Da trilogia “Os Caminhos da Liberdade” – Com a morte na alma, de Jean-Paul Sartre

Da
trilogia “Os Caminhos da Liberdade”

“Com
a Morte na Alma”

 

Jean
Paul Sartre

 

Existência
e Subjetividade

Paula
Ignacio

 

 

 

            “A
Idade da Razão
”, “Sursis” e “Com a Morte na Alma” são livros
fazem parte da trilogia Caminhos da Liberdade, do filósofo existencialista
francês Jean Paul Sartre.

 

No primeiro, A Idade da Razão, as questões individuais predominam.
No segundo volume da trilogia, Sursis, os acontecimentos políticos
revelam que os projetos de vida individuais são, na verdade, determinados pelo
curso da história, tornando-se ilusória a busca da liberdade num plano
puramente pessoal: a liberdade é sempre vivida "em situação" e
realizada no engajamento de projetos voltados para interesses humanos
comunitários. Apenas um compromisso com a história pode dar sentido à existência
individual. Em Com a Morte na Alma, último romance da trilogia, Sartre
nos descreve indiretamente a tese do engajamento gratuito.

 

Trata-se de uma história que descreve a invasão das tropas alemãs na França,
durante a II Guerra Mundial, em junho de 1940. Através das descrições e
subjetividade de suas personagens, é possível localizar em diversos trechos do
livro alguns dos principais conceitos do filósofo, que foi combatente durante
esse mesmo período e esteve aprisionado em um campo de concentração.

 

O livro descreve principalmente a subjetividade de soldados franceses
quando estes já estavam prestes a se tornarem prisioneiros de guerra, alguns,
conformados com as batalhas perdidas, outros, entregando-se à morte num ato
quase heróico, se para o escritor, o heroísmo não passasse de mera construção
do indivíduo que é obrigado a ver-se livre para fazer escolhas.

 

Mathieu, um jovem professor de filosofia, entre combatentes franceses
pouco instruídos, que entregam-se à incapacidade de decidirem o que fazer
quando são abandonados pelo próprio general; Daniel, um pederasta que tem como
objeto de desejo um jovem poeta que decide entregar-se ao suicídio; e Brunet,
um comunista que mesmo preso num campo de concentração e entregue à fome e ao
abandono não desiste de seus ideais, são, dentre as muitas personagens, os
tipos psicológicos típicos de uma doutrina existencialista ateísta.

 

No livro “O Existencialismo é um Humanismo”, Sartre descreve a
doutrina existencialista como não sendo apenas subjetividade pura para o
indivíduo, mas também inter-subjetividade. A inter-subjetividade sugere que
toda e qualquer escolha do indivíduo também diz respeito à escolha da
humanidade em geral. O homem escolhe o próprio homem, quando faz escolhas para
si mesmo, pois assim escolhe a imagem que faz do próprio homem. Quando é
obrigado a ver-se livre para fazer escolhas, e percebe que nunca são exatamente
certas, pois não há uma cartilha que descreva como deve ser um homem, uma vez
que o homem se inventa a cada instante com suas escolhas através de seus atos,
mas que ao escolher necessariamente estabelece um valor a elas, torna-se
responsável não apenas por si mesmo, mas por todos os outros, pois a valoração
é de ordem ética, e a ética diz respeito à sociedade. Nesse sentido, é necessário
um certo “engajamento” gratuito, ou seja, a percepção de que a sua própria
escolha é tão importante, que se todos escolhessem a mesma coisa, seria bom
para todos? Podemos perceber neste ponto que essa filosofia se assemelha à
ética kantiana, que é citada neste livro. Mesmo quando os homens optam por não
fazer escolhas, já estão fazendo. E o não engajamento, ou seja, quando as
escolhas são feitas sem a preocupação com outros homens, há o ocultamento de
outros, nisso constitui um enganar-se a si mesmo, e necessariamente, ao agir de
“má-fé”.

 

No entanto, mesmo quando existe o engajamento, a responsabilidade de
optar por si mesmo e por todos é demasiada angustiante para os homens.

 

O homem existe porque se lança para o futuro, projeta-se no futuro. E
neste livro, “Com a Morte na Alma”, estas três personagens, em especial, não
conseguem se projetar num futuro, visto que a França já estava tomada pelos
alemães, e eles não sabiam exatamente o que poderia acontecer. A narrativa
frustrante dessas personagens nos mostra uma situação onde o engajamento, a
inter-subjetividade, a angústia, as escolhas e o desespero aparecem de maneira
gritante.

 

Mathieu, o jovem professor de filosofia, percebe-se diferente e ao mesmo
tempo igual aos outros combatentes. Ele não consegue se ver projetado num
futuro, pois ainda não havia decidido o que fazer, portanto, nesse momento
continuava procurando um sentido para dar à sua existência. Os homens podem
agir de maneiras diferentes quando expostos a uma mesma e difícil situação, mas
existe o medo e todos são tomados por uma certa angústia ao serem “libertados”
de seus postos, quando o general abandona-os. Eles não sabem ao certo o que
fazer, quando não há mais ninguém para lhes dar ordens. Ao perceberem
claramente que a partir desse determinado momento são livres para escolherem o
seu destino, podem ficar, e lutar contra os soldados alemães, ou fugirem, ou
matarem-se, e entram em um certo desespero, pois não há como renegar uma
escolha, mas essas escolhas dependem desse determinado campo de possibilidades
possíveis. Se ficarem em seus postos e lutarem contra os alemães, podem ser
aprisionados, ou morrerem. Ou podem tornar-se empregados do exército alemão, dentre
algumas possibilidades. Como não sabem ao certo o que lhes pode acontecer, alguns
desejam a morte, e podem decidir ficar e serem abatidos pelos soldados alemães.
Podemos perceber que o homem está condenado a ser livre, quando é obrigado a
fazer escolhas.

 

Phillipe, o objeto de desejo de Daniel, é um jovem que havia se alistado,
e sua tropa havia sido abatida. Estudara letras, era poeta. Não suportava a
idéia de ser insultado, tanto pelo próprio padrasto, como a certeza de que, se
vivo, haveria a distância de sua mãe. Sartre o descreve nos pensamentos de
Daniel, como um ser narcisista. A ponto de querer suicidar-se. E Daniel o
encontra exatamente nesta situação, quando o jovem aproxima-se do parapeito de
uma ponte, disposto a entregar-se à morte. Mesmo optando, nesse caso, em não
mais fazer escolhas, havia uma escolha feita. O desejo de se entregar reflete
uma escolha. E Daniel aparece e o desafia a perceber que há muitas escolhas
dentro desse campo de possibilidades, apesar de ele ter a consciência de que o
jovem não poderá contar absolutamente com elas. O jovem não demonstra preocupação
quanto ao fato de que a sua escolha reflete a escolha de toda a humanidade. Se
todos optassem naquele momento pelo suicídio, seria realmente bom? Phillipe é
uma bela descrição e um belo exemplo do conceito de má-fé do filósofo, pois
engana-se à si mesmo.

 

É angustiante ao homem a percepção de que sua escolha pode ser realmente
importante. É angustiante perceber que é obrigado a optar. É angustiante
perceber que sempre vai optar por algo que achar que é mais importante, e que
ao optar, acabará valorando sua escolha, como a melhor para todos. Mais
angustiante ainda perceber que não existe a melhor opção, pois não foi o homem
quem criou o homem e o homem é obrigado a inventar-se quando faz escolhas.
Então a história da humanidade depende também das escolhas individuais.

 

Mas eu não posso contar com homens que não conheço, apoiando-me na
bondade humana, ou no interesse do homem pelo bem da sociedade, sendo aceite
que o homem é livre e que não há nenhuma natureza humana em que eu possa
basear-me
”.[1]

 

            O
engajamento diz respeito a um certo compromisso com a humanidade, a essa
consciência da própria responsabilidade dentro do campo da liberdade de fazer
escolhas. O livro “Com a Morte na Alma” fala principalmente sobre isso.

 

  “Entendemos por existencialismo uma doutrina que torna a vida humana
possível e que, por outro lado, declara que toda a verdade e toda a ação
implicam um meio e uma subjetividade humanas
.”[2]

 

            Se o
homem só existe através de seus atos, podemos ter os fenômenos como modos de
representação do ser. O homem atinge o seu ser através dos fenômenos. É uma
espécie de adequação da consciência entre os sujeitos e os objetos externos. E
através dessa adequação, o homem descobre não somente a si, como também aos
outros. Todo o projeto, por mais individual que seja, tem um valor universal,
pois pode ser compreendido por outros homens.

 

            E é
nesse contexto em que se encontram os soldados franceses, em que se encontra
Mathieu. Ele já não tem mais ideais, já não tem mais aspirações. Já não se
importa com o futuro da França, nem com o futuro dos alemães. Não se importa se
a guerra terminou ou não. Não se importa em ser covarde, nem em ser herói. Mas
suas escolhas na trajetória do livro refletem juízos de valor bem
fundamentados. Após ignorar atitudes as quais julgava insensatas e grosseiras,
após optar diversas vezes em não se deixar abater pela futilidade de seus
companheiros, decide ficar e enfrentar o exército inimigo, não em um ato de
heroísmo, mas numa escolha a qual julgou ser a melhor naquele determinado momento.
Apesar de nunca ter atirado em um homem, sente imenso prazer ao abater um dos
“fritz”. Em outro momento da sua trajetória vital, talvez não, mas durante
apenas 15 minutos, aqueles nos quais ele julgou restarem antes da sua morte,
fora a melhor escolha que poderia fazer.

 

  “Podemos dizer que há uma universalidade do homem, mas ela não é
dada, é indefinidamente construída. Eu construo o universal escolhendo-me;
construo-o compreendendo o projeto de qualquer outro homem, seja qual for a sua
época (…). O que o existencialismo toma a peito mostrar é a ligação do
caráter absoluto do compromisso livre pelo qual cada homem se realiza,
realizando um tipo de humanidade (…). Não há nenhuma diferença entre ser
livremente, ser como projeto, como existência que escolhe a sua essência, e ser
absoluto
.”[3]

 

Quando o general abandona os combatentes à própria sorte, eles passam
dois dias sem saber o que fazer. Tudo era mais simples, quando havia alguém
para lhes dar ordens. Alguns procuram se divertir, outros fogem. Mathieu decide
ficar. Sabia que era cedo demais para morrer, mas tarde demais para voltar
atrás.

 

Sartre procura elevar o existencialismo não à mera subjetividade humana.
Não é ao quietismo que ele se refere, pelo contrário. O quietismo é atitude das
pessoas que pensam que os outros são capazes de fazer algo, enquanto elas não.
O que percebemos nesse último livro da trilogia é o engajamento voluntário
desses soldados franceses. Se colocam ali tanto numa dedicação individual,
quanto na dedicação coletiva. “O homem não é mais do que o que ele faz”. Esse é
o primeiro princípio do existencialismo. E aqui percebemos o quão pragmático é
o existencialismo de Sartre.

 

Principalmente quando descreve Brunet. É um personagem marxista. Ele
acredita na sua ideologia. É aprisionado, juntamente a outros franceses, em um
campo de concentração. Não compreende porque os franceses, que são maioria, não
se rebelam contra os alemães que os guiam ao campo. Nesse momento, ele percebe
que as suas escolhas também dependem das escolhas dos outros.

 

Ao chegarem ao campo de concentração, são abandonados à própria sorte,
sem comida. Não sabem como lidar com aquela situação, alguns enlouquecem,
outros brigam, distraem-se assim. Brunet procura fazer dessa experiência uma
boa oportunidade para “aliciar” camaradas para o partido comunista. Explica aos
companheiros os fundamentos básicos do socialismo, e a importância da
liberdade, enquanto escolha de um para todos, e de todos para um.

 

O marxismo já pressupõe atos, e capacidade de ação. E a ação voltada para
a coletividade. Dessa forma, descrevendo Brunet, ele nos apresenta o
existencialismo como uma doutrina otimista, que pressupõe a capacidade de
decidir por si mesmo, e por outros.

 

Pois o Existencialismo não é, nunca foi, uma mera interpretação
filosófica. Sempre conteve em suas premissas fortíssimos elementos de puro
pragmatismo. Partindo-se do principio de que não existe nenhum ser supremo
supra-humano que estabeleça a priori as condições morais e subjetivas da
existência, tem-se portanto o fato de que o homem nasce total e completamente
livre. Sem limitações, sem delimitações. Está sozinho, consigo e com os demais
homens. Está Obrigado a ser Livre!
Por um lado, tal pensamento poderia levar a um estado de niilismo, de dúvidas e
de perplexidade, sem horizontes, ou saídas visíveis. Paradoxalmente, para
Sartre (ou, pelo menos, o paradoxo é aparente à primeira vista descuidada) esta
liberdade ‘compulsória’ não leva ao niilismo passivo, muito menos à repugnante
auto-complacência burguesa: para se completar e assumir sua plena liberdade
individual, este ‘indivíduo’ necessita da interação social. Serão inevitáveis e
lógicos os pontos de encontro entre o marxismo e o existencialismo
”.[4]

 

 

É fácil cair no niilismo ao falar sobre essa filosofia. Nossas ações
refletem a escolha da humanidade, já que escolhendo, valoramos a imagem do
homem, e as ações dos outros homens refletem as nossas, e disso nasce a
angústia, da incapacidade de saber se as escolhas feitas são realmente as
melhores. Nunca saberemos. O existencialista não tomará nunca o homem como fim,
pois o homem está sempre por se construir.

 

No final do livro, aparece uma nova personagem. Um padre, dentre os
prisioneiros do campo de concentração, que tenta promover ensinamentos
bíblicos. O existencialismo de Sartre é ateísta, percebemos isso através do que
ele nos diz sobre as escolhas. Se Deus escolhesse pelos homens, então não
haveria angústia. O existencialismo é a doutrina da ação, pois o homem decide e
faz escolhas o tempo todo. O homem existe, enquanto procura invariavelmente
transcender a própria subjetividade, mas não é capaz de fazê-lo. O fim último
das escolhas humanas, assim sendo, é a liberdade. Não há como fugir da
liberdade. O homem está condenado a ser livre. Livre para fazer escolhas, e
inventar-se através delas.

Bibliografia

 

SARTRE, Jean Paul. Com a Morte
na Alma
. Ed. Difusão Européia do Livro, São Paulo, 1968.

 

SARTRE, Jean Paul. O
Existencialismo é um Humanismo
. Ed. Divulgação e Ensaio, 2ª edição, Lisboa,
1970.

 

FERREIRA, Vergílio. Da
Fenomenologia a Sartre
. In: O Existencialismo é um Humanismo. Ed.
Divulgação e Ensaio, Lisboa, 1970.

 

VIEIRA, Claudinei. Resenha de Os
Caminhos da Liberdade
. In:
http://igeducacao.ig.com.br/igler/materias/320001-320500/320054/320054_1.html.

 

 

 

 

 

 

 

 

 


[1]
SARTRE, Jean Paul. O Existencialismo é um Humanismo. Editorial Presença, 2ª
edição, pg. 265.

[2]
Idem, pg. 235.

[3]
Ibdem, pg. 279.

[4]
VIEIRA, Claudinei. In:
http://igeducacao.ig.com.br/igler/materias/320001- 320500/320054/320054_1.html

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