As Regras do Método Sociológico na composição de Algumas Formas Primitivas de Classificação de Durkheim
Ângelo Fornazari Batista.
Introdução
Auguste Comte, filósofo e
inaugurador da Sociologia, propõe em seu livro “Curso de Filosofia Positiva”, na
primeira metade do século XIX, que a história da humanidade é constituída por
três estágios. O estágio teológico, o metafísico e o positivo.
O estágio teológico tem
como característica básica a explicação da natureza mediante seres
sobrenaturais. Como no início dos tempos, a humanidade ainda não tinha ainda
tempo suficiente para observar a natureza. Desta falta de observação e
necessitando explicar os fenômenos a sua volta, o homem, entregue ao desespero
e à acomodação, tendeu a se projetar na natureza. Isto é, todas as ocorrências
naturais são fetiches: o Sol, a Lua, as marés, as montanhas ganham vida, estão,
agora, animadas. Ainda no estágio teológico a transmissão do conhecimento é
autoritária: o sacerdote é ponto de sapiência e reverência.
O estado metafísico é o
qual Comte tem menos apreço: este estado permuta a explicação dos seres
sobrenaturais por forças. O conhecimento gerado pelo espírito metafísico deve
ser argumentado e não simplesmente baseado na fé. Etapa de transição entre o
estado teológico e o positivo, o estado em questão, ao mesmo tempo em que
antecipa características deste, retém outras tantas daquele.
Por fim, o estado positivo
é o estado final do desenvolvimento humano. Aqui não estamos mais preocupados
com as explicações causais dos objetos naturais. O homem com espírito positivo
é aquele que se prende às leis da natureza, ignorando suas causas imanentes. Por
exemplo, a física aristotélica baseava seus conhecimentos no modo teológico e
metafísico; ao passo que Newton, e posteriormente Einstein, explicam a queda
dos corpos de maneira indubitavelmente positiva.
A segunda metade do século XIX é
presenteada, na área científica, com a publicação do livro “As Origens das
Espécies”, de Charles Darwin. Grosso modo, com essa publicação o autor
pretende mostrar que as espécies, com o passar das gerações, evoluem por meio
do que ele chama seleção natural. Ao contrário do que afirma o criacionismo, no
evolucionismo o homem é originário de seres mais imperfeitos que ele;
diretamente do macaco.
A Antropologia enquanto área específica
de conhecimento nasce no final do século XIX e início do XX, encabeçada por
estas duas teorias. Considerando o outro como essencialmente inferior, os assim
chamados “antropólogos de gabinete” – dos quais Morgan, Frazer e Tylor são os
expoentes –, viam sua sociedade européia como o estágio máximo do
desenvolvimento humano, reduzindo à barbárie ou à selvageria aquelas que não
suas próprias. Deste modo, para os evolucionistas, a seleção natural não se dá
somente em relação às espécies animais – como tenciona Darwin –; o progresso é
verificado também no âmbito social, como quer Comte.
Aceitando o modo de pensar
positivista[1]
recém inaugurado por Comte; Durkheim, entretanto, nega que a história seja
teleológica: não há uma sociedade universal, tampouco valores morais absolutos
socialmente ou humanamente imanentes. Em suma, não existe ou existiu uma
sociedade, mas sim sociedades diversas, cada qual com suas
especificidades. Ao contrário do que afirma Quintaneiro[2], para ele,
nenhum fato corrobora aquilo que chamamos de progresso da humanidade. Pois
um povo que substitui outro não é simplesmente um
prolongamento deste último com algumas características novas; ele é outro,
tem algumas propriedades a mais, outras a menos; constitui uma individualidade
nova, e todas essas individualidades distintas, sendo heterogêneas, não
podem fundir numa mesma série contínua, nem, sobretudo, numa única série[3].
Mas isso não significa, é importante salientar, que traços
sociais remotos não possam ser encontrados nas sociedades atuais, apesar de
completamente desfigurados.
Em Algumas Formas Primitivas de
Classificação, E. Durkheim – em parceria com seu sobrinho Marcel Mauss –,
valendo-se de uma metodologia ímpar, procurará mostrar que não há uma linha
divisória qualitativa entre os conhecimentos oriundos da Sociologia e da
Antropologia, uma vez que ambas fazem parte de uma única ciência, a ciência social.
Nesta monografia, longe de ver os primitivos ou arcaicos como inferiores em
relação aos europeus de sua época, o autor em questão sugestiona que
nosso modo de classificar as coisas do mundo tem como germe o das tribos
australianas. Por mais que sejam vistas como aberrações, aos olhos do senso
comum, estas duas diferentes formas classificatórias.
Desenvolvimento
Aristóteles, no século IV a.C, é
consagrado por muitos como o inventor da Analítica: instrumento racional capaz
de conferir a validade de um argumento. Para tanto, ele se valeu de conceitos
como espécie e gênero. Estes ajudam a razão a circunscrever um objeto,
classificando-o, organizando-o, indicando sua anterioridade ou posterioridade
lógica em relação a outro objeto, etc. Assim, devido às noções de gênero e
espécie, é possível inferir com exatidão que a espécie ser-humano está contida
no gênero dos mamíferos; que o catolicismo é uma espécie contida no gênero
religião, entre outros exemplos. Ora, se a Analítica – ou Lógica – nos mostra a
capacidade de organizar, editar e recortar as coisas do mundo por meio de
conceitos, Aristóteles nada mais fez do que verbalizar uma propriedade de nossa
razão, mente, ou como se queira chamar. Ou seja, uma habilidade classificatória
das coisas dispostas no mundo é imamente ao homem, ou melhor, a cada homem
em particular. Durkheim e Mauss, em contrapartida, negarão esta
epistemologia individual; entendendo a sociedade como anterior à formação do
sujeito enquanto particularidade, estes autores colocarão um viés social na
gênese de qualquer conhecimento, isto é, de qualquer classificação.
É fato observável, atualmente, que
ao contrário das ciências naturais – nas quais o objeto de estudo deve-se valer
do principio de não-contradição –, em outras áreas do conhecimento há uma
hibridez e mesmo indiferenciação intrínseca do objeto: no mito de Narciso, a
personagem, antes homem, transforma-se em flor; Eco, outrora ninfa, é agora uma
pedra; a transubstanciação cristã e a santíssima trindade são vários outros
exemplos. Tais fatos demonstram que “não somente nossa noção atual de
classificação tem uma história, mas esta mesma história supõe uma considerável
pré-história[4].”
Esta “pré-história” remete,
segundo nossos autores, principalmente às tribos australianas. Isso porque nas
“sociedades menos evoluídas, (…) o próprio indivíduo perde sua personalidade.
Entre ele e sua alma exterior, entre ele e seu totem, a indistinção é completa.
Sua personalidade e a de seu fellow-animal constituem uma coisa só[5].” De fato, é
importante lembrar, que os indivíduos estão coesos pelo que Durkheim chamou de solidariedade
mecânica, uma vez que seus membros podem ser justapostos para as diferentes
exigências frente à natureza. Este tipo de solidariedade é caracterizado pela diferenciação
do trabalho apenas pelo gênero do ser humano, cabendo ao homem certas
obrigações e à mulher outras; o amálgama social, aqui, é dado pelo totemismo –
a religião ou moralidade.
Com efeito, como mencionado no
parágrafo acima, a tribo em questão têm em comum o totemismo. Este, em linhas
gerais, pode ser caracterizado como a adoração humana sobre animais ou vegetais
principalmente, porém o culto pode se estender a todos os elementos naturais,
como o sol, a lua, a chuva… Em suma, no totemismo, o homem adora a natureza,
aquilo que o difere, mas que ao refleti-lo o entrelaça. Essa dicotomia entre
tribo e/ou clã e natureza é condição sine qua non para qualquer tipo de
classificação, pois para haver conhecimento é necessária uma separação, ainda
que confusa, entre sujeito e objeto. Assim,
bem longe de o homem classificar espontaneamente e por
uma espécie de necessidade natural, no início faltam à humanidade as condições
mais indispensáveis da função classificadora. Aliás, basta analisar em si mesma
a classificação para compreender que o homem não podia encontrar em si mesmo
seus elementos essenciais.[6]
Os “elementos essenciais” de que falam nossos autores são,
como frisamos, a natureza em geral, incluindo, aí, a sociedade de maneira mais
específica. A natureza é vista segundo certa disposição dos homens em um
determinado espaço físico, uma vez que toda tribo é dividida em duas fratrias,
que por sua vez é cindida duas classes matrimoniais, abrangendo nestes espaços
tantos outros clãs; sendo que os homens deste último têm todos por adoração o
mesmo totem. As tribos australianas, por exemplo, são assim representadas: a
fratria I corresponde, obviamente, além das duas classes matrimoniais o clã da
avestruz, da serpente, da lagarta, etc.; na fratria II, além de outras duas
classes matrimoniais, é encontrado o clã do canguru, do opossum, do corvo,
entre outros. Durkheim e Mauss – percorrendo um longo caminho que vai desde as
tribos australianas, passando pelos Aruntas, pelos Zuñis e pela China até
chegar à Grécia antiga – exemplificam como deste modelo inicial de
classificação o homem chegou à classificação conceitual tal como a concebemos. Com
efeito, a adoração de um mesmo totem por parte dos indivíduos que o relacionam
são as primeiras formas classificativas. Pois,
não é com vistas a regulamentar a própria conduta nem
pra justificar sua prática que o australiano reparte o mundo entre os totens de
sua tribo; mas, sendo que para ele a noção de totem é cardeal, sente a
necessidade de situar com relação a esta todos os demais conhecimentos[7]
Sendo o totemismo os primórdios de
toda religião, nele já está pressuposto uma ética[8]: proibições
no consumo de determinadas comidas, regras de parentesco, inimigos declarados,
etc. Por exemplo,
sabe-se que, em todos esses tipos de sociedades, a
morte jamais é considerada como um acontecimento natural, devida à ações
puramente físicas; é quase sempre atribuída à influência mágica de algum
feiticeiro, e a determinação do culpável faz parte integrante dos ritos
fúnebres. Ora, entre os Wakelbura, é a classificação das coisas por fratrias e
por classes matrimoniais que fornece o meio de descobrir a classe à qual
pertence o sujeito responsável, e talvez o próprio sujeito. Sobre o
madeiramento em que repousa o corpo e em torno dele, os guerreiros aplainam
cuidadosamente a terra de forma que a mais ligeira marca seja aí visível. No
dia seguinte, examina-se atentamente o terreno sob o cadáver. Se um animal
passou por ali, facilmente se lhe descobrem as pegadas; os negros deduzem daí a
classe de pessoa que causou a morte de seu parente. Por exemplo, se se
descobrem pegadas de um cão selvagem, saber-se-á que o assassino é um Malera ou
um Banbei; pois é a esta fratria e a classe a que pertence o referido animal.[9]
Ora, se a ética totêmica impõe aos homens sua forma de
classificação, esta só pode se basear, primeiramente, numa distinção entre
aquilo que é profano ou sagrado, haja vista que toda religião se baseia neste
fator diferenciativo. Além disso, distinguir o profano do sagrado pressupõe,
naturalmente, o uso da sensibilidade, do trato com o mundo real e não abstrato.
Assim, categorias racionais do entendimento são descartadas para qualquer
classificação a priori[10].
Isso posto, podemos retomar a tese
de Durkheim contra o evolucionismo:
As diferenças e as semelhanças que determinam a
maneira pela qual se agrupam [as coisas] são mais afetivas que intelectuais. Eis
como as coisas mudam, de certa forma, de natureza de acordo com as sociedades;
é que elas afetam de maneira diferente os sentimentos dos grupos. Aquilo que
aqui é concebido como perfeitamente homogêneo é representado alhures como
essencialmente heterogêneo. Para nós, o espaço é formado de partes semelhantes
entre si, substituíveis umas pelas outras. Vimos, no entanto, que para muitos
povos, é profundamente diferenciado segundo as regiões. É que cada região tem
seu valor afetivo próprio. Sob a influência de sentimentos diversos, ela é
referida a um princípio religioso especial e, por conseguinte, é dotada de
virtudes sui generis que a distinguem de qual outra. E é este valor
emocional das noções que desempenha o papel preponderante na maneira pela qual
as idéias se aproximam ou se separam. É ela que serve de caráter dominador na
classificação[11].
Do decorrido, depreende-se que
antes de buscar as raízes da religião tal como a concebemos, Durkheim e Mauss
estão fazendo, concordando com Florestan Fernandes, uma sociologia do
conhecimento. Buscando nas coisas o fundamento classificatório, os autores em
questão rebatem a afirmação de Frazer. “Segundo ele [Frazer], os homens
ter-se-iam dividido em clãs de acordo com uma classificação prévia das coisas;
ora, muito ao contrário, eles classificaram as coisas porque estavam divididos
em clãs[12].”
Donde a proposição, logo no início da monografia, de nossos autores: “a
classificação das coisas produz essa classificação dos homens.[13]”
Conclusão
Em nosso paper procuramos
enfatizar que a concepção histórica de Durkheim não tem começo, meio e fim
necessários; muito ao contrário, a especificidade de cada sociedade com seu
modo de classificação é dada pela relação dos homens com as coisas hic et
nunc. Salientamos também que é a partir da noção de totem que os homens e
as coisas são classificados. Pois, ao contrário de toda filosofia e psicologia
que buscavam os instrumentos que possibilitavam o conhecimento no indivíduo
isolado, promovendo um antropocentrismo; Durkheim e Mauss propõem, como eles
próprios afirmam, um sociocentrismo. Isto é, os conceitos lógicos derivam da
sociedade, melhor dizendo, de determinada sociedade ou da maior parte da
sociedade, pois antes de gênero, espécie, quantidade, qualidade, causalidade,
etc. as coisas foram separadas entre sagradas e profanas.
Entretanto, ao menos a nós, não
fica clara qual a anterioridade lógica na relação entre totem e disposição dos
membros no território, para a questão classificatória. É bem verdade que nossos
autores salientam a primazia do primeiro em detrimento do segundo. Pois, como
já acentuamos anteriormente, “a noção de totem é cardeal”. Aliás,
Quando se quer conhecer a forma como uma sociedade se
divide politicamente, como essas divisões se compõem, a fusão mais ou menos
completa que existe entre elas, não é por meio de uma inspeção material e por
observações geográficas que se pode chegar a isso; pois estas divisões são
morais, ainda que tenham alguma base na natureza física[14].
Pensamos, por outro lado, que essa
“alguma” força que a natureza física imprime nas formas de classificação não é
tão pequena assim. Diversos exemplos ao longo de Algumas formas primitivas de classificação são citados
em que o sub-totem passa à categoria de totem devido à expansão ou mudança
territorial dos homens. Ora, se o totemismo tivesse maior peso às formas de
classificação do que a “natureza física”, os princípios de não-contradição que,
invariavelmente, são violados em decorrência da elevação do sub-totem ao totem,
deveriam ser sentidos, uma vez que esta constante subsunção tornaria as coisas,
com o passar do tempo, tendo ao mesmo tempo caráter profano e sagrado. Enfim,
se nossa interpretação é coerente, a localização geográfica é, antes do
totemismo, determinante às formas de classificação.
Essa inversão lógico-temporal que
estamos propondo, entretanto, não vai ao encontro com as conclusões de nossos
autores; e sim a confirma, haja vista que dela decorre o que Durkheim chama de anomia.
De fato, foi a expansão territorial que, influenciando a religiosidade
compreendida no totemismo, acabou por confundir o que é sagrado com o que é profano.
Dessa insustentabilidade chega-se à falência classificatória inicial, dando
lugar à classificação conceitual.
Bibliografia
- ARON,
Raymond. As
etapas do pensamento sociológico. São Paulo. Editora Martins
Fontes, 2008 - DURKHEIM,
E. & MAUSS, M. Algumas
formas primitivas de classificação. In: Mauss, Marcel.
Ensaios de Sociologia. São Paulo: Perspectiva, p.399-455, 2005. - DURKHEIM, Emile. Regras do
Método Sociológico, As. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2009. - FERNANDES, F. A Sociologia em
Émile Durkhein. In: Durkheim – Coleção Grandes Cientistas Sociais – Ed. Ática,
1999. - LAPLANTINE, F. Aprender
Antropologia. São Paulo, Ed. brasiliense. 1996. - QUINTANEIRO, Tânia e outros. Um
toque de clássicos. Marx. Durkheim. Weber. Belo Horizonte, Editora da UFMG,
2010
Notas
[1] “Visto ser
pela sensação que o exterior das coisas nos é dado, pode portanto dizer em
resumo: a ciência, para ser objetiva, deve partir não de conceitos que se
formaram sem ela, mas da sensação. É dos dados sensíveis que ela deve tomar
diretamente emprestados os elementos de suas definições iniciais.”
Pouco
mais abaixo, no mesmo parágrafo, temos: “É da sensação que emanam todas as
idéias gerais, verdadeiras ou falsas, cientificas ou não. Portanto, o ponto de
partida da ciência ou conhecimento especulativo não poderia ser outro que o do
conhecimento vulgar ou prático.” DURKHEIM. As Regras do Método Sociológico, p.
44
[2] “(…)
entre os pressupostos constitutivos da atmosfera intelectual da qual se
impregnaria a teoria sociológica durkheimiana, cabe salientar a crença de que a
humanidade avança no sentido de seu gradual aperfeiçoamento, governada por uma
força inexorável: a lei do progresso. ”QUINTANEIRO. Um Toque de Clássicos. P.
67
[3] DURKHEIM.
As Regras do Método Sociológico, p. 21 (grifo nosso)
[4]
DURKHEIM/MAUSS. Algumas Formas Primitivas de Classificação, p. 400
[5] IBID. p,
401
[6] IBID. p,
402
[7] IBID. p,
451 (grifo nosso)
[8] A
moralidade implícita no totemismo o torna um fato social, uma que vez “para
decidir se um preceito é moral ou não, devemos examinar se ele apresenta ou não
o sinal da exterior da moralidade, esse sinal consiste numa sanção repressiva
difusa, ou seja, numa reprovação da opinião pública que vinga toda violação do
preceito”. DURKHEIM. As Regras do Método Sociológico, p. 42
[9] IBID. p,
408
[10] Cf. IBID
p. 453-454
[11] IBID. p.
454 (grifo nosso. Em relação às diferentes concepções dos povos sobre o espaço
representacional, cf. a partir do sexto parágrafo p.435-450
[12] IBID. p. 451
[13] IBID. p, 405
[14]
DURKHEIM. As Regras do Método Sociológico, p. 11 (grifo nosso)
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