos,
portanto, que segundo a concepção marxiana exposta no livro A ideologia
alemã, o termo ideologia assume uma acepção negativa. A tradição marxista,
porém, foi rápida em mudar esta concepção. Poucas décadas depois, Lênin já falava
em ideologia socialista, algo que, para Marx, talvez fosse inconcebível.

Outro autor marxista importante que fez a
recuperação do conceito de ideologia foi o húngaro Georg Lukács. Pode-se
dizer que História e Consciência de Classe, a principal obra de Lukács, foi
fortemente influenciada pelo trabalho de Hegel e do jovem Marx5. Sobre
esta influência, um dos argumentos correntes é que Lukács, que convivia com o
marxismo economicista e determinista da II Internacional, perspectiva
predominante em sua época, resolveu recuperar, em Hegel e no jovem Marx,
elementos para a reflexão e ação que fossem divergentes da visão determinista
então corrente, que gerava passividade.

Como Lênin, Lukács adotou uma concepção de ideologia que pode ser dita “neutra”. Terry Eagleton ressalta que Lukács manteve
as duas concepções possíveis de ideologia: a concepção neutra, que considera
a ideologia a expressão da consciência ligada à posição de classe (neste
sentido, a ideologia revolucionária do proletariado seria o socialismo) e
condicionada pelas condições históricas, e a concepção crítica, que deriva da
idéia de fetichismo da mercadoria. Desta maneira, a consciência de classe
seria a interpretação de mundo mais razoável e racional disponível para uma
classe particular6.

Segundo esta concepção, a burguesia, por causa de
sua posição estrutural, estaria limitada por barreiras que fazem com que sua
ideologia seja limitada pelo fenômeno da reificação, derivado da
forma-mercadoria que contamina todos os aspectos da vida social, assim
fragmentando a compreensão social e impossibilita a apreensão real dos
fenômenos sociais. Uma das contradições da consciência de classe burguesa é
apontada por Löwy (1994, p. 129): por um lado, a burguesia tem um interesse
grande e importante em conhecer diversos mecanismos sociais ligados a
fenômenos econômicos; por outro lado, precisaria ocultar de outras classes e
de si mesma a essência verdadeira da sociedade, particularmente as questões
relacionadas à apropriação do trabalho e de valor. Em outras palavras,

A burguesia, […] como a classe que domina a sociedade quando pela
primeira vez a economia penetrou na totalidade da sociedade, deve
inevitavelmente tentar
compreender a sociedade em que vive. Contudo, a tragédia da burguesia
é que sua supremacia vem acompanhada pelo desenvolvimento de um
desafio a esta supremacia, a partir de sua própria incipiência, na forma do proletariado. (McDonough, 1973, p. 51)

O proletariado, por outro lado, ainda que limitado pelas condições históricas específicas, carregaria em sua auto-reflexão a noção
de totalidade, na medida em que sua emancipação representaria a emancipação
potencial de toda a humanidade. Uma posição, portanto, a partir da qual a
reflexão e a ação podem ser desenvolvidas de maneira privilegiada. Conforme
aponta McDonough, “devido ao fato de que o proletariado é a classe mais
totalmente alienada da sociedade, ele deve abolir a si mesmo para conseguir
sua própria libertação e, assim fazendo, necessariamente liberta o resto da
humanidade. Para compreender a si mesmo, ele também deve compreender a
totalidade da sociedade” (1973, p. 53)7.

Eagleton defende que a posição lukacsiana é
“prejudicada por uma superestimação tipicamente idealista da própria
consciência” (Eagleton, 1997, p. 97). Esta perspectiva pode ser contestada,
mas o que aqui é relevante são os inegáveis avanços colocados pela
perspectiva lukacsiana, particularmente ao ir bem além da discussão sobre a
falsa consciência e sobre os mecanismos de distorção da compreensão da
realidade. Desta maneira, a ideologia seria o pensamento social
estruturalmente coagido, ou seja,

A ideologia burguesa é falsa não tanto porque distorce, inverte ou
nega o mundo material, mas porque é incapaz de ir além de certos limites
estruturais da sociedade burguesa como tal. […] A falsa consciência, assim, é
uma espécie
de pensamento que se vê frustrado e impedido por certas barreiras, antes
na sociedade que na mente, e que, portanto, apenas pela transformação da
própria sociedade poderia ser dissolvido. (Eagleton, p. 98-99).

Outro autor marxista que teve impacto decisivo na
compreensão das relações implicadas na metáfora base e superestrutura foi o
italiano Antônio Gramsci. Seguindo uma idéia que já aparece em Lênin ou mesmo em
Lukács, Gramsci reafirma a chamada autonomia relativa da política dentro da
tradição marxista. Estabelece, a partir de sua reflexão, uma teoria ampliada
do estado, em que este engloba tanto o estado no sentido restrito (a
sociedade política) quanto o que Gramsci denomina sociedade civil, que seriam
os órgãos que disseminam determinadas “visões de mundo”. Stuart Hall et alii8 apresentam
uma concepção bem ampla da perspectiva gramsciana sobre a sociedade civil:

Uma
maneira prática de se compreender sociedade civil é vê-la como um conceito
que designa a esfera intermediária que inclui aspectos da estrutura e da
superestrutura. É a área do “conjunto de organismos comumente chamados
privados”; daí o conceito incluir não apenas associações e organizações como
os partidos políticos e a imprensa, mas também a família, que combina funções
ideológicas e econômicas. Portanto, a sociedade civil, nas palavras de
Gramsci, “situa-se entre a estrutura econômica e o Estado”. É a esfera dos
interesses privados em geral.9

Segundo esta perspectiva, a luta pelo poder se daria
dentro do próprio estado, sendo que, em seu esquema explicativo, Gramsci
apresenta uma categoria que se tornaria fundamental: a “hegemonia”. Sabe-se
que, em diferentes momentos de sua obra, Gramsci atribuiu dois significados
diferentes à hegemonia: o primeiro, mais freqüente, define a hegemonia como
“a maneira com que um poder governante conquista o consentimento dos
subjugados a seu domínio” (Eagleton, 1997, p. 105); o segundo, menos
freqüente, inclui na hegemonia “o consentimento e a coerção” (idem, idem).

Logo podemos perceber que a grande contribuição da proposta gramsciana se situa na possibilidade de compreensão dos mecanismos
“ideológicos”, ou os órgãos, mecanismos e processos da sociedade civil cujo
funcionamento forma uma determinada a hegemonia; e, como conseqüência, surge
a possibilidade de se pensar nas ações, medidas ou práticas que podem ser
tomadas para que um grupo se contraponha a tal hegemonia. Quanto aos órgãos
da cidade civil, a contribuição de Gramsci foi muito fértil no campo dos
estudos pedagógicos, dos estudos relacionados às artes e dos meios de
comunicação10 .

Esta proposta, apesar de sua enorme influência, não
é isenta de críticas. Gramsci desperta amor e ódio nos que o lêem. Terry
Eagleton, por exemplo, diferentemente do que faz com outras propostas
teóricas, resolve, logo no primeiro parágrafo em que fala de Gramsci,
desqualificar a obra de tal autor. Eagleton invoca Perry Anderson para
afirmar que Gramsci “erra ao localizar a fonte da hegemonia apenas na
sociedade civil” (idem, p. 105). Quem se equivoca aqui é Eagleton, que tenta
desqualificar Gramsci sem ao menos apresentar uma definição de “sociedade
civil” a partir da obra gramsciana ou mostrar os diferentes significados que
tal categoria assume em tal obra. Na página seguinte, e ignorando
completamente as dificuldades que Gramsci enfrentou durante a vida11 ,
Eagleton reafirma que a obra de Gramsci possui “incoerências notáveis”.
Obviamente, as dificuldades enfrentadas na vida pessoal de um autor não
eliminam
as incoerências, descontinuidades ou contradições de sua obra,
mas, para alguém que se propõe a apresentar um debate sistemático sobre a
história do conceito de ideologia, apresentar a obra de Gramsci sem
contextualizá-la adequadamente é um erro notável.

Outro autor que, seguindo a mesma tradição, retoma o conceito de ideologia, apresentando novos elementos, é o marxista
estruturalista francês Louis Althusser. McLennan et ali (1973, p. 101-137)
identificam 3 momentos principais na obra de Althusser:

O
primeiro momento é a obra A Favor de Marx (idem, p. 108-111). O primeiro
elemento relevante que a obra apresenta é a própria definição de ideologia,
que remeteria ao tecido que permeia toda a vida social (uma formulação que
permanece o ensaio sobre
os AIE). A superestrutura ideológica aparece como sendo um dos três níveis de
formação social, junto com a superestrutura política e a base econômica. Esta
formulação é importante, na medida em que retoma a discussão sobre
determinação (segundo a perspectiva determinista, uma das vertentes clássicas
da tradição marxista, a superestrutura seria mero “reflexo” da base, que
determinaria o curso dos acontecimentos). Segundo o argumento althusseriano,
os níveis teriam sua independência própria, ou seja, uma transformação em um
determinado nível de fato gera, dialeticamente, respostas (transformações)
nos outros níveis. O fato de que, na metáfora base-estrutura, a base gera a
determinação em última instância, não impede a autonomia relativa dos outros
níveis. Segundo este argumento, seria possível constar que “existe uma
relação necessária entre ideologia e transformações históricas” (idem,      
110). Outra
questão relevante neste momento da obra de Althusser é a relação entre a
realidade e a ideologia. Neste momento, aparece pela primeira vez o argumento
de que “relações ideológicas ocultam, ou representam mal, relações reais,
embora ao mesmo tempo designem uma relação vivida e portanto real” (idem, p.
111). É um argumento que vai ser retomado mais à frente no texto.

O segundo momento seria referente à obra “Ler o Capital” (idem, p. 112-118). Neste livro, os argumentos pertinentes seriam
relacionados à oposição entre ciência e ideologia. Na obra de Althusser, uma
“distinção rigorosa entre “ciência” e “ideologia” (Eagleton, 1997, p. 125).
Segundo esta perspectiva, a ciência se referiria ao plano da reflexão
teórica, enquanto a ideologia remeteria à esfera das relações vividas.

O
terceiro momento da obra seria justamente o clássico ensaio Aparelhos
ideológicos de estado. Nele, Althusser apresenta duas teses fundamentais para
a compreensão de sua concepção de ideologia. Tese 1: “A ideologia representa
a relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de existência”
(Althusser, 1985, p. 85). Tese 2: “A ideologia tem uma existência material”
(idem, p. 88). Portanto, vê-se que, para Althusser, a ideologia remete à
experiência do indivíduo, que, numa dada situação real, a partir de condições
materiais reais, a partir de experiências e relações vividas de fato,
necessariamente elabora idéias deformadas sobre o funcionamento da realidade.
Assim, ideologia remeteria às “relações vivenciadas”, que obviamente não
podem ser falsas, e têm sua materialidade na medida em que refletem os efeitos
da posição em que o indivíduo estabelece suas relações com a realidade.

Viu-se,
portanto, a dificuldade de lidar com o conceito de ideologia. Apresentamos
quatro concepções principais, as de Marx, Lukács, Gramsci e Althusser, cada
uma com seus respectivos elementos. A utilização do conceito, porém, não se
restringe a tais concepções. Por exemplo: Terry Eagleton, em sua reflexão
sistemática sobre o conceito, inicia a discussão com a apresentação de 16
concepções diferentes sobre a ideologia, segundo ele, escolhidas de forma
mais ou menos aleatória (Eagleton, 1997, p. 15).

Entre as
concepções apresentadas, a primeira grande dicotomia que podemos perceber é
entre as concepções neutras e as críticas ou negativas do termo. As concepções críticas são aquelas que remetem ao pensamento deformado, à falsa consciência, à ilusão, à mistificação, à reificação
do pensamento. “A ideologia, como o mau hálito, é, neste sentido, algo que a
outra pessoa tem” (idem, p. 16).

Em
seguida, para avançar na compreensão do conceito, Eagleton propõe um modelo
analítico muito sério: uma hipotética conversa de bar. Se, em um bar, alguém
interpelar um interlocutor denominando-o ideológico, a que ele estará se
referindo? Para Eagleton, neste contexto, chamar alguém de ideológico
certamente é afirmar “que se está avaliando uma determinada questão segundo uma
estrutura rígida de idéias preconcebidas que distorce a compreensão” (idem,
p. 17). A idéia é que o pensamento ideológico seria aquele submetido a um
filtro, um sistema externo e rígido de idéias que distorceria o pensamento e
a ação. Haveria duas refutações possíveis a esta concepção de ideologia. A
primeira é que “não existe tal coisa como pensamento livre de pressupostos”
(idem, p. 17). Necessariamente, estamos imersos em contextos sociais, a
partir dos quais formulamos a nossa visão de mundo. A segunda diz que “nem
todo conjunto rígido de idéias é ideológico” (idem, p. 18). O fato de eu, ao
chegar ao trabalho, ter um conjunto bem rígido de idéias sobre quais botões
do elevador devo apertar para chegar ao destino não necessariamente torna
minhas idéias ideológicas. As mesmas idéias se tornariam ideológicas, porém,
se eu pensasse que, apertando o botão correto do elevador, estaria
fortalecendo minhas possibilidades de ser um bom funcionário e subir na vida
pelo duro esforço e competência própria, sendo capaz de vencer na vida, ao
contrário dos desempregados, preguiçosos que sequer sabem apertar botões de
elevador. A partir de um raciocínio semelhante, Eagleton conclui que, para
ser ideológico, não basta um conjunto rígido de idéias: é necessário que tais
idéias façam referência a formas de poder ou dominação.

Porém, são possíveis dezenas de formas de referência a questões de poder. Que tipo de referência faz com que determinadas
concepções sejam ideológicas? Possivelmente a resposta mais comum a esta
pergunta é a que encontramos na obra de John Thompson, para quem a ideologia
significa os modos pelos quais as significações sociais são usadas para
manter um poder dominante (Thompson, 1995). A partir de tal perspectiva,
Thompson apresenta os cinco modos principais pelos quais, em sua concepção, a
ideologia operaria: a legitimação, dissimulação, unificação, fragmentação e
reificação (idem, p. 81-89). Obviamente, a maior limitação desta concepção é
que ela automaticamente exclui todas as formas de crença ou ação que não
estão ligadas a um poder dominante. Por exemplo, o feminismo e o socialismo,
que tradicionalmente são associados à idéia de ideologia, estariam excluídos.
Não se pode, porém, ampliar excessivamente o termo. Pois, se dissermos que
tudo é ideologia, o poder de análise que o
termo tem se perde completamente. Além disso, não se trata de afirmar que a
concepção mais ampla ou a mais restrita estão certas. Ambas são concepções
válidas, ligadas a tradições diferentes, e que podem ser úteis em diferentes
contextos.

Onde
reside, então, a força do termo “ideologia”? Para Eagleton, tal força está
“em sua capacidade de distinguir entre as lutas de poder que são até certo
ponto centrais a toda uma forma de vida social e aquelas que não o são”
(Eagleton, 1997, p. 21). De fato, em diferentes disputas, o termo ideologia
só tem significado quando é associado a disputas amplas que se referem a
concepções sobre as formas de organização social e suas justificações.

Outro
elemento significativo para o debate, e que neste trabalho tentamos
identificar, é que a ideologia não é inerente à linguagem em si, e sim aos
contextos em que ela é produzida. Desta forma, uma mesma frase pode ser
ideológica ou não, dependendo do contexto. “A ideologia tem mais a ver com a
questão de quem está falando o quê, com quem e com que finalidade do que com as propriedades lingüísticas inerentes de um pronunciamento” (idem, p. 22). É por
isto que, para melhor compreender a(s) ideologia(s) sobre o mundo do trabalho
associada(s), é necessário compreender os elementos relativos às
transformações recentes do mundo do trabalho.

Seja
qual for o ângulo que se olhe, porém, a ideologia necessariamente tem um lado
real. No mínimo, é necessário dizer que a ideologia codifica desejos e
necessidades reais. Se não tivesse nenhuma ligação com o mundo real, não
serviria para codificar o dia a dia de milhões de pessoas. Provavelmente,
seria pouco razoável afirmar que as pessoas agem de modo errático e
aleatório. Portanto, mesmo que a ideologia contenha distorções ou desvios
sobre o funcionamento, estes desvios codificam necessidades reais, e têm uma
ligação real com o mundo, no mínimo de maneira a garantir que as práticas
concretas de bilhões de pessoas e sua interação com o mundo sejam razoáveis.
Além do mais, a ideologia muitas vezes codifica idéias que são absolutamente
verdadeiras.

Um exemplo pertinente:

Imagine
um porta voz da diretoria anunciando que “se a greve continuar, as pessoas
irão morrer nas ruas por falta de ambulâncias”. Isso pode ser verdadeiro, ao
contrário do que afirmar que eles irão morrer de tédio por falta de jornais;
mas um operário grevista poderia, não obstante, considerar o porta­voz uma
pessoa desonesta, já que o valor da observação é, provavelmente, “voltem ao
trabalho”, e não há razão para supor que isso, dadas as circunstâncias, seja
a coisa mais sensata a se fazer. (idem, p. 27-28)

O trecho
acima exemplifica de maneira magistral um dos mecanismos da ideologia: a
legitimação de interesses em uma luta. Neste caso, em seu conteúdo empírico,
o enunciado ideológico não é falso; porém, ele oculta outros aspectos da
realidade e legitima diferentes interesses relacionados à contenda em questão.
De maneira análoga, uma reportagem poderia afirmar que a economia cresceu e
tantos empregos foram gerados, o que pode até ser verdadeiro, mas que oculta os mecanismos reais da economia e outras possibilidades de
organização social.

Outro
argumento que retoma o argumento da falsa consciência é a idéia de que a
falsa consciência pode assumir uma forma funcional. Segundo esta concepção,
“falsa consciência pode significar não que um conjunto de idéias seja
realmente inverídico, mas que essas idéias são funcionais para a manutenção
de um poder opressivo, e que aqueles que as defendem ignoram este fato”
(idem, p. 35). Obviamente, a forma epistêmica pode ocorrer ao mesmo tempo que
a forma funcional.

Fizemos
aqui uma breve recuperação do conceito de ideologia. Discutimos a origem do
termo, as contribuições de quatro diferentes autores marxistas e, em seguida,
discutimos alguns dos principais argumentos relacionados à história do
conceito. Terry Eagleton termina o primeiro capítulo de seu livro afirmando
que, de maneira geral, é possível definir ideologia de seis maneiras
diferentes:

A primeira
maneira seria entender a ideologia como “o processo material geral de
produção de idéias, crenças e valores na vida social” (idem, p. 38). Esta
idéia pode ser dita neutra, tanto politicamente como epistemologicamente.
Assim, trata-se de uma concepção que se cala sobre elementos essenciais: nada
dispõe sobre a questão dos interesses em conflito ou sobre as lutas
associadas ao poder político.

A
segunda maneira refere-se a “idéias e crenças (verdadeiras ou falsas) que
simbolizam as condições e experiências de um grupo ou classe específico,
socialmente significativo” (idem, p. 39). Neste caso, a concepção ainda é
neutra e se aproxima da idéia de visão de mundo.

Já que a
maneira acima exposta se cala sobre a questão dos interesses em conflito,
cabe uma terceira maneira, segundo a qual a ideologia diz respeito à “promoção e legitimação dos interesses de tais grupos sociais em face de interesses opostos” (idem, p. 39).

A quarta concepção “conservaria a
ênfase na promoção e legitimação de interesses setoriais, restringindo-a,
porém, às atividades de um poder social dominante” (idem, p. 39). Desta
maneira, a utilização do conceito seria necessariamente crítica, já que
necessariamente estaria denunciando uma forma de dominação. Como esta
concepção ainda é epistemologicamente neutra, a quinta maneira seria idêntica
à quarta, com o acréscimo de que o ocorrido se daria pelo uso “sobretudo da
distorção e dissimulação” (idem, p. 39). O sexto e último significado
remeteria à falsa consciência ampla, gerada não dos interesses de um poder
dominante, e sim de estruturas sociais amplas.

Na verdade, as disputas que
concepções sociais ideologia só tem significado quando é associado a disputas
amplas que se referem a concepções sobre as formas de organização social e
suas justificações.

Estão além do escopo desta
monografia as especulações sobre os processos exatos de internacionalização
das ideologias e seus respectivos mecanismos internos de funcionamento na
consciência humana. Parte-se do pressuposto, que serve como hipótese geral,
que a ideologia dominante promove efeitos dissimuladores e mistificadores que
distorcem a compreensão da realidade social das pessoas.

Notas

*A numeração das notas refere-se a publicação original da monografia. (N. do E.)

3 Para uma descrição mais detalhada deste processo,
ver, por exemplo, Chaui, 2003, p.25-28; Thompson, 2002, p. 44-49; e Eagleton,
1997, p. 67-71. Para uma discussão do conceito de ideologia dentro da
sociologia do conhecimento, de Destutt de Tracy a Bourdieu, ver Hall, 1983,
p. 15-44.
4 Para uma descrição detalhada da teoria da alienação
em Marx, ver nota de rodapé número 9.
5 Sobre as outras influências de Lukács, Cf.
McDonough, 1983, especialmente p. 45-47.
6 Ver também McDonough, 1973, p. 49-50, e Löwy, 1994,
p. 128)
7 Sobre a relação da ideologia com as
classes burguesa e proletária, ver Eagleton, 1997, p. 90 a 100, e Löwy, 1994,
p. 129-132.
8 1973. Ver especialmente as páginas 60-73. O trecho
supracitado está na página 63.
9 Neste trecho específico, presumo que a referência ao
Estado seja à chamada sociedade política ou estado em sentido restrito.
10 Para uma exposição sistemática e
resumida dos principais conceitos de Gramsci, ver, por exemplo, Guimarães,
1998, p. 141-167. O livro em questão é uma tese de doutorado que se propõe a
lutar contra tanto os argumentos liberais como os argumentos do marxismo
economicista/determinista; em parte, é uma defesa da perspectiva gramsciana,
a concepção praxiológica da História. Ainda sobre o conceito de ideologia em
Grasmci, ver Löwy, 1994, p. 134-138.
11 Notadamente a prisão a que foi
submetido durante o regime fascista italiano, na qual elaborou a maior parte
de sua produção teórica.

 

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