JAMES RUSSELL LOWELL (1819 – 1891)
ABRAHAM LINCOLN
MUITAS crises dolorosas têm havido desde que a vaidade insopitável da Carolina do Sul instigou dez prósperas comunidades a um crime cuja recompensa final era ficarem à mercê da nação que tinham desmantelado ou ao alvedrio da anarquia que provocaram e não puderam controlar, quando já nenhum americano de senso abria seu jornal matutino sem o pavor de concluir que não mais possuía uma pátria para amar e para honrar. Qualquer que fosse o resultado da convulsão cujos primeiros embates se começavam a sentir, ainda haveria suficientes milhas quadradas de terra onde trabalhar; mas o inefável sentimento, composto de memória e esperança, de instinto e tradição, que enche o coração de todos os homens e informa seu pensamento, embora talvez nunca presente à sua consciência, se desgarraria, deixando-lhe a terra comum e nada mais. Dela, os homens poderiam colher frutos opi-mos, mas a safra ideal de preciosas reuniões, essa não se repetiria mais; aquela bela virtude que esgotou mensagens de coragem e segurança, oriundas de cada um de seus componentes, ter-se-ia extinguido irremediavelmente e sem deixar vestígio. Sentir-nos-íamos inexoravelmente desligados do passado e forçados a unir os destroços de nossas vidas a qualquer nova condição que um promissor acaso deixasse ainda a nos acenar.
Confessamos que tínhamos nossas dúvidas, a princípio, sobre se o patriotismo de nosso povo não seria demasiadamente provincial para abarcar as proporções do risco nacional. Sentíamos apenas uma desconfiança muito natural nas associações de público muito numeroso e nas expansões de entusiasmo.
Que uma reacção devesse seguir-se ao solene entusiasmo com que se entrou em guerra, que esta reacção se ciaria logo, e que o afrouxamento do espírito público seria proporcional à anterior hipertensão, era de fácil previsão por todos que tinham estudado a natureza humana, ou a história. Os homens, em multidões, são sempre pelos extremos. Assim como são num momento capazes de coragem indómita, assim também são passíveis, no próximo instante, da depressão mais vil, sendo sempre obra aleatória a colectividade desdobrar-se em confiança ou em descoroçoamento. A fraude não induz mais à desmoralização dos homens do que o auto-ludíbrio à dúvida dos princípios. A única fé que possui e mantém sua cor em qualquer conjuntura é a que é tecida de convicção e estabelecida com a marca indelével da experiência. O entusiasmo é um bom atributo para o orador, mas o estadista necessita de algo mais duradouro com que servir-se — deve poder contar com o raciocínio deliberado e consequente firmeza do povo, sem o que aquela presença de espírito não menos essencial em tempos de perigo de ordem moral do que de ordem material, faltará no momento preciso. O fervor dos Estados Livres seria consistente de facto? Teria sido embalado por um sentimento justo do valor da liberdade constitucional? Teria ele estrutura suficiente para resistir às vicissitudes das reacções, dos reveses e delongas? Teria a nossa população inteligência bastante para compreender que a escolha era entre a ordem e a anarquia, entre o equilíbrio de um governo legal e a contundência ilegal do pronunciamento? Poderia uma guerra manter-se sem o estímulo usual do ódio e da pilhagem e com a lealdade impessoal de princípios? Estas eram indagações sérias e sem um precedente para auxiliar-lhes na resposta.
No começo da guerra houve, com efeito, oportunidade para a mais justificada apreensão. Um presidente que se sabia inoculado da heresia política e suspeito de simpatia pela traição com os conspiradores sulistas, apenas acabara de passar as rédeas, não diremos do poder, mas do caos, a um sucessor conhecido apenas como o representante de um partido cujos líderes, com longo treino de oposição, não apresentavam nenhum tirocínio para a direcção da coisa pública; um tesouro vazio fora solicitado a fornecer recursos sem precedentes na história das finanças; as árvores e o ferro com que se devia construir e equipar a armada ainda floresciam e jazia no seio das minas; a oficiais pouco adestrados ia caber a gigantesca tarefa de transformar num exército uma turba aguerrida; e, sobretudo, a opinião pública europeia, coadjuvada e reforçada por muitas insinuações vagas e argumentos tendenciosos de derrotismo duma facção interna poderosa, era, ou arrogantemente céptica ou activamente hostil. Seria difícil sobreestimar a força deste último elemento de desintegração e descoroçoamento entre uma nação cuja totalidade dos cidadãos e dos soldados, nos campos de batalha, são leitores de jornais. Os boateiros do Norte eram os aliados mais eficientes da rebelião. Uma nação não pode ser vítima de traição mais insidiosa do que a dos telégrafos, que expedem de hora em hora o seu agui-lhão eléctrico de pânico aos mais remotos nervos da comunidade, até que a imaginação excitada torne cada perigo real equiparado ao seu duplo irreal.
E mesmo que olhemos apenas para dificuldades mais palpáveis, era tão imenso o problema a ser resolvido pela nossa guerra civil, não só em suas relações imediatas mas em suas consequências futuras; as condições de sua solução eram tão intrincadas e tão poderosamente dependentes de contingências incalculáveis e incontroláveis; tantos elementos, ora de esperança, ora de medo, eram, pelo seu ineditismo, incapazes de filiação a qualquer das categorias de precedentes históricos — que havia momentos de crise em que os mais firmes crentes na força e na suficiência da teoria democrática de governo podiam bem suspender a respiração, por vaga apreensão de desastre. Nossos professores de filosofia política, argumentando solenemente com o precedente de alguma pequena cidade grega, italiana ou flamenga, cujos longos períodos de aristocracia por vezes se alternavam com parênteses de governos claudicantes de insurrectos, sempre nos ensinaram que as democracias eram incapazes do sentimento de lealdade, de esforço concentrado e prolongado, de concepções de longo alcance; que eram absorvidas por interesses materiais e impacientes às limitações normais e, muito mais ainda, às excepcionais; que não possuíam núcleos naturais de gravitação nem quaisquer outras forças além da centrífuga; que estavam sempre à beira da guerra civil e atiradas finalmente no natural albergue do governo popular, um despotismo militar falido. Este era, com efeito, um panorama melancólico para as pessoas que conheciam a democracia, não por se acotovelar com ela toda uma vida, mas pela leitura de livros; a América, apenas por informação de algum britânico leviano que aqui jantou mal ou perdeu seu saco de viagem e que escrevera ao Times pedindo reparação e tirando uma dolorosa inferência da instabilidade democrática, sofreu uma injustiça. Entre nós não se encontravam homens que de tal modo se houvessem imbuído da literatura de Londres que discernissem entre londrinismo e cultura europeia, e o escárnio de suas próprias cidades pela largueza de vistas cosmopolita e que, devendo à democracia tudo o que possuíam e tudo que eram, julgassem-na detentora de ares aristocráticos.
Mas, paralelamente às influências desagregadoras que podiam afectar os tímidos ou os desanimados, havia fortes razões de profunda gravidade que desaconselhavam excesso de optimismo ou de esperança. Uma guerra que — seja pela consideração do território em causa, pelas hostes dispostas em campo ou pelo alcance dos princípios em discussão, pode muito bem ser considerada a mais importante dos tempos modernos — devia desencadear-se entre um povo dividido internamente, relaxado por cinquenta anos de paz, sob o mando de um supremo magistrado sem tirocínio e sem reputação, cujas providências todas eram astutamente sabotadas por uma minoria despeitada e inescrupulosa, e que, ao passo que cuidava de obscuras complicações internas, tinha que suavizar uma hostil neutralidade externa que só aguardava um pretexto para tornar-se guerra. Tudo isto tinha que ser feito sem aviso e sem preparação, enquanto, simultaneamente, uma revolução social parecia inevitável nas condições políticas de quatro milhões de pessoas, atenuando as prevenções, abatendo os temores e obtendo gradualmente a cooperação de seus involuntários libertadores. Sem dúvida, se alguma vez houve ocasião para que a imaginação excitada do historiador pudesse ver o destino intervindo visivelmente nos assuntos humanos, eis aqui um nó digno de sua tesoura. Nunca, decerto, foi qualquer sistema de governo tão experimentado por forças tão contínuas e contrárias como o nosso, durante os últimos três anos; nunca nenhum se mostrou tão forte; e nunca pôde tal tenacidade ser tão justamente atribuível à virtude e inteligência do povo, a esse geral esclarecimento, a essa pronta eficiência da opinião pública, só possível sob a influência de uma estrutura política como a nossa. É-nos penoso compreender como é possível a um estrangeiro fechar os olhos à grandeza do combate de ideias que se processa aqui, à energia heróica, à persistência e auto-confiança de uma nação, provando que sabe quanto a grandeza é mais cara do que a mera força. E confessamos que nos é impossível conceber as condições mentais e morais dos Americanos que não sentem o espírito fortalecido e elevado por serem simples espectadores de tais qualidades e cometimentos; que um propósito firme e um objectivo definido foram determinados às forças em operações, as quais, no começo da guerra, consumiam-se na discussão de esquemas que só podiam tornar-se úteis, quando muito, depois de acabada a guerra; que um excitamento popular foi intensificado aos poucos e desenvolvido numa firme vontade nacional; que um sentimento moral de certo modo impossível tornou-se o instrumento inconsciente de um fim moral possível; que a traição de inimigos disfarçados, o despeito dos rivais, o excesso de zelo dos amigos, mostraram-se não só inúteis ao mal, mas até úteis ao bem; que a sensibilidade consciente da Inglaterra aos horrores dos conflitos civis foi impedida de complicar uma luta intestina com uma guerra estrangeira; — todos esses resultados, qualquer dos quais podia ser suficiente para revelar grandeza num chefe, foram poderosamente devidos ao bom senso, bom humor, à sagacidade, largueza de vistas e à generosa honestidade do homem obscuro a quem uma sorte cega, como parecia, alçara do povo para a mais perigosa e árdua eminência dos tempos modernos. É pela presença de espírito em emergências nunca antes ocorridas que a têmpera inata de um homem se evidencia; é pela sagacidade de ver e pela honestidade intimorata de admitir o que quer que seja que de verdade exista na opinião adversária, a fim de expor mais convincentemente a falácia que se esconde atrás dela, que um argumentador ganha afinal, com a simples análise de um facto, a verdadeira força do argumento; é por meio de uma sábia previsão, que permite às alianças hostis caminharem até os limites da reacção inevitável e torná-las elementos de sua força, que um político prova seu génio de estadista; e, em especial, é por orientar tão suavemente o sentimento público, que ele parece segui-lo, cedendo em pontos duvidosos para que possa ficar irredutível nos pontos essenciais, sem parecer obstinado, ganhando, assim, as vantagens das tolerâncias sem a fraqueza da concessão; pela compreensão instintiva das paixões e dos preconceitos de um povo, de modo que lhe possa inculcar gradativamente a sabedoria superior e consciente da sua independência de paixões e preconceitos — é por qualidades tais que um magistrado se revela digno de ser chefe de uma comunidade de homens livres. E é por qualidades tais que acreditamos firmemente que a história há-de situar Mr. Lincoln entre os estadistas mais prudentes e os chefes de maior êxito. Se desejarmos apreciá-lo, basta que concebamos o inevitável caos em que estaríamos submersos se um fraco ou um insensato fosse escolhido em lugar dele.
"Nu está o lombo" — afirma o provérbio nórdico — "sem irmão atrás de si"; e isto é verdadeiro, por analogia, com uma magistratura electiva. O governo hereditário pode, numa conjuntura, recorrer aos inesgotáveis recursos do prestigio, do sentimento, da superstição, do interesse subalterno, ao passo que o governo democrático deve lenta e penosamente retirar tudo isso do material inepto existente em torno de si, com superioridade de carácter, com paciente simplicidade de propósitos, com sagaz pressentimento das tendências populares e simpatia instintiva pelo carácter nacional. A tarefa de Mr. Lincoln era de dificuldade especial e excepcional. Velho hábito acostumara o povo americano à noção de um partido no poder e de um presidente como sua criação e órgão, ao passo que o facto mais vital de que o executivo, nos presentes tempos representa a ideia abstracta de governo como um princípio permanente, acima de todos os partidos e todos os interesses particulares, tinha-se aos poucos tornado desconhecido. Tinham visto por tanto tempo a coisa pública mais ou menos orientada no sentido partidário e até muitas vezes no sentido de vantagens pessoais que estavam despreparados para suspeitar dos motivos de um primeiro magistrado compelido, pela primeira vez em nossa história, a sentir-se a cabeça e as mãos de uma grande nação, e a agir sobre o lema fundamental, abandonado por todos os publicistas, de que o primeiro dever de um governo é defender e manter a sua própria existência. Em consonância, uma arma poderosa parecia ter sido colocada nas mãos da oposição pela necessidade que sentiu a administração de empregar esta velha verdade nos novos cometimentos. E não eram os membros da oposição seus únicos nem seus mais perigosos oponentes.
Os republicanos tinham conduzido o país a um ponto em que a ética imiscuía-se mais directa e visivelmente com a política do que de costume. Seus líderes estavam treinados num método de oratória para cujo efeito contavam antes com o sentimento moral do que com o entendimento. Seus argumentos eram vazados menos na experiência do que nos princípios gerais do justo e do injusto. Com o advento da guerra, continuaram a aplicar seu sistema, com proveito, pois restaurou-se aqui mais uma vez a oportunidade de falar-se à razão do povo, através dos seus sentimentos. Era um daqueles períodos de excitação, mobilização, solidariedade e universalidade que, enquanto duram, exaltam e esclarecem os espíritos dos homens, dando às simples palavras pátria, direitos do homem, democracia um significado e uma força mais amplos que o de argumentos sóbrios e lógicos. Eram convicções mantidas e defendidas pela suprema lógica da paixão. Aquele fogo penetrante internou-se e despertou os instintos primários que fazem seu covil nas grutas e cavernas da mente. Despertou aquilo a que chamamos o grande coração popular, esse algo indefinível que pode ser, de acordo com as circunstâncias, a razão mais alta ou a loucura mais desenfreada. Mas o entusiasmo, uma vez arrefecido, jamais poderá ser restabelecido em coisa melhor do que hipocrisia — e as frases, quando já não dispõem da inspiração que outrora as enchia de uma força benéfica, apenas guardam a aparência de significação que as possibilita suplantar a razão apenas nos espíritos mais levianos. Dentre os ensinamentos da Revolução Francesa nenhum existe mais triste ou mais chocante do que o de que se pode deduzir tudo o mais das paixões humanas, excepto um sistema político que funcione e que nada existe tão supina e desalmadamente cruel como a sinceridade formulada em dogma. É sempre desmoralizante estender-se o domínio do sentimento a questões sobre que não possui jurisdição legítima; e talvez a mais rija tenacidade de Mr. Lincoln residisse na resistência a uma tendência dos seus próprios correligionários e que, aliás, se harmonizasse com os seus desejos de cidadão, mas que fosse inteiramente oposta a suas convicções do que seria política prudente.
A mudança que três anos produziram é por demais profunda para que não se lhe dê o devido destaque e muito ponderável em suas lições para que não a gravemos indelevelmente. Nunca um presidentte iniciou o seu mandato com tão escassos meios a seu serviço como Mr. Lincoln, tirantes a fortaleza de coração e a pujança de compreensão, para inspirar confiança ao povo e, assim, conquistá-lo. Tudo que dele se sabia era que se revelara um orador político, indicado pela sua capacidade — exactamente porque ele não tinha passado político — e escolhido por um partido cujas opiniões mais esclarecidas não lhe eram favoráveis. Natural se temesse que um homem de mais de cinquenta anos contra o qual a solércia de correligionários hostis nada podia engendrar, deixasse a desejar em firmeza de carácter, em determinação de princípios, em força de vontade; que um homem que, quando muito, era o representante de um partido e que, a rigor, nem esse ainda havia representado, carecesse da obtenção de apoio político, mais ainda que do popular. E, sem dúvida, ninguém jamais iniciou um governo com tão poucos recursos de forças do passado e com tantos factores de fraqueza do presente como Mr. Lincoln. Até naquela metade da União que o reconhecia como presidente existia uma minoria considerável e ao mesmo tempo perigosa que só com relutância admitia seu direito ao cargo e até no partido que o elegeu também havia uma grande minoria que suspeitava fosse ele correspondente secreto da igreja de Laudiceia. Por tudo que fizesse, seria inevitavelmente atacado com virulência por um lado, como excessivo; por tudo que deixasse de fazer, seria estigmatizado como prova de frouxidão e recuo, pelo outro lado. No entretanto, ele tinha que conduzir uma guerra verdadeiramente colossal através de ambos; tinha que desobrigar o país de complicações diplomáticas, de perigos sem precedentes e para os quais concorria o auxílio ou o obstáculo de qualquer dos dois grupos, e colher das aflições críticas da sua administração, com a confiança do povo, os meios de sua própria segurança e da deste. Ele determinou-se assim proceder, e talvez nenhum dos nossos presidentes, desde Washington, tão bem se firmou na confiança do povo quanto Mr. Lincoln, ao cabo de três anos de uma administração tumultuada.
Sua política era de tentativa e tinha razão de sê-lo. Não elaborara programa eme o obrigasse a ser volúvel ou insensato, nenhum teorema rígido, ao qual as circunstâncias ocorrentes se amoldassem, ou fosse inútil aos seus fins. Parecia ter escolhido o motto de Mazarin, le temps et moi. O moi, com efeito, não foi muito proeminente a princípio; mas desenvolveu-se num crescendo constante até que começou a persuadir o mundo de que constituía um carácter dc marcante individualidade e capacidade de trabalho. O tempo foi o seu primeiro-ministro e, principiámos a suspeitar certa época, também seu general-em-chefe. A princípio era tão lento que impacientava a todos os que não vislumbravam actividade a não ser a material, a directa, a todo o vapor, como uma locomotiva; depois era tão veloz que tornava exaustos os que julgam que não há marcha segura enquanto houver uma fagulha na grelha. Deus é o único ser que dispõe de tempo bastante; mas um homem prudente, que sabe agarrar a oportunidade, pode comumente, pelas próprias mãos, arranjar tudo o de que necessitar. Mr. Lincoln, segundo nos parece, ao examinar sua carreira, embora tenhamos às vezes pensado de modo diverso quando movidos de impaciência, sempre esperou, como o faria um homem sensato, até que o momento exacto trouxesse todas as suas reservas. Semper nocuit differe paratis, eis um axioma salutar, mas o homem realmente eficiente saberá infalivelmente quando não estiver preparado e será irredutível contra toda persuasão e crítica até que o esteja.
Seria lícito julgar-se, pelo exame das críticas ao governo de Mr. Lincoln, feitas por aqueles que com ele concordam em princípios, que o objectivo precípuo de um estadista devera ser antes proclamar sua adesão a certas doutrinas do que mesmo adoptar os ditames delas, empregando-os em silêncio no programa de governo que se traçou. Em nossa opinião, não existe político mais inseguro do que um doutrinário conscientemente intransigente e nada existe mais certo de acabar em desastre do que um esquema teórico de política que não admita complacência às contingências. Em verdade, há uma imagem popular de um Ele impossível em cujas mãos plásticas os ténues destinos da humanidade se tornam cera e a cuja inflexibilidade de comando os factos mais tenazes se derretem com a graciosa docilidade da ficção; mas, na vida real, descobrimos comumente que os homens que controlam as circunstâncias são exactamente os que aprenderam a aceitar a influência de suas derivações e que têm a calma suficiente para contemporizá-las até o momento azado em que podem influir. A tarefa arriscada de Mr. Lincoln consistiu em conduzir uma balsa muito frágil através de um violentíssimo caudal, ao mesmo tempo que lutava por amarrar bem apertadas entre si, sempre que surgia uma oportunidade, as toras que a compunham, e devemo-nos congratular com o país por não ter o Presidente considerado seu dever perseguir todas as aventuras, mas antes manter-se cautelosamente com o seu leme onde se encontrava a principal corrente e aí perseverar com fé. Ainda se encontra na água encapelada, mas confiamos em que sua habilidade e firmeza de vistas o farão emergir vitorioso finalmente.
Poder-se-ia traçar um curioso e, cremos, não despropositado paralelo entre Mr. Lincoln e uma das figuras mais emocionantes da história moderna — Henrique IV, da França. A carreira deste último pode ser mais pitoresca, como sempre sói ser a de um ousado capitão; mas em todas as suas vicissitudes, nada existe mais romântico do que essa súbita mudança, como que obra da lâmpada mágica de Aladino, do escritório de advocacia numa cidadezinha de Illinois à vanguarda de uma grande nação, em tempos como estes. A analogia entre os caracteres e circunstâncias dos dois homens é em muitos respeitos singularmente próxima. Sucedendo antes a uma rebelião que a uma coroa, a principal dependência material de Henrique era o partido dos huguenotes cujas doutrinas, para os mais fanáticos dentre eles, não se ajustavam à personalidade de Henrique. Rei apenas nominalmente, para a maior parte da França, tendo a Capital em guerra contra ele, tornou-se evidente pouco a pouco aos mais esclarecidos e, dentre estes, o partido católico, que ele era o único centro de ordem e de autoridade legítima, em torno de quem a França poderia reorganizar-se. Enquanto que o clero, que sustentava o direito divino dos reis, fazia vibrar as igrejas de Paris com as declamações em favor da democracia antes da submissão ao cão herético de um Béarnois — semelhante ao que aconteceu aos nossos soi -disant democratas que ultimamente pregaram o direito di vino da escravidão e denunciaram as heresias da Declaração de Independência — Henrique teve ambos os partidos em mãos até convencer-se de que só uma directriz de acção po deria combinar os seus próprios interesses com os da França, No entretanto, os protestantes tinham suas dúvidas de que ele lhes pertencia, os católicos tinham esperanças vagas de que ele viesse a pertencer-lhes e o próprio Henrique repelia as recriminações, advertências e bisbilhotices com uma pilhéria ou um provérbio (quando ligeiramente "alto", apre-ciava-as ainda mais), sempre jovial, segundo seus hábitos. Temos visto Mr. Lincoln comparado, por desprezo, a Sancho Pança, por pessoas incapazes de apreciar uma das peças de mais profunda sabedoria do romance mais eminente jamais escrito; enquanto Don Quixote era incomparável em estado teórico e ideal, Sancho, com sua colecção de provérbios, o capital da experiência humana, fez o melhor governo praticamente possível. Henrique IV era tão cheio de pontos de vista sensatos e tão conhecedor da evolução política como Mr. Lincoln, mas sob tudo isto estava o homem grave, pensador, prático e humano, em torno de quem deviam reunir–se os fragmentos de França, até que esta se tornasse novamente um planeta de primeira grandeza no sistema europeu. Num ponto, Mr. Lincoln teve mais sorte do que Henrique. Conquanto alguns possam julgá-lo carecedor de zelo, os mais fanáticos não podem achar a mais leve sombra de apostasia em qualquer das suas atitudes, nem podem os mais ferrenhos acusá-lo de ser movido por motivos de interesse pessoal. A principal distinção entre as políticas dos dois são as circunstâncias. Henrique foi ter à nação; Mr. Lincoln puxou firmemente a nação até ele. Um deixou uma França unida; o outro, esperamos e cremos, deixará uma América reunida. Deixamos aos leitores traçar por si próprios os demais pontos de diferença e semelhança, tendo-nos limitado a sugerir uma similaridade geral que sempre nos ocorreu. Um único ponto de interesse secundário ainda nos permitiremos abordar. Que Mr. Lincoln não c bonito nem elegante sabemos por alguns turistas ingleses que considerariam semelhante revelação com respeito à Rainha Vitória, como perfeitos americanos na sua falta de bienséance. É assunto que não nos diz respeito e, de resto, não afecta a sua aptidão para o alto cargo que tão dignamente ocupa; mas no que tange à simpatia pessoal, é tão afortunado quanto Henrique, se é que devemos confiar no testemunho dos contemporâneos. Mr. Lincoln tem sido também acusado de americanismo por alguns críticos britânicos não inimigos; mas, com toda deferência, não podemos dizer que o apreciamos menos por causa disto, ou que vemos nisso qualquer razão para que governe os Americanos com menos prudência.
O povo de organizações menos sensíveis pode não compreender, mas muito folgamos que nesta nossa verdadeira guerra de independência, que deve libertar-nos para sempre do Velho Mundo, tenhamos tido à frente dos nossos destinos um homem que a América fez, assim como Deus fez Adão, do próprio barro, sem genitores, sem privilégios, desconhecido, para mostrar-nos quanto de verdade, quanto de magnanimidade e quanto de estadismo aguarda a presença da oportunidade no homem simples quando acredita na justiça de Deus e na dignidade do homem. Os convencionalismos ficam muito bem em seus lugares, mas encolhem à presença da natureza como borracha no fogo. O génio que governa uma nação com a sua vontade discricionária parece-nos menos augusto a nós do que o que se multiplica e reforça nos instintos e convicções de um povo inteiro. A autocracia pode possuir em si algo mais melodramático do que isto, mas padece muito mais de valor e interesse humanos.
A experiência devia ter-nos gerado uma desconfiança enraizada em estadistas improvisados, mesmo se formássemos ao lado dos que não aceitam a política como ciência, a qual se nem sempre pode comandar homens de aptidões especiais e grande pujança, requer pelo menos a aplicação permanente e firme das melhores reservas de tais homens, assim como pode determinar a difusão dos seus princípios básicos. É curioso que num país que se jacta da sua inteligência a teoria deva ser tão observada que o mais complicado dos projectos humanos, e um que cada dia se torna mais intrincado, possa ser desempenhado à vista por qualquer homem capaz de falar durante uma ou duas horas sem parar para pensar.
Mr. Lincoln é às vezes citado como um exemplo de um chefe pré-fabricado. Mas nada menos adequado, pois, além de ter sido um homem de tal largueza de vistas que sempre constitui a matéria-prima da sabedoria, tinha na sua profissão um treino precisamente oposto ao que se sujeita um partidário. Sua experiência como advogado obrigou-o não só a ver que existe um princípio no substractum de todos os fenómenos que interessam as actividades humanas, mas que cada questão apresenta sempre dois lados, ambos plenamente auscultados a fim de serem entendidos e que é de maior vantagem para um advogado apreciar a força do que a fraqueza da posição do antagonista. Nada mais notável do que o tacto irretorquível com que, em seu debate com Mr. Douglas, foi directo à razão da questão; nem jamais ouvimos lição mais emocionante em táctica política do que o facto de que, antagonista de um homem excepcionalmente hábil no manejo dos sentimentos e fanatismos populares, em favor de sua tese, excepcionalmente inescrupuloso no apelo aos mais ignóbeis motivos demagógicos que fazem duma assembleia de cidadãos uma irresponsável e desenfreada populaça e, ainda assim, ele teria ganho sua causa perante um júri popular. Mr. Lincoln nada tinha de político imaturo. Sua sabedoria constituiu-se do conhecimento das coisas e dos homens; sua sagacidade resultou de uma percepção clara e de reconhecimento honesto de dificuldades, o que lhe permitiu ver que o único triunfo duradouro da opinião política é baseado, não em qualquer direito abstrato, mas em muito de justiça, o mais alto anseio que se pode alcançar em qualquer momento dado das actividades humanas e que se pode obter no equilíbrio de concessões mútuas. Sem dúvida, ele tinha um ideal, mas era o ideal de um estadista prático — visar o bom e conseguir o ainda melhor, caso tenha bastante sorte para alcançar este. Sua inteligência, lenta mas singularmente máscula, ensinou-lhe que "precedente" é apenas eufemismo de experiência acumulada e que pesa ainda mais na orientação de comunidades de homens do que na da vida individual. Não era homem que considerasse boa economia pública demolir, tendo pouca oportunidade de reconstruir melhor. Sua fé em Deus era qualificada por uma descrença profunda na sabedoria humana. Talvez fosse sua falta de auto-confiança que lhe granjeou, mais que tudo, a confiança ilimitada do povo, pois este sentia que não haveria necessidade de recuo em qualquer das posições que ele deliberadamente tomara. O avanço prudente mas firme de sua política durante a guerra foi igual ao de um exército romano. Deixou atrás de si uma estrada firme sobre a qual a confiança pública podia seguir; levava a América consigo aonde quer que ele fosse; o que conquistava, ocupava e seus postos avançados tornaram-se colónias. A própria simplicidade de seu génio era sua característica. Seu reinado era respeitável pela sua franqueza quotidiana. Nenhum chefe fora tão absoluto quanto ele e nenhum tão inadvertido disso, pois que incarnava o senso comum do povo. Com toda aquela ternura de temperamento cuja doce melancolia contagiava quem o visse, da idiossincrasia peculiar, não se encontrava traço de sentimentalismo em seus discursos ou acções. Ele parece ter tido apenas uma linha de conduta, sempre a da política prática e bem sucedida, de deixar-se guiar pelos acontecimentos quando tinha certeza de que estes o levariam aonde desejava ir, em que pesasse a opinião dos espíritos menos práticos que abandonam o possível para agarrarem o desejável, decerto uma estrada mais longa.
Não há negar que a mais alta função do Estado é acomodar aos poucos a conduta das comunidades às leis da ética e subordinar os tumultuantes e imediatos interesses egoístas a planos mais altos e mais permanentes. Mas é no entendimento de uma nação, e não no sentimento dela, que toda legislação sábia deve fundar-se. A frase de Voltaire, segundo a qual "uma consideração de circunstancial de somenos é o túmulo das grandes coisas" pode ajustar-se aos homens individualmente mas nunca, certamente, aos governos. É pela abundância de tais considerações, cada uma insignificante em si, mas ponderosas no conjunto, que os arquitectos da política, e só eles, podem exaltar o que é praticável e portanto razoável. A imputação de inconstância fatalmente lhe será feita mais cedo ou mais tarde por todos os políticos esclarecidos e pensadores probos. Só os mortos e os loucos nunca mudam de opinião. O curso de um estadista lembra o dos rios navegáveis, evitando os obstáculos irremovíveis com nobres desvios de concessão, demandando os amplos níveis da opinião, nos quais os homens se detêm logo e onde permanecem por mais tempo, perqui-rindo e marcando os declives quase imperceptíveis da tendência nacional, visando sempre, no entanto, as viagens em linha recta, recrutado sempre pelas fontes mais próximas do céu e às vezes cavando atalhos para o progresso e para o eficiente comércio humano, através daquilo que parece a eterna barreira entre ambos. Constitui lealdade às grandes aspirações torná-las realidade mesmo que, para tanto, se transija com as razões mínimas da oposição. É a firme adesão a princípios sólidos do dever e da acção que sabe manobrar com a maré e nunca se deixa arrastar por esta — que exigimos dos homens públicos, e não as obstinações nas prevenções, a monotonia de política ou a persistência consciente no que é impraticável. Pois o impraticável, posto que teoricamente aceitável, é sempre impertinente politicamente, consistindo a administração equilibrada na aplicação daquela prudência aos negócios públicos, o que constitui guia mais seguro à dos cidadãos particulares.
Por certo a escravidão foi o problema mais delicado e embaraçante com que se defrontou Mr. Lincoln e de molde a que nenhum homem na sua situação, fossem quais fossem suas opiniões, pudesse desertar; pois, embora lhe fosse possível resistir ao clamor dos correligionários, ele devia, mais cedo ou mais tarde, render-se à importunação persistente das circunstâncias, que atiravam o problema contra si, a cada passo e sob as mais variadas formas.
Do exterior, lançaram-nos ao rosto uma acusação, aqui repetida por pessoas que medem seu país, antes pelo que pensam dele do que pelo que realmente é, segundo a qual a nossa guerra não tem sido clara e inequivocamente em favor da extinção da escravatura, mas antes uma guerra pela preservação da nossa pujança e grandeza nacionais, na qual a emancipação do negro foi-nos imposta pelas circunstâncias e aceita como uma necessidade. De modo algum desejamos negá-lo e até admitimos que seja igualmente verdadeiro que muito tardamos em cumprir as nossas obrigações constitucionais até em relação àqueles que nos exoneraram espontaneamente da letra dos nossos deveres. Falamos do governo que, legalmente investido para governar todo o país, foi obrigado, na medida do possível, a não transpor os limites da ordem prescrita e não podia, sem a negação da sua verdadeira essência, liderar a iniciativa de fazer da rebelião uma desculpa para a revolução. Havia, é certo, muitas pessoas ardentes e sinceras que pareciam julgar tão simples fazer isto como empenhar-se numa contradança vir-giniana. Esqueciam o que de modo algum devia ser esquecido num sistema como o nosso, que a administração de então representa não apenas a maioria que a elege, mas igualmente a minoria — neste caso, uma minoria poderosa e tão pouco disposta à emancipação que até à guerra se opôs. Mr. Lincoln não tinha sido escolhido como um representante geral de uma sociedade anti-escravocrata, mas presidente dos Estados Unidos, para realizar certas funções exactamente definidas em lei. Fossem quais fossem os seus pendores, não era mais que sua obrigação fazer a política delimitar-lhe uma linha de conduta que não desgraçasse ainda mais o país, suscitando prematuramente questões que viriam a seu tempo e às quais o decorrer dos tempos daria soluções mais fáceis.
Entretanto, ele devia decifrar o enigma desta nova Esfinge, ou ser devorado. Embora a política de Mr. Lincoln nesse transe não tenha sido de molde a satisfazer aos que exigiam um tratamento heróico até para as ocasiões mais banais e que hão queriam talhar o casaco de acordo com o pano, a menos que pudessem obter de empréstimo a tesoura de Átropos — não foi, afinal, indigna do rei cabeçudo de Ítaca. Mr. Lincoln teve diante de si a terrível indecisão de Bassânio. Qual dos três gorros continha o prémio que devia redimir a fortuna do país? Havia o de ouro cujo aspecto aparatoso podia ter tentado um leviano; o de prata, que podia ter determinado a escolha a um atento; e o de chumbo, baço e de aspecto modesto, como sói ser sempre a prudência, mas, no entanto, com algo de si capaz de atrair a atenção da sabedoria prática. Mr. Lincoln tardou na sua decisão talvez mais tempo do que parecia necessário àqueles sobre quem não repousava a sua tremenda responsabilidade, mas quando a tomou resultou digna da compreensão cautelosa mas sólida do Presidente. A moral do enigma da Esfinge, e é profunda, reside na simplicidade infantil da solução. Os que assim não querem concluir falham porque são peçonhentos, e se batem por uma solução que convenha à sua própria noção da gravidade do momento e de dignidade, sem se preocuparem com a oportunidade da ocasião.
Num assunto que deva ser finalmente esclarecido pela opinião pública e com relação ao qual o fermento da prevenção e das paixões ainda não se nivelou em ambos os lados, a esse equilíbrio de concessões, unicamente do qual pode resultar uma salutar opinião pública, é muito adequado ao cidadão particular fazer valer suas próprias convicções com toda a força possível de argumentos e de persuasão; mas o magistrado popular, cujo julgamento deve tornar-se acção e cuja acção envolve o país inteiro, é obrigado a esperar até que o sentimento do povo esteja tão aproximado do seu ponto de vista que o que ele fizer encontrará apoio naquele, em vez de envolvê-lo em novos factores de divisão. Não era absurdo que os homens sinceramente empenhados na salvação de seu país e convencidos profundamente de que a escravidão era o seu único inimigo real, exigissem uma política decidida em torno da qual todos os patriotas pudessem girar — e este poderia ter sido o meio mais idóneo para conduzir ao governo absoluto. Mas no estado ainda então desorientado do espírito público, com um grande partido incitando até à resistência à rebelião dos escravocratas, por não só imprudente como ilegal; com uma maioria talvez até dos que queriam tributar preito de lealdade e tão acostumados a considerar a Constituição como um acto de benemerência, transmitindo ao Sul sua própria opinião tanto sobre a política e a inteligência como sobre o direito, que estavam em dúvida a princípio se sua lealdade era devida ao país ou à escravatura; e com um respeitável corpo de cidadãos honestos e influentes que ainda acreditavam na possibilidade de conciliação — Mr. Lincoln julgou sensatamente que abandonando uma política por deferência a um partido, estaria dando ao outro o apoio exactamente aguardado pela sua deslealdade.
Era necessário a um homem esclarecido, na sua posição, não entregar-se a uma justa indignação contra os agentes da traição no Norte e assim perder de vista os elementos de confusão que eram seu apanágio e esquecer que não é à falsidade da sofística que se deve temer, mas ao grão de verdade com ela envolvido e que a faz especiosa — que não é a leviandade dos líderes tanto quanto a honestidade dos seguidores que possam seduzir que lhes proporciona a força para o mal. Era dever precípuo seu nada fazer que pudesse ajudar ao povo esquecer as verdadeiras causas da guerra, com inúteis rixas acerca das suas consequências inevitáveis.
A doutrina dos direitos do Estado pode ser tão expertamente manejada por um demagogo que confunda facilmente a distinção entre liberdade e ilegalidade no espírito dos ignorantes, sempre acostumados à influência do som de certas palavras e não à reflexão sobre os princípios que lhes dão significação. Pois, embora a Secessão envolva o absurdo manifesto de negar ao Estado o direito de fazer guerra contra qualquer potência estrangeira, ao passo que a permite contra os Estados Unidos; embora ela se julgue um pacto de concessões mútuas e garantias entre Estados, sem nenhum árbitro em caso de querela; posto que contrarie o senso comum pretendendo que os homens que estruturaram o nosso governo não sabiam o que queriam quando substituíram a União pela Confederação; posto que mistifique a história, que mostra que a principal oposição à adopção da Constituição foi baseada no argumento de que aquela não permitia a independência nos vários Estados o que, por si só, os justificaria no separatismo. No entanto, pois que a escravidão era universalmente admitida como um direito postergado, podia tirar-se uma inferência de qualquer dos ataques directos a ela dirigidos (embora apenas como auto-defesa) a um direito natural de resistência, suficientemente lógico para satisfazer espíritos pouco versados em interceptar a falácia, como os da maioria dos homens, e agora muito conturbados pela desordem dos tempos, para considerar que a ordem dos acontecimentos tinha (malquer apoio legítimo no argumento. Conquanto Mr. Lincoln fosse suficientemente sagaz para dar aos aliados do Norte dos rebeldes a oportunidade que desejavam e até se esforçassem para provocá-la, ainda assim desde o começo da guerra os esforços mais persistentes conduziram-se para confundir o espírito público quanto a suas origens e motivos e arrastar a população dos Estados leais, da posição nacional que haviam instintivamente tomado, ao velho plano das questiúnculas e antipatias partidárias. A rebelião, inteiramente improvocada, de uma oligarquia proclamando a escravidão do negro a pedra angular das instituições livres e no primeiro lampejo de confiança, arriscando estratificar a sequência lógica do seu dogma central, "que a escravidão é justa em princípio e nada tem a ver com a diferença de cor", foi representada como uma tentativa legítima e agradável de manutenção dos verdadeiros princípios da democracia. O esforço legal de um governo estabelecido, o menos oneroso que já existiu, para defender-se contra um ataque traiçoeiro à sua própria existência, foi miseravelmente deturpado para parecer um esforço tirânico de uma casta a fim de forçar suas doutrinas a uma população oprimida.
Mesmo nos tempos em que Mr. Lincoln, ainda não convencido do perigo e da extensão do crime, esforçava-se por persuadir-se da maioria da União no sul e desencadear uma guerra que era meia paz na esperança de uma paz que teria sido, toda, guerra — quando ele ainda forçava a Lei do Escravo Evadido, sob alguma teoria de que a Secessão, conquanto pudesse absolver os Estados de suas obrigações, não os podia privar de seus direitos constitucionais e que os senhores de escravos, rebeldes, eram os únicos mortais que possuíam o privilégio de ter o bolo e comê-lo ao mesmo tempo — os inimigos do governo livre estavam esforçando-se por persuadir o povo de que a guerra era uma cruzada abolicionista. Rebelar-se sem razão foi proclamado um dos direitos do homem, ao passo que foi cuidadosamente ignorado que suprimir a rebelião é o primeiro dever do governo. Todos os males que invadiram o país foram atribuídos aos abolicionistas, embora seja difícil ver-se como pode qualquer partido tornar-se poderoso permanentemente, salvo um dos seguintes casos — ou pela maior verdade de seus princípios, ou pela extravagância do partido opositor. Fantasiar a nau do Estado, singrando a salvo para o seu ancoradouro constitucional, engolfada de inopino por um vagalhão gigantesco do abolicionismo, que se ergue de sítio desconhecido, para agarrá-la com tentáculos ainda enlameados, é encarar a história simples do episódio com olhos de Pontoppidan. Crer que os líderes da traição sulista temiam qualquer perigo com o abolicionismo seria negar-lhes inteligência comum, embora possa haver pouca dúvida de que se valeram do estratagema para acender as paixões e excitar os temores de seus asseclas ludibriados. Rebelaram-se não porque julgassem a escravidão fraca mas porque acreditavam-na suficientemente forte; não para derrotar o governo, mas para apoderar-se dele, pois cada vez torna-se mais claro que empregaram a rebelião apenas como meio de revolução e, se tiveram a revolução, embora de forma diversa da que sonharam, deve o povo americano salvá-los dos efeitos dela à custa da sua própria existência? A eleição de Mr. Lincoln, a que claramente eles se poderiam contrapor se o desejassem, foi a oportunidade, e não a causa, da sua revolta. O abolicionismo, até um ou dois anos atrás, era a heresia desprezada, de alguns homens graves, sem lastro político suficiente até para garantir a eleição de um juiz paroquial; e seu princípio cardeal era a desunião, porque convencidos de que dentro da União a posição da escravatura era inexpugnável. A despeito do provérbio, grandes efeitos não se produzem de pequenas causas, isto é, de causas desproporcionalmente pequenas, mas causas adequadas agindo sob certas condições exigidas. Contrastar o tamanho do carvalho com o da semente de que foi gerado, como se esta, ai dela, houvesse pago todos os tributos das suas debilitadas arcas, pode servir para maravilhar crianças; mas o verdadeiro milagre reside nessa divina liga que obrigou todas as forças da natureza ao serviço do minúsculo germe para cumprir o seu destino. Tudo foi posto a funcionar durante os dez últimos anos, na causa anti-escravocrata, mas Garrison e Philips foram muito menos bem sucedidos como propagandistas do que os próprios senhores de escravos, com o crescimento constante de suas pretensões e ataques. Forçaram a questão ao exame de todo eleitor dos Estados Livres, colocando arrogantemente a liberdade e a democracia na defensiva. Mas, mesmo depois dos ultrajes de Kansas, não houve desejo manifesto de parte do Norte de praticar agressões, posto que houvesse crescente determinação de resistir a elas. A unanimidade popular, de há três anos, em favor da guerra foi apenas em pequenas proporções, o resultado do sentimento anti-escravocrata, muito menos do que por qualquer zelo pela abolição. Mas cada mês de guerra, cada movimento dos aliados da escravatura nos Estados Livres passaram a fazer abolicionistas aos milhares. As massas de qualquer povo, conquanto inteligentes, pouco se comovem com princípios abstractos de humanidade e justiça até que esses princípios sejam por elas interpretados pelos comentários acrimoniosos de alguma infringência de seus próprios direitos e então seus instintos e paixões, uma vez despertos, libertam invencivelmente um incalculável reforço de impulso e intensidade daquelas ideias superiores, daquelas sublimes tradições que não apresentam força motora política até que se aliem a um sentimento de culpa pessoal imediata, ou perigo iminente. Então, finalmente, as estrelas começam a lutar contra Sisera. Se alguém houvesse suspeitado antes que os direitos da natureza humana são unitários, que a opressão só tem uma cor em todo o mundo, não importando a do oprimido — se alguém houvesse falhado na observação da essência mesma da controvérsia — os esforços dos defensores da escravatura, entre nós, para lançar o descrédito sobre os axiomas fundamentais da Declaração da Independência e sobre as doutrinas básicas da Cristandade não podiam deixar de abrir os olhos.
Enquanto cada dia trazia a aproximação da conclusão que todos os homens pensantes sabiam ser inevitável desde o começo, a Mr. Lincoln cabia a prudência de ir moldando sua política pelos acontecimentos. Neste país onde o entendimento rude e presto do povo é afinal o poder controlador, um profundo senso comum é o melhor génio do estadismo. Até agora, a sabedoria das atitudes do Presidente tem-se justificado pelo facto de que sempre resultaram na união cada vez mais firme da opinião pública. Uma das coisas particularmente admiráveis nos discursos públicos do presidente Lincoln é um certo tom de dignidade familiar, o qual, conquanto seja o atributo talvez mais difícil do estilo não constitui indicação duvidosa de carácter pessoal. Deve existir algo essencialmente nobre num chefe electivo que pode descer ao nível da facilidade confidencial sem perder o direito à reverência, algo muito varonil em alguém que pode romper o protocolo da sua hierarquia convencional para confiar-se à razão e inteligência daqueles que o elege ram. Nenhum cumprimento foi jamais prestado à nação como a simples confiança, a franqueza das reuniões ao pé do fogo, com que Mr. Lincoln se dirigia à razão do povo americano. Este era, com efeito, um verdadeiro democrata que se estribou na presunção de que uma democracia pode pensar. "Vamos, raciocinemos juntos sobre este problema" era o refrão de todos os seus discursos ao povo; em consequência, jamais tivemos um primeiro magistrado que, como ele, conquistasse o amor e ao mesmo tempo a opinião de seus concidadãos. A meu ver, a simples confiança que depositava no equilíbrio mental de seus compatriotas é muito desvanecedora e o sucesso dessa política é dos maiores argumentos que já vimos em favor da teoria de que os homens podem governar-se a si próprios. Nunca fez apelos aos sentimentos inferiores, nunca aludiu à humildade da sua origem; talvez nunca lhe houvesse ocorrido que, decerto, havia algo mais alto donde partir do que do homem; e nivelava-se com as pessoas a quem falava, não porque descesse até elas, mas apenas por considerar ponto pacífico que elas possuíam cérebro e podiam alçar-se ao terreno comum do raciocínio. Num artigo recentemente publicado em "The Nation", Mr. Bayard Taylor menciona o facto emocionante de que nos mais sórdidos esconderijos dos "Five Points" encontrou o retrato de Lincoln. A população desgraçada que ali faz seus abrigos descarregou nele os seus votos e ainda prestou esse espontâneo tributo ao doce humanismo da sua natureza. O que dentre eles havia de ignorância vendia seus votos e usufruía o dinheiro, mas tudo o que ali havia de madureza moral reconhecia seus santos e mártires.
Mr. Lincoln não tem o hábito de declarar: "Esta é minha opinião, ou minha teoria", mas "Esta é a conclusão a que, a meu ver, o tempo chegou e à qual, consequentemente, quanto mais cedo chegarmos melhor para nós." Sua política tem sido a política da opinião pública, baseada na discussão adequada e num reconhecimento oportuno da influência dos acontecimentos ocorrentes na formação da fisionomia dos acontecimentos futuros.
Um dos segredos do notável sucesso de Mr. Lincoln em cativar o espírito popular, é, indubitavelmente, uma inconsciência de ego que o habilita, embora sob a necessidade de usar constantemente a maiúscula / (Eu), a fazê-lo sem qualquer sugestão de egotismo. Não existe uma única vogal que a boca humana possa pronunciar com tamanha diferença de efeito. Aquilo que alguém haja de ocultar, por assim dizer, atrás da substância da palavra, ou, se o traz à flor dos lábios, usará unicamente para dar um acento agradável de individualidade ao que afirma, outro há-de fazer um desafio arrogante à auto-satisfação de todo o seu auditório e um arremesso irresponsável sobre o senso de importância pessoal de cada pessoa, irritando cada poro da sua vaidade, qual um vento nordeste a uma crestação de oposição e hostilidade. Mr. Lincoln nunca estudou Quintiliano, mas possui, na grave simplicidade e no americanismo natural de seu carácter, uma arte oratória que vale por tudo. Ele se abandona tão inteiramente em seu objectivo que dá ao seu Eu o efeito simpático e persuasivo de Nós com o grande corpo de seus concidadãos. Modesto, sereno, deixando entrever o processo evolutivo de seus pensamentos, quando ainda em elaboração, chegando, todavia, a suas conclusões com uma espécie de lógica honesta e despretensiosa, ele é tão eminentemente o nosso representante que, quando fala, o povo como que começa a ouvir o seu próprio pensamento em voz alta. A dignidade do pensamento de Mr. Lincoln nada deve a qualquer garbo cerimonial de palavras, mas ao movimento varonil que provém de propósitos sadios e uma energia de raciocínio que desconhece o que a retórica significa. Não tem havido nada de Cleon, muito menos de Strepsíades tentando mergulhá-lo na demagogia, encontra-diço nos discursos públicos de Mr. Lincoln. Sempre dirigiu-se à inteligência dos homens, nunca às suas prevenções, suas paixões, ou sua ignorância.
No dia da sua morte, esse simples advogado provinciano que era, na opinião de um partido, um folgazão vulgar, e a quem os escribas de sua própria falange eleitoral acusavam de carecedor dos mais elementares predicados necessários a um estadista, era o chefe mais absoluto da Cristandade e isto unicamente pelo aprisionamento que a sua bem-humorada sagacidade tinha realizado dos corações e entendimentos de seus patrícios. E isto não era tudo, pois parecia que ele havia conquistado a grande maioria, não apenas de seus compatriotas, mas também da humanidade para o seu lado. Como é forte e persuasiva a madureza honesta, sem um único laivo de romance ou de sentimento falso para apoiá–la! Um civil, numa época de grande influência militarista, desajeitado, sem nenhuma habilidade nas mínimas formalidades sociais, deixou atrás de si uma reputação superior à de qualquer conquistador, a memória de uma graça mais alta do que a de uma pessoa meramente corpórea e de um cavalheirismo mais profundo do que de simples nascimento. Antes daquela espantosa manhã de Abril nunca tais multidões haviam derramado lágrimas pela morte de alguém que nunca houvessem visto, como se, com ele, uma presença amiga houvesse sido arrebatada de suas vidas, deixando-os mais frios e mais sombrios. Nunca foi tão eloquente um funéreo panegírico como o silente olhar de simpatia que as pessoas estranhas trocavam entre si, quando se encontravam naquele dia. Sua família comum havia perdido um parente.
Fonte: Ensaístas Americanos, Clássicos Jackson. Tradução de Sarmento de Beires e José Duarte.
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