AS JANELAS ESTÃO ABERTAS, MARQUÊS…
Paulo Setúbal
Ensaios Históricos
São cinco horas da tarde. Maria Angélica, que é a retreta mais graciosa
de S. Cristóvão, abre, como de costume, as amplas janelas do Paço que dão sobre
o parque. Depois, sem ruído, penetra cautelosamente na galeria de quadros. Aí,
solitário e cismático, está um homem de cabelos alourados. A retreta, ao vê-lo,
murmura com reverencioso respeito:
— As janelas estão abertas, Marquêsl
O
velho, enrugado e seco, crava na moça dois olhinhos cúpidos. Bela rapariga!
Vinte e dois anos, desempenada e carnuda, seios empinados, toda uma primavera
de sangue e viço.
— Está bem!
A
moça parte. Aquele flexuoso corpo de virgem, ondulante e fresco, desaparece
maciamente entre os reposteiros do fundo. O velho pensa:
— Bonita retreta!
Ergue-se.
Tira do bolso o seu tosco rosário de camândulas grossas. Começa a rezar. E,
rezando, passeia, grave e pausado, diante das janelas
abertas sobre o parque.
O parque, naquela hora morna,
trescala cheiros agrestes. Que cheiros cálidos e capitosos!
José
Bonifácio fora destituído do cargo mais ilustre do País: tutor do príncipe e
das princesas imperiais.
A Regência nomeou, para substituí-lo, o Marquês de Itanhaém. Quem é
esse personagem? Quem é, na Corte de então, esse homem que o governo escolheu
para posto tão eminente?
É uma das personalidades mais típicas da sociedade brasileira do tempo.
Figura decorativa, portadora de grandes e respeitáveis nomes, Itanhaém aparece
em cena, no tablado político da Regência, com a velhice pomposamente ressoante
de títulos e estridentemente recoberta de comendas e de crachás.
Sim,
Manuel Inácio de Andrade Souto Maior, barão com grandeza, e, depois, Marquês de
Itanhaém, era filho do brigadeiro Inácio de Andrade Souto Maior Rondon, moço
fidalgo, cavaleiro da ordem de Cristo, mestre de campo do Rio de Janeiro,
casado com dona Maria Teresa de Ataíde Portugal, filha de José Pinto Coelho,
cavaleiro e fidalgo.
Fora o Marquês de
Itanhaém aquele gentil-homem que,
no alvorecer do Império, tivera a
subida honra de servir como alferes-mor na Coroação e Sagração
de D. Pedro I, assim como no juramento da Constituição
Política do País. fora ele, também, aquele que tivera a incumbência,
tão altamente envaidecedora, de representar o rei D. Fernando de Portugal no
batismo da princesa Isabel, irmã do Imperador.
Teve Itanhaém, além
disso, num impressionante descendo de honrarias, tudo quanto um homem podia ler
de dignidade no Brasil: Grande do Império, Gentil–homem da Imperial Câmara,
Mordomo-mor, Estribeiro-mor, Grã-Cruz da Imperial Ordem de Cristo, Grã–Cruz de
S. Januário das Duas Cecílias, Grã-Cruz da Legião de
Honra, Cavalheiro de… Não vale continuar o rol
ilustre. É demasiado extenso.
Foi esse homem, com
tamanhas grandezas e brilhos, quem se instalara em S. Cristóvão como tutor dos príncipes. São Cristóvão, quando Itanhaém fora nomeado,
fervilhava de manobras e intrigas palacianas. As damas, em particular,
haviam-se partilhado em dois grupos: um, o que apoiava José Bonifácio, era
chefiado senhora condessa de Itapagipe; o outro, o que combatia o patriarca, era encabeçado
pela condessa de Belmonte, D. Mariana Carlota Verna de Magalhães.
José Bonifácio,
como tutor dos pupilos imperiais, despedira D. Mariana Carlota, a sua
adversária, do cargo de Camareira-mor. É nomeada para o cobiçado cargo a
Condessa de Itapagipe, sua correligionária ej amiga. Mas os acontecimentos
políticos precipitaram-se com demarcada violência. José Bonifácio rui
por terra. É preso. É, como consequência natural, lançado imediatamente fora da
tutoria.
Com a queda do patriarca, surge na ribalta política o Marquês de
Itanhaém. E o primeiro ato do novo tutor, está claro, foi despedir a Condessa
de Itapagipe do cargo de Camareira e nomear D. Mariana Carlota para o
refulgente posto.
Lá
diz a crónica: — "As intrigas palacianas não eram desconhecidas do Marquez
de Itanhaen mas, uma vez na posse do cargo, fez logo chamar a Condessa de Belmonte,
a sra. d. Mariana Carlota, para tornar a servir como Primeira Dama do
Imperador."
*
* *
O
Marquês e D. Mariana, muito concordes em tudo, dirigiram, a partir dali,
serenamente e harmonicamente, a vida privada de São Cristóvão. Nomearam,
juntos, as damas de honor, as açafatas, as retretas, as criadas de servir.
Entre as retretas, que eram quatro, estava a de nome Maria Angélica Beltrão.
Era ela quem, todas as tardes, invariavelmente, abria as janelas que dão para o
parque.
— As janelas estão abertas,
Marquês!
E o Marquês, todas as tardes, invariavelmente, cravava na moça os seus olhinhos
cúpidos. E pensava:
— Bonita retreta!
Itanhaem, por esse tempo, ia beirando os sessenta. Diz o cronista que
"era homem idoso, alto, muito magro e usava chino".
É preciso também que se diga que ele era viúvo. Detalhe importantíssimo
esse: o Marquês enviuvara três vezes!?
Fora a sua primeira mulher aquela D. Teodora Egina Arnout do Rivo,
lisboeta, filha de João Pereira Ramos de Azevedo Coutinho, fidalgo da Casa Real
e desembargador do Paço. A segunda, a distintíssima D. Joana Severina Pinto
Ribeiro, dama de honor da Rainha D. Carlota. A terceira, D. Francisca Matilde
Pinto Ribeiro, filha de José Pinto Ribeiro de Vasconcelos e Sousa, fidalgo
cavaleiro da Casa Real. Casamentos todos fulgurantes. Cada um, como se vê, mais
envaidecedor do que o outro.
No entanto, apesar de viúvo três vezes, apesar dos sessenta anos,
apesar do chino, todas as tardes, quando Maria Angélica dizia: — As janelas
estão abertas, Marquês! — o Marquês, cravando nela os olhinhos cúpidos,
pensava:
— Bonita retreta!
*
* *
Ora,
certa tarde, Maria Angélica entra na galeria de quadros para a obrigação de
costume. E Itanhaém, ao vê-la entrar:
— Senhora D. Maria Angélica!
A retreta acudiu prestes à voz do
amo:
— Vossa Excelência chamou?
— Chamei. Faça o favor de vir até cá. Eu preciso falar
com Vosmecê.
Maria Angélica encara no velho
com espanto. Ele:
— Venha cá, faça o favor.
Sente-se aqui no sofá.
E aponta o sofá de palhinha.
— Oh, senhor Marquês! Sentar-me diante de V. Excia.? Jamais…
— Sente-se, pois não, senhora D. Maria Angélica! Tenha a
bondade… Eu preciso falar com Vosmecê.
A retreta senta-se. Senta-se muito admirada e muito constrangida.
Começa
entre eles, ali, no sofá de palhinha, uma conversa certamente extraordinária. O
Marquês fala baixo. Fala devagar, arrastando as palavras, profundamente
grave. Maria Angélica ouve-o confusa. Tem os olhos no chão. Está vermelha
como lacre. Que é o que disseram? Só Deus o sabe. . . Mas o certo é que, finda
a conversa, a retreta precipita-se, tremula, aos aposentos de D.
Maria Carlota:
– Senhora Condessa! Senhora Condessa!
A Camareira-mor recebera com pasmo:
Que é isto,
Maria Angélica? Que há? Você assim
tão esbaforida!
— Ah, senhora Condessa, V.
Excia. não imagina
o que acaba de me acontecer! Não pode imaginar. . .
— Que foi que houve de tão grave, rapariga? Maria
Angélica faz um gesto largo:
— Eu fui pedida em casamento!
— Ora essa! E você a fazer tamanho barulho por coisa tão
simples! Isso não tem nada de extraordinário. Você é moça; você é bonita; você
é. . .
— Sim, senhora Condessa; mas V. Excia.
não sabe ainda quem me pediu em casamento.
E a retreta,
pondo as mãos na cabeça, num aturdimento:
— Foi o senhor Marquês de Itanhaeml
A
Camareira-mor ouve a revelação estupefaciente. E, por seu turno, não pode
reprimir um brado de assombro:
— O Marquês de Itanhaém? Jesus! Mas o Marquês enlouqueceu! Como foi
isso, Maria Angélica? Conte-me depressa o que houve. . .
A retreta desenrola então, diante da Condessa atónita, os detalhes
daquele singular pedido de casamento. Não havia dúvida: o senhor Marquês de
Itanhaem, o eminente tutor dos filhos de D. Pedro I, o
velho fidalgo cheio de brasões, um dos sangues mais limpos do Império, aquele
mesmo que, por três vezes, se unira por brilhantes casamentos a três damas da
mais pura nobreza, agora, aos sessenta anos, resolvera, estranhamente, a casar-se
de novo: e, o que é mais, a casar-se com uma simples retreta do Paço, sem
família nem títulos, que ganhava por mês, como as demais empregadas,
29$200!
D. Mariana (que poderia a Condessa lá fazer?) aplaudiu logo aquelas
núpcias. E o casamento incrível realizou-se sem tardança. Mas realizou-se em
segredo, na capela do Paço, sem outra testemunha a não ser a Condessa de
Belmonte. Que a crónica, donde eu extraio o episódio, conte o curioso caso. Ela
contará melhor do que eu: (*)
"Um certo dia a retreta D. Maria Angélica Beltrão foi ao quarto de
dona Mariana e lhe disse: — Venho dar-lhe uma grande novidade. Fui pedida
em casamento, agora mesmo, com grande pasmo meu, pelo senhor
Marquês de Itanhaen. Será que eu posso unir-me ao senhor Marquês? — Consultada,
dona Mariana apoiou favoravelmente. Mais tarde realizou-se o consórcio
secretamente. Mas os cônjuges continuaram a viver como dantes. Parecia que o
Marquês se sentia com falta de coragem para divulgar o seu novo enlace aos 60
anos e com uma retreta, embora fosse bonita senhora.
(*) Henri Raffard, "Pessoas e Cousas do
Brasil".
Continuaram a viver como
dantes…"
Sim, o senhor Marquês de Itanhaém continuou a ser o eminente tutor dos
príncipes imperiais; Maria Angélica continuou a ser a humilde arrumadeira do
Paço.
Por
isso, na tarde mesma do casamento, ao terminar o ato, Maria Angélica recomeçou,
como de costume, a fazer a obrigação habitual.
— As janelas estão abertas,
Marquês!
E o Marquês, alto, magro, com o seu chino alourado, pôs-se a passear,
com o rosário na mão, ao longo das janelas que dão para o parque. Os hábitos de
São Cristóvão não haviam mudado dum átomo.
*
* *
Passaram-se três meses. Tudo, naquela vida artificial, correra até
aí, em mar de rosas. Mas eis que certo
dia, Itanhaem, agitado, procura com ansiedade a Condessa de Belmonte. Trancam-se
os dois num quarto. Conversam longamente.
— V. Excia. está bem certo disso, Marquês?
—
Absolutamente certo! Afianço-lhe, Condessa, que a Maria Angélica vai ser mãe.
Ora, à vista disto, não podemos mais sustentar esta situação em que vivemos. É
preciso agora, custe o que custar, que toda a gente saiba do casamento. E V. Excia. Condessa, é quem vai me ajudar nisso! Tenha paciência. . .
Lá narra o cronista:
"Tornou-se,
porém, crítica a situação de d. Maria Angélica, quando ela se conheceu em
estado interessante. O Marquês recorreu a d. Mariana. Esta senhora
prontificou-se a auxiliá-lo, isto é, a fazer oportunamente a conveniente
participação".
Dois
de dezembro. Dia de gala. Aniversário do herdeiro do trono, o futuro D. Pedro II. As damas acorrem garridamente ao Paço. Vêm todas beijar a mão do
pequerrucho imperial. A Camareira-mor, atufada nos seus gorgorões de seda, toda
refulgente de pedrarias, recebe a corte no salão de honra. Tem a seu lado, numa
larga poltrona de espaldar, uma elegantíssima senhora, moça e bela, que traz o
pescoço enrolado numa gargantilha de pérolas.
Começa o cortejo.
A primeira a entrar é a senhora Condessa de Itapagipe,
a antiga Camareira-mor. D. Mariana e a Condessa de Itapagipe saúdam-se
festivamente. Beijam-se. A Condessa repara logo na moça ao lado. E, com
surpresa:
— Como? É você, Maria Angélica?
D. Mariana intervém, muito grave:
— Não
é mais a Maria Angélica, Condessa: é a senhora Marquesa de Itanhaém.
A antiga camareira ouve aquilo. Ouve e não compreende bem.
— Como?
— Não é mais a Maria Angélica, Condessa: é
a senhora Marquesa de Itanhaém. . .
A Condessa de Itapagipe arregala dois olhos imensos:
—
Marquesa de Itanhaém?
— Sim, Condessa. O Marquês casou-se com a excelentíssima
senhora D. Maria Angélica. Foi um casamento íntimo. Não houve festa, nem pompa.
O Marquês, naquela idade, já não é homem para banquetes e danças. V. Excia. não sabia? Oh, mas isso já é coisa velha, Condessa! Vamos antes
falar das coisas novas, que têm mais graça. . . V. Excia.
já foi ouvir o Mont’Alverne?
A notícia tomba como um raio. A Corte ferve. Há
cochichos. Comentários pelos cantos. Leques tapando risinhos sarcásticos. Toda
a gente saúda, entre mesuras irónicas, com venenosa malícia, a nova Marquesa de
Itanhaém.
Mas
que importava aquilo? Que importavam aquelas perversidades? A realidade era uma
e fatal: a re-treta Maria Angélica alçara-se à culminância de Marquesa de
Itanhaém. Carecia recebê-la como tal. A Corte — que fazer? — curvou-se,
respeitosa e reverente, diante da última esposa do tutor de D. Pedro.
São
cinco horas. Tarde afogueada, tropical. Na galeria dos quadros, aconchegados e
felizes, estão os novos Marqueses de Itanhaém.
O Marquês põe na Marquesa os seus olhinhos cúpidos. E sorri. Sorri com
aquele ar de homem ditoso, homem que já vai pelos sessenta, tem chino alourado,
pigarro, e uma encantadora esposa de vinte e dois anos sadios e frescos.
Eis
que entra a nova retreta. E a substituta de D. Maria Angélica, dobrando o
joelho, com fundo respeito:
— As janelas estão abertas,
Marquês!
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