O INSTITUTO HISTÓRICO DO RIO

 

Oliveira Lima

O INSTITUTO HISTÓRICO DO RIO

O brasileiro que, como eu, regressa ao seu país após uma ausência de dois anos, não pode deixar de experimentar um sentimento de prazer intenso e ao mesmo tempo de legitimo desvanecimento diante da transformação da sua capital, por tantos títulos ainda até há pouco cidade colonial, numa das mais formosas e elegantes cidades do mundo. A demolição de quarteirões hediondos, a abertura, de várias longas avenidas, o alargamento de algumas das ruas mais estreitas e lôbregas que eram justamente as de maior trânsito comercial, rejuvenesceram e embelezaram o Rio de Janeiro, começando por dar-lhe um banho de ar puro e acabando por desmanchar-lhe as rugas escuras.

O Rio remoçou como Fausto depois de libar a taça mágica que Mefistófeles lhe estendeu. O Mefistófeles de agora foi o prefeito Passos, sem que conste, entretanto, que a capital federal haja "vendido a alma ao inferno.

Nada podem ter de comum com o inferno essas belas criações da Avenida Central e da Avenida Marginal, a primeira com a sua nobre e grandiosa perspectiva, a segunda com as suas curvas graciosas acompanhando as sinuosidades da mais linda das baías, cujo panorama se desdobra incomparável em frente ao parapeito. Não se podem absolutamente relacionar com o inferno esses jardins de relva e flores civilizadas que por toda a parte se vão formando e descansando à vista das brancuras graníticas, ao mesmo tempo que oferecem o mais risonho contraste com a vestimenta opulenta e sombria das montanhas em redor. Com um pouco menos de calor, o novo Rio, que do velho conservou a sua esplêndida moldura natural, poder-se-ia sem favor chamar um céu aberto.

As transformações fluminenses não se limitaram porém — o que já em si seria enorme — ao aspecto exterior da cidade e atingiram o interior de muitos dos edifícios públicos e mesmo de não poucas casas particulares. Assim tive a satisfação de encontrar inteiramente modernizado o venerando Instituto Histórico.

O modernismo não é incompatível com a História, antes esta se harmoniza admiravelmente com a novidade. Os seus processos de crítica, os seus métodos de elaboração, as suas preferências de estudo, até a sua composição têm oferecido uma extraordinária variação na sua constante evolução, posto que no fundo a História tenha sempre de ser uma, visando à resurreição inteligente do passado. A apresentação é que há divergido de aspecto: a história de Michelct não se parece com a de Bossuet, como a deste se não parece com a de Fernão Lopes ou a do português com a de Tito Lívio.

O Brasil tem, por ora, tido grandes pesquisadores como Varnha gen, mas não possuiu ainda um grande historiador. Por isso não logra nesse terreno oferecer os marcos da distância percorrida. Frei Vicente do Salvador e o Sr. Capistrano de Abreu parecem-se e juntam-se, mau grado três séculos que os separam, pelo fato de que o último o que procura é averiguar, com o seu grande faro, se o que o primeiro escreveu é autêntico e fidedigno, e preencher, com o trabalho próprio, as deficiências do cronista. Outros serão os que mais tarde, valendo-se das informações do frade c das correções do erudito, edificarão sobre tal base o monumento verdadeiro da história brasileira, decorando-o com os lavores primorosos do seu estilo pessoal e sobre êle projetando a luz de uma compreensão geral e profunda dos fatos expostos.

Para semelhante resultado nada trará uma maior contribuição do que a extraordinária coleção de papéis públicos e particulares, de monografias, de dissertações, de memórias, de peças oficiais, que constitui a Revista do Instituto Histórico. Dos documentos aí publicados, nenhum se perde por falta de valor: todos têm o seu lugar c o seu interesse na história geral ou pelo menos local do país. Dos trabalhos propriamente literários, alguns terão ultrapassado os limites da sã literatura, enveredando pelo caminho florido e pernicioso da retórica, mas até esses são em grande parte aproveitáveis pela intenção que manifestam c sobretudo pelas informações que ocasionalmente encerram. O fato é que o Brasil político, diplomático, comercial, econômico, militar, em parte alguma melhor se estuda do que nos volumes daquela preciosa coleção.

Associação que há dado de si tão excelente cópia e contribuído por forma tão palpável para a formação da história nacional não tinha o direito de decair, e no entanto a sua aparência entrara a oferecer indícios de decrepitude, que agora felizmente se dissiparam. Muito pode a força de vontade. O autor do milagre — se milagre se pode chamar um ato consciente e deliberado — foi o atual primeiro-secretário Sr. Max Flciuss, um moço de inteligência prática e de patriotismo esclarecido, que moveu Congresso, ministros, quanto era acessível e tinha voz no capítulo, para obter a dotação relativamente modesta — não mais de uns 60 contos — com que se operou a adaptação do Instituto às exigências do conforto hodierno e ao brilho das suas tradições.

O Instituto não teve, felizmente, que desertar a velha casa histórica em que viveu e morreu a Rainha Dona Maria I, e onde o Imperador D. Pedro II presidia as sessões, casa que é a sua mais adequada sede pelas recordações que guarda e que esparge. Com o dinheiro ultimamente concedido reformou-se o vigamento; substituiu-se o último lanço de escada, estreito c tortuoso, por degraus amplos e cômodos; construiu-se uma galeria para conservação dos exemplares da Revista que vai no 65.° volume; separou-se a sala das sessões, agora simples mas elegantemente adornada, da sala de leitura, que ficou com o grosso da biblioteca; discriminaram-se arquivo e museu, aquele com papéis preciosos, este com piedosas lembranças; destacou-se, como cumpria, numa sala especial, a bela coleção bibliográfica legada ao Instituto pelo seu fundador c desvelado protetor, o falecido imperador.

A organização das riquezas da associação acompanhou naturalmente a reforma material do edifício em que ela funciona. A parte da classificação bibliográfica pertence ao admirável bibliotecário Sr. Vieira Fazenda, um homem estimabilíssimo que possui a um tempo a paixão dos livros, uma sólida erudição e o talento, não muito comum entre nós, do narrador despretensioso e pitoresco. A tarefa da catalogação e descrição da coleção cartográfica vai ser confiada ao Sr. Orville Derby, de cuja proficiência todos são, em S. Paulo, conhecedores, Dentro em pouco será possível, sem perda de tempo, consultar-se qualquer mapa, gravado ou desenhado, dos que se amontoam nas gavetas do Instituto, como já é possível encontrar-se sem demora qualquer dos livros dispersos pelas prateleiras ou folhear qualquer códice dos que se guardam nos armários dos manuscritos. E de nada se regozija mais o Instituto, com a direção inteligente que o está caracterizando, do que de franquear aos estudiosos os seus tesouros.

Nessa casa, aliás, onde se rende o mais sincero preito ao passado nacional, se capricha em respeitar o merecimento mais do que a posição, sobrepujando o valor intelectual, que é constante, a importância política, que é transitória.

Se a memória do imperador tivesse corrido o perigo de obli-terar-se da imaginação brasileira, bastaria o carinhoso culto que no Instituto a há cercado, para que ela sobrevivesse ao regímen com que está associada. O Instituto Histórico não visa a uma restauração que tantas circunstâncias fazem impossível, mas não julga que a improbabilidade de vitória de uma causa seja motivo bastante para desprestigiá-la. A gratidão é mais formosa ainda quando possui a consciência exata dos seus motivos, quando, sobre sentimental, é intelectual.

Tampouco é o Instituto o refúgio hostil das tradições aristocráticas de uma terra que tão pouco as teve, porque se afundavam na democracia ambiente. Essas tradições o Instituto as preza pela sua significação histórica e pela valia moral que traduzem, mas não lhe servem de armas contra o estado de coisas que a evolução trouxe ao país. A tradição nacional é para êle una sobre os regímens e os sistemas e dessa é que a associação se constituiu guarda, socialmente apreciando os pergaminhos do talento mais que os do nascimento, mas não lhe sendo indiferente o nascimento, quando exprime um aspecto da continuidade histórica nacional.

Rio, novembro de 1906

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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