EUCLIDES DA CUNHA – Biografia e obra Os Sertões

EUCLIDES DA CUNHA (Cantagalo, no Estado do Rio, 1868-1909) era formado em Matemática e Ciências Físicas pela Escola Superior da Guerra. Desligado das fileiras por um ato de indisciplina quando aluno da Escola Militar, voltou ao Exército depois do movimento militar de 1889 e da consecutiva proclamação da República.

Em 1893, durante o terror de um estado de sítio, corajoso protestou, pela imprensa, contra a crueldade sugerida por um senador federal, que lembrara a asfixia dos presos políticos, no caso de ser a cidade atacada pelas forças navais dos almirantes Custódio de Melo e Saldanha da Gama.

Deixando a vida militar, Euclides ganhou de chofre o renome de escritor quando, após a sangrenta expedição contra os jagunços chefiados por Antônio Conselheiro, publicou o seu livro Os Sertões, Campanha de Canudos, do qual já se fêz mais de uma dezena de edições. Realmente, há nessa obra a revelação de um observador e narrador de subido quilate.

(162) Concertar do lat. concertare, de certare, lutar e o pref. con.. combater, lutar juntos, e, pois, rivalizarem nos esforços, unirem-se para determinado fim. Consertar, do lat. ‘consertare, freqüentativo de conseríre, ajuntar, ligar, coser, remendar. Os músicos efetuam um concerto musical, como pode haver concertos de vozes, de opiniões, etc; o artesão faz o conserto dos sapatos, do relógio, de um prédio etc.

São suas outras produções: o Relatório da Comissão Mista Brasileira-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus, Contrastes e Confrontos, Peru versus Bolívia, livro traduzido em espanhol pelo presidente da Bolívia Eliodoro Villazon; Martim Garcia, uma conferência sobre Castro Alves; e a sua obra póstuma à Margem da História.

Euclides pereceu a 15 de agosto de 1909.

O Sertanejo

O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurasténicos do litoral.

A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeño, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente acurvada, num manifestar de displicência, que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos descansando sobre a espenda (163) da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança céleremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros (164) das trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro ou travar ligeira conversa com um amigo, cai logo — cai, é o termo — de cócoras, atravessando largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma simpli cidade a um tempo ridícula e adorável. (165).

É o homem permanentemente fatigado.

Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular perene em tudo: na palavra remorada, no gesto contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na tendência constante à imobilidade e à quietude.

Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude. Nada é mais surpreendente do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormecidas.

O homem transfigura-se. Empertiga-se estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma–se-lhe, alta, sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu achamboado, (166) reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento inesperado de força e agilidade extraordinárias.

Este contraste impõe-se à mais leve observação. Revela-se a todo o momento, em todos os pormenores da vida sertaneja — caracterizado sempre pela intercadência impressionadora entre extremos impulsos e apatias longas.

É impossível idear-se cavaleiro mais descuidado e deselegante; sem posição, pernas coladas no bojo da montada, tronco pendido para a frente e oscilando à feição da andadura dos pequenos cavalos do sertão, desferrados e maltratados, resistentes e rápidos como poucos. Nesta posição indolente, acompanhando morosamente, a passo, pelas chapadas, o passo tardo das boiadas, o vaqueiro preguiçoso quase transforma o campião que cavalga na rede amolecedora em que atravessa dois terços da existência.

Mas se uma rês alevantada envereda, esquiva, adiante pela caatinga garranchenta, (167) ou se uma ponta de gado, ao longe, se trasmalha (168), ei-lo em momentos transformado, cravando os acicates de rosetas largas nas ilhargas da montaria, e partindo como um dardo, atufando-se velozmente nos dédalos inextricáveis das juremas.

Vimo-lo neste steeple-chase bárbaro.

Não há contê-lo, então, no ímpeto. Que se lhe antolhem quebradas, acervos de pedras, coivaras, moutas de espinhos ou barrancas de ribeirões, nada lhe impede encalçar (169) o garrote desgarrado, porque por onde passa o boi, passa o vaqueiro com o seu cavalo.. .

Colado ao dorso deste, confundindo-se com êle, graças à pressão dos jarrêtes firmes, realiza a criação bizarra de um centauro bronco: emergindo inopinadamente nas clareiras; mergulhando, adiante, nas macegas altas: saltando valos e ipueiras; vingando cômoros (170) alçados; rompendo célere pelos espinheiros mordentes; precipitando-se a toda brida, no largo dos tabuleiros.. .

A sua compleição robusta ostenta-se nesta ocasião, em toda a plenitude.

Como que é o cavaleiro robusto que empresta vigor ao cavalo pequenino e frágil, sustendo-o nas rédeas improvisadas de caroá, suspendendo-o nas esporas, arrojando-o na carreira — estribando curto, pernas encolhidas, joelhos fincados para a frente, torso colado no arção —■ escanchado no rastro do novilho, esquivo: aqui curvando-se agilíssimo, sob uma galhada, que lhe roça quase pela sela; além desmontando de repente, como um acrobata, (171) agarrado às crinas do animal, para fugir ao embate de um tronco percebido no último momento, e galgando, logo depois, num pulo, o selim; — e galopando sempre, através de todos os obstáculos, sopesando à destra, sem a perder nunca, sem a deixar no emaranhado dos cipoais, a longa aguilhada de ponta de ferro encastoado em couro, que por si só constituiria, noutras mãos, sérios obstáculos à travessia.

Mas, terminada a refrega, restituída ao rebanho a rês dominada, ei-lo, de novo caído sobre o lombilho retovado, (172) outra vez desgracioso e indolente, oscilando à feição da andadura lenta, com a aparência triste de um inválido (173) fatigado.

(OS SERTÕES, Campanha de Canudos — 2.a ed., 1903).

 

(163) Espenda é termo antigo: é a parte da sela em que assentam as coxas do cavaleiro. (164) O subst. meandro (— sinuosidade, caminho sinuoso, e, por extensão, enredo) é exemplo do fenômeno semântico da generalização do particular: é o emprego do nome do tortuoso rio Meandro, da Ásia-Menor, como nome comum. Fato idêntico se dá com outros vocábulos: dédato, damasco, conhaque, lázaro, bengala, calepino, sanduíche, zoilo, cambraia, messalina, fígaro, catão, casemira, gari, belchior e outros mais, que todos são, na origem, topónimos ou antropônimos. (165) Incide insólitamente Euclides no abuso do adjetivo adorável, inadequado aí: ao contrário do que se verifica na justeza ordinária de sua vibrante e opulenta linguagem. (166) Achamboado — papalvo, abobado, simplório: essa idéia depreciativa está expressa no Dicionário de Sinônimos de Rocha Pombo por mais de cem termos do nosso vasto cabedal vernáculo. Na 6.a ed. lê-sc canhestro, em vez de achamboado, emenda possível do A. e de maior justeza. (167) a caatinga garrancheta — caatinga (do tupi, caá, mato + tinga, branco): mato raio, pouco abundante; garranchenta: de garrancho (= arbusto tortuoso, galho fino e torto): cheia de garranchos. (168) O prefixo lat. trans toma as seguintes formas, no vernáculo: transatlântico, transigir, translúcido; trasladar, //-asmalhar (ou tresmalhar); traduzir, /r/imontana, rradição; tresandar, tresloucado, íresnoitar, //•escalar, raspasse; /rejeito. (169) Encalçar = ir no encalço; este do lat. calce, calcanhar, formou *incalceare e *accalceare e daí encalçar e acalçar, de onde sai, por cruzamento, ancalçar e, por metátese, alcançar. Da idéia de ir no encalço, resulta a de atacar, acometer; o deverbal alcance significa também, por tal motivo, ataque, como se lê em Rui: "…dar sucessivamente alcance aos erros, malignidades e sofismas"… (Rêpl., concl., p. 597). (170) Cômoro e combro são alotrópicos; a fonte deve ser cumulu com a forma intermediária cumeru. Com a queda da postônica de cômoro, à bilabial — m ■—■ juntou-se a bilabial — b — para facilitar a pronúncia, por seguir-se a vibrante — r —: com (o)ro > combro. Esse fato fonético repete-se em lembrar (de mem(o)rare), ombro (de um (e)ru), cogombro (de cucum (e)ru); e nas formas populares numbro (de num(e)rit), cambra (de cam(e)ra) e na arcaica tombro (de tum (»)/") etc. (171) O Pequeno Vocabulário da Academia escreve acrobata em vez de acrobata, e o mesmo faz com aerobata, estereobata, estilobata e nelelibata, contra a lição de Ramiz Galvão; mas põe apóbata e anemóbata, esdrúxulos. (172) Retovado — coberto ou forrado de couro. (173) Inválido (composto com o pref. negat. in) = carecido de ou falto de saúde; do v. lat. valfre: ter saúde, ser’ forte. Valente = robusto, bem disposto; e, por isso, arrojado, destemeroso. Há válido e valido. Válido é o que tem saúde, a qual falta ao inválido; valido, o que tem amparo ou proteção, que não possui o desvalido.


Seleção e Notas de Fausto Barreto e Carlos de Laet. Fonte: Antologia nacional, Livraria Francisco Alves.

 

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