ALFREDO DE CARVALHO

 

Oliveira Lima

ALFREDO DE CARVALHO

Num artigo muito substancioso e muito carinhoso que acaba de consagrar na revista Kosmos, ao Sr. Alfredo de Carvalho, o ilustre crítico Sr. José Veríssimo achou um senão neste que qualificou de estudioso pernambucano: o fato dele, por enquanto, se confinar mentalmente na sua terra, preferindo a especialidade à generalidade, e mostrando que mais lhe apetece, mesmo ali, pintar quadros de gêneros do que esboçar composições simbólicas.

O Sr. José Veríssimo, que costuma acompanhar com muita perspicácia e fixar com muita finura os cambiantes do pensamento contemporâneo, decerto refletia, ao fazer aquela observação, a preferência que muito recentemente tem ido reconquistando nos espíritos mais cultos a síntese sobre a análise histórica. Porque, valha a verdade, abusou-se da análise histórica. Tainc, com seus "pequenos fatos" a colecionar, deu origem a uma escola exagerada de historiadores de detalhes. Nota-se que o mestre somente as confeccionava para deduções arquitetadas sobre êlcs, que podiam ser mais ou menos exatas mas eram sempre vistas largas e novas lançadas sobre as aglomerações de sucessos e de pormenores de sucessos.

Muitos dos seus discípulos e imitadores ficaram infelizmente nos pormenores, ou porque se afogassem na sua massa ou porque

não tiveram à mão uma bóia para sobrenadar nesse oceano de fatos. Tomemos por exemplo, entre mil, em França, o Sr. F. Masson, com sua napoleoneida íntima, e o Sr. G. Lenôtre que dedicou um dos seus últimos livros à fuga de Varennes, no qual não há nome de estalagem desde Paris, côr de cavalo dos da berlinda e fazenda das vestimentas dos fugitivos que não seja assunto para uma miúda e quero crer que exaustiva discussão. Na Inglaterra os Great days of Versailles de G. F. Bradby são do mesmo gênero, como se não bastasse à "grande época" á crônica de Saint Simon com a sua mordacidade irresistível, a sua autoridade de testemunha e a sua viva maneira literária.

Entre nós, pior do que tudo isso, já se escreveu um folheto histórico para provar, com abundância de documentos, que o atentado perpetrado contra certo governador colonial não passou de um tiro, quando correntemente se há escrito dois; ainda que não tendo o referido governador morrido do ferimento recebido, uno ou duplo o projétil, parecesse o número dos tiros completamente indiferente à musa da história.

O caso com o Sr. Alfredo de Carvalho é muito diverso. Os detalhes que êle pesquisa (não faz pesquisar pelos outros) e aproveita, reproduzindo-os, significam alguma coisa, têm sua utilidade na compreensão da época ou do personagem. O seu defeito será porventura, como êle me escrevia há dias, preferir as miniaturas às grandes telas, esquecer-se numa floresta na contemplação de uma só árvore bem frondente ou de caprichosa forma, em vez de se deixar fascinar pela beleza do conjunto da mata densa e misteriosa? Tampouco é isso.

O Sr. Alfredo de Carvalho está, a meu ver, seguindo o melhor caminho que pode trilhar o historiador de uma terra em que o material histórico até aqui reunido prima muito mais pela quantidade do que pela qualidade. Como satisfazer-se com o existente e fazer história com essas tantas nomenclaturas de personagens e relações de combates que pejam as nossas crônicas e até os nossos modernos livros de história? Tomando por exemplo os "motins de fevereiro de 1823", no volume — Estudos Pernambucanos — que o autor publicou agora e que deu ensejo ao artigo do Sr. José Veríssimo: como perceber-lhes a natureza e medir-lhes o alcance sem reconstituir nas suas minúcias essa quadra de estéril agitação política, sem evocar esse característico Coronel Pedroso que vimos todos ressurgir em 1889, sem desenhar esse loquaz Cipriano Barata que se multiplicou pela independência afora e que, aos poucos serenado e transformado de foliculário em panegirista, aí estamos vendo aplicar a ênfase da velha oratória agressiva à adulação dos governos generosos?

A anedota só não tem valor quando falta senso histórico a quem a narra, e desta espécie de senso é felizmente provido o Sr. Alfredo de Carvalho, como o prova mesmo no querer que seus trabalhos assentem sobre fundamentos amassados pela própria investigação. Nem disto lhe faz absolutamente um crime o Sr. José Veríssimo. Apenas lamenta, e neste sentimento vai até envolto o muito apreço que lhe merece o escritor, que a crônica nova, por mais exata e cati-

vante, seja algumas vezes de índole a não interessar a história geral, a qual entretanto tem que ser no Brasil a sombra das histórias locais, figurando como parcelas mais ou menos importantes.

Esta noção é que me parece haver sobretudo predominado no espírito do Sr. Alfredo de Carvalho quando, antes de se abalançar a cometimento maior, para o qual lhe não faltam forças e até disposições, se fêz um especialista da história pernambucana, aliás e sem lavor das melhores fornecidas e mais dramáticas do total. Levá-lo-ia também a doutrina tão espalhada, tão pregada na última metade do século que acabou, da relatividade histórica, a qual, prescrevendo a formal eliminação de juízos contemporâneos para uma lúcida percepção de qualquer período do passado, reclamava a reconstituição literária, prévia e paciente, do meio do qual se teria que desprender o espírito verdadeiro da época desaparecida.

Neste sentido a falta, se a há, é muito mais do ambiente que da personalidade e não terá procedido com desacerto o escritor que para ascender à verdade abstrata se haja munido de um belo lastro concreto, que para entrar na liça entre historiadores haja envergado a armadura de investigador. Ê certo que houve precipitação no enlace da ciência com a história, que um organismo moral tem de ser tratado diferentemente de um organismo físico, que as leis sociais são mais complicadas e menos fatais que as leis biológicas. Do flirt que tiveram, se derivou contudo para a história uma dose de experiência que lhe faltava, quando jurava pelos "princípios imutáveis e universais da natureza humana".

O autor dos Estudos Pernambucanos não se julga autorizado a produzir por intuição, como alguns dos antigos, mais célebres c quem sabe se também não mais duradouros escritores de história: quis antes proceder como lhe mandava o espírito do seu século, pela documentação e pela indução. É fato que o abuso do método científico encurta a visão e reduz a assimilação, quando não dispersa a produção em narrações fragmentadas e que desculpam seu acanhamento e limitação com o pitoresco.

Deste perigo preveniu o Sr. José Veríssimo ao Sr. Alfredo de Carvalho com a lealdade do seu espírito e a autoridade da sua faculdade crítica, e estou certo de que o Sr. Alfredo de Carvalho, no prosseguimento dos seus estudos históricos, mostrará que se livrou do risco e até o converteu na melhor arma de combate com que passou à arena mais vasta que o Sr. José Veríssimo apontou com simpatia à sua inteligência curiosa, diligente e compreensiva.

Pernambuco, março de 1907

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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