Árvores e Pássaros na água salgada, rios e cobras de água doce, lagartos e lobos d’água – Fernão Cardim

Fernão Cardim (1540? – 1625) – Tratados da Terra e Gente do Brasil

XIX

DAS ARVORES QUE SE CRIÃO N’AGUA
SALGADA

Mangues
— Estas arvores se parecem com salgueiros ou sinceiros da Europa delles
ha tanta quantidade pelos braços e esteiros que o mar deita pela terra dentro. que ha
léguas
de terra todas deste arvoredo, que com as enchentes são regadas de mar;
caminhamos logo léguas por estes esteiros e dias inteiros pelos rios onde
ha estes arvoredos; estão sempre verdes, e são graciosos, e aprazíveis, e de muitas espé­cies; a madeira he boa para
queimar, e para emmadeirar casas; he muito pesada, e rija como ferro: da casca
se faz tinta, e serve de casca para cortir couros; são de muitas espécies: hum certo gênero delles deita
huns gomos de cima de comprimento ás vezes de huma lança até chegar á água, e logo deitão muitas trempes, e raizes na terra, e todas estas
arvores estão encadeadas e feitas em trempes, e assi as raizes, e estes ra­mos tudo
fica preso na terra; emquanto são verdes estes gomos são tenros, e porque são vãos por dentros se
fazem delles bôasfrautas. Nestes mangues ha hum certo gê­nero de
mosquitos que se chamão Mariguis, tamaninos como piolho de gallinha: mordem
de tal maneira e deixão tal pruido, ardor e comichão, que não ha valer-se
huma pessoa, porque até os vestidos passão, e he boa penitencia e mortificação soffrel-os
huma madrugada, ou huma noite; para se defenderem delles não ha remédio senão untar-se de
lama, ou fazer grande fogo, e fumaça.

Nestes
mangues se crião muitos caranguejos, e ostras, e ratos, e ha um gênero destes ratos
cousa monstruosa, todo o dia dormem e vigião de noite.

Nestes
mangues crião os papagaios que são tantos em numero, e gritão de tal maneira,
que parece gralheado de pardaes, ou gralhas.

Nas praias
se acha muito perrexil, tão bom e melhor que de Portugal, que tam­bém se faz
conserva.

XX

DOS PÁSSAROS QUE
SE SUSTENT
ÃO, E ACHÃO N’AGUA SALGADA

Guigratinga
Este pássaro
he branco, do tamanho dos grous de Portugal, são em extremo alvos, os pés têm muito
compridos, o bico muito cruel, eagudo, e muito formoso por ser de hum amarello
fino; as pernas também são compridas entre ver­melhas e amarellas. No pescoço têm os melhores
panachose finos que buscar se pode, e parecem-se com os das Emas africanas.

Caripirá — Por outro nome
se chama — Rabiforcado; estes pássaros são mui­tos, chama-se rabiforcado por ter o rabo partido
pelo meio; das pennas fazem muito caso os índios para empenaduras das frechas, e dizem que durão muito; em algum
tempo estão muito gordos, as enxudias são boas para corrimentos; costumao estes pássaros trazer
novas dos navios á terra, e são tão certos nisto que raramente faltão, porque como se
vêem,
de ordinário dahi a dous ou três dias chegão os navios.

Guacá — Este pássaro he a própria Gaivota de
Portugal; seu comer ordinário são amêijoas, e porque são duras, e as não podem quebrar, levão-nas no bico ao ar, e deixando-as cair muitas vezes as
quebrão
e comem. Destas gaivotas ha infinidade de espécies que coalhão as arvores e
praias.

Guigratéotéo — Esta ave se
chama em portuguez Tinhosa, — chama-se Guigra-téotéo. se pássaro que tem accidentes de morte, e que morre e torna
a viver, como quem tem gotta coral, e são tão grandes estes accidentes que muitas vezes os achão os
Indios pelas praias, os tomao nas
mãos,
e cuidando que de todo estão mortos os botão por ahi, e elles em caindo se alevantão e se vão embora; são brancos e formosos,
e destes ha outras espécies que têm os mesmos accidentes.

Calcamar Estes pássaros são pardos do
tamanho de Rolas, ou Pombas;dizem os índios naturaes que põem os ovos, e ahi os tirão, e crião seus filhos; não voão, mas com as
azas e pés nadão sobre o mar ligeiramente, e adivinhão muito calmarias
e chuveiros, e são tantos nas calmarias ao longo dos navios que se não podem os
marinheiros valer e são a própria morfina e malencolia.

Ayaya — Estes pássaros são do tamanho de
Pegas, mais brancos que vermelhos, têm côr graciosa de hum branco espargido de vermelho, o bico
comprido, e parece huma colher; para tomar o peixe tem este artificio: bate com
o pé
na água,
e tendo o pescoço estendido espera o peixe e o toma, e por isso dizem
os índios
que tem sa­ber humano.

Saracúra Este pássaro he pequeno, pardo, tem os olhos formosos com hum
circulo vermelho muito gracioso; tem hum cantar extranho, porque quem o ouve
cuida ser de hum pássaro muito grande, sendo elle pequeno, porque canta
com a bocca e juntamente com a trazeira, faz outro tom sonoro, rijo, e forte,
ainda que pouco cheiroso, que he para espantar; faz esta musica suave duas
horas ante manhã e á tarde até se acabar o crespusculo vespertino, e quando canta de
ordinário
adivinha bom tempo.

Guará Este pássaro he do tamanho de huma Pega, tem o bico muito
comprido com a ponta revolta, e os pés de comprimento de hum grande palmo; quando nasce he
preto, e depois se faz pardo; quando já avôa faz-se todo branco mais que huma pomba, depois faz-se
vermelho claro, et tandem torna-se vermelho mais que a mesma grã, e nesta côr permanece até á morte; são muitos em
quantidade, mas não têm mais que esta espécie; crião-se bem em casa, o seu comer he peixe, carne, e outras
cousas, e sempre hão deter o comer dentro n’agua;a penna destes he muito
estima da dos índios, e deltas fazem diademas, franjas, com que cobrem
as espadas com que matão; e fazem braceletes que trazem nos braços e põem-nas nos
cabellos com botões de rosas, e estas suas jóias e cadêas douro com que se ornão em suas festas, e estimão-nas tanto que,
com serem muito amigos de comerem carne humana, dão muitas vezes os contrários que têm para comer em
troco das ditas penas: andão em bando estes pássaros, e se lhe dá o sol nas praias, ou indo pelo ar he cousa formosa de
ver.

Ha outros muitos pássaros que do mar
se sustentão, como Garças , Gaviões. e certo gênero de águias, e outros muitos que seria largo contar.

XXI

DOS RIOS D’AGUA DOCE, E COUSAS QUE NELLES HA

Os
rios caudaes de que esta província he regada são inumeráveis, e alguns mui grandes, e mui formosas barras, não fallando em as
ribeiras, ribeiros e fontes de que toda a terra he muito abundante, e são as águas de ordinário mui formosas,
claras, e salutiferas, e abundantes de infinidade de peixes de varias espécies, dos quaes
ha muitos de notável grandura e de muito preço, e mui
salutiferos, e dão-se aos doentes por medicina. Estes peixes pescão os índios com redes,
mas o ordinário he a linha com anzolo. Entre estes ha hum peixe real de bom gosto e
sabor que se parece mui­to com o solho de Espanha; este se chama — Jaú — são de quatorze, e
quinze palmos, e ás vezes maiores, e muito gordos, e delles se faz
manteiga. Em alguns tempos são tantos os peixes que engordao os porcos com elles. Em
os regatos pequenos ha muitos camarões, e alguns de palmo e mais de comprimento, e de muito
bom gosto e sabor.

XXII

DAS COBRAS D’AGUA DOCE

Sucurijuba
Esta cobra
hea mor, ou das maiores que ha no Brasil, assi na gran­deza como na formosura;
tomão-se
algumas de vinte e cinco pés, e de trinta em compri­do, e quatro palmos em roda. Tem huma cadêa
pelo lombo de notável pintura e for­mosa, que começa da cabeça e acaba na
cauda; tem dentes como cão, e aferra em huma pessoa, vacca, veado, ou porco, e
dando-lhes algumas voltas com a cauda, engole a tal cousa inteira, e depois que
assi a atem na barriga deixa-se apodrecer, e os corvos a comem toda de modo que
não ficam
senão
os ossos, e depois torna a criar carne nova, e resurgir como dantes era, e a
razão
dizem os índios naturaes he, porque no tempo que apodrece tem a cabeça debaixo da
lama, e porque têm ainda em o touti-ço tornão a viver: e porque já se sabe isto quando as achão podres lhe buscão a cabe­ça, e as matão. O modo de se
sustentarem he esperarem os animaes, ou gente esten­didas pelo caminhos, e em
prepassando se envião a elles, e os matão, e comem; de­pois de fartas dormem de tal modo que ás vezes lhe cortão o rabo duas, três postas sem
accordarem, como aconteceu que depois de cortarem duas postas a huma destas, ao
dia seguinte a acharão morta com dous porcos montezes na barriga, e seria de
cin-coenta palmos.

Manima — Esta cobra anda
sempre n’agua, he ainda maior que a sobredita, e muito pintada, e de suas
pinturas tomarão os gentios deste Brasil pintarem-se;têm-se por
bemaventurado o índio a quem ella se amostra, dizendo que hão de viver muito
tempo, pois a Manima se lhes mostrou… 8.

 

8 Ao ms. falta o seguimento, que vem em Purchas his Pilgrimes, vol IV, p. 1.318: "Many others kinds of Snakes there be in the Rivers of f resh
water, which I leave for brevitie sake and because there is nothing in
particular that can be said of them".

 

XXIII

DOS LAGARTOS D’AGUA

Jacaré Estes lagartos são de notável grandura, e alguns ha tão grandes como cães; tem o focinho
como de cão muito comprido, e assi têm os dentes. Têm por todo o corpo humas lâminas como
cavallo armado, e quando se armão não ha frecha que os passe; são muito pintados
de varias cores; não fazem mal á gente, mas antes os tomão com laços facilmente, e
alguns se tomarão de doze, quinze palmos, e os estimão muito, e os tem
por estado os índios como rembabas, se. cães, ou outra
cousa de estado; andão n’agua, e na terra põem ovos tão grandes como de
patas, e tão rijos que dando huns nos outros tinem como ferro; aonde estes andão logo são sentidos pelos
grandes gritos que dão; a carne destes cheira muito, maxime os testículos, que
parecem almiscre, e são de estima: o estéreo tem algumas virtudes, em especial he bom para
belidas.9

XXIV

DOS LOBOS D’AGUA

Jaguaruçú Este animal he maior que nenhum boi; tem dentes de
grande pal­mo, andão dentro e fora d’agua, e matão gente; são raros, alguns
delles se achão no rio de S. Francisco, e no Paraguaçú.

Atacape
Estes lobos são mais pequenos, mais muito mais damninhos, porque saem
d’agua a esperar a gente, e por serem muito ligeiros matão algumas
pessoas, e as comem.

Pagnapopéba — Estas são as verdadeiras
lontras de Portugal. Ha outro anima": pequeno do tamanho de doninha,
chama-se Sariguey bejú — este tem ricas pelles pa­ra forros; e destes animaes
d’agua ha outras muitas espécies, alguns não fazem mal, outros são muito ferozes,

Baéapina — Estes são certo gênero de homens
marinhos do tamanho de meni­nos, porque nenhuma differença têm delles; destes
ha muitos, não fazem mal.

Capijuara Destes porcos
d’agua ha muitos e são do mesmo tamanho dos por­cos, mas differem nas feições; no céo da bocea têm pedra muito
grossa que lhes serve de dentes queixaes. Esta tem os índios por jóia para os filhos
e filhas; não têm rabo andão muito tempo debaixo d’agua, porém habitam na
terra,e nella criãoseusfilhos seu comer he erva e fruetas que ao longo
dos rios achão.

Itã Ha nos rios d’agua doce muitos gêneros de conchas
grandes e pequenas algumas são tão grandes como boas cuias, e servem de fazer a farinha
com ellas; outra; são pequenas, e servem de colheres; todas ellas são compridas, e de
huma côr
pratea­da; nellas se achão algumas pérolas.

Cágados — Nos rios se achão muitos cagados,
e são
tantos em numero que as tapuyas engordão em certos tempos somente para os ovos, e andão a elles como a
maravilhoso mantimento.

9 Em Purchas his Pilgrimes, vol. IV, p.
1.318, Lelidas; deve ser belidas. manchas na córnea ocular.

Guararigeig

Não
faltão
rãs
em os rios, fontes, charcos, lagoas; e são de mui­tas espécies, principalmente esta — Guararigeig; he
cousa espantosa o medo que del­ia têm os índios naturaes, porque só dê a ouvirem, morrem, e por mais que
lhes pre­guem não têm outro remédio senão deixar-se morrer, tão grande he a imaginação, e apprehensão que tomão de a ouvir
cantar; e qualquer índio que a ouve morre, por­que dizem que deita de si
hum resplandor como relâmpago.

Todos estes rios caudaes são de tão grandes e
espessos arvoredos, que se nave­gam muitas léguas por elles sem se ver terra de huma parte nem da
outra; por elles ha muitas cousas que contar, que deixo por brevidade.

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