GILGAMESH E SÍSIFO: SOBRE O HOMEM E O MUNDO

GILGAMESH
E SÍSIFO:

sobre
o homem e sua finitude no mundo

 

Ednei de Genaro

Aluno mestrando da
UFSC (2008)

The figure holding a lion cub is
from the palace of Sargon in Khorsabad, and is presumed to represent Gilgamesh,
fabled king of Uruk, the king who visited the Arabian island of Dilmun Illlustration Courtesy of Aramco World, 6/7/1996.

 

Sísifo. Óleo sobre tela de Franz von
Stuck (1863/1928). Data: 1920. Coleção particular. Foto: Ranveig, 2005.

E no final da vida,
após percorrer variadas aventuras para encontrar

a fórmula da
imortalidade, Gilgamesh encontrou uma simples ‘taverneira’ que disse:

 

“Por que vagabundear
assim, Gilgamesh? / A vida sem fim que buscas, /Nunca encontrarás! / Quando os
deuses/ criaram os homens, / Eles determinaram-lhes / A morte/ E reservaram a
imortalidade / Apenas a eles próprios! / Tu, de preferência, / Enche a pança, /
Vive alegre, / Dia e noite, / Festeja diariamente, / Dança e diverte-se, / Dia
e noite, / Veste roupas limpas. / Lava-te / Banha-se, / Olha com ternura / Teu
filho que te dá a mão, / E faça a felicidade de tua mulher, / Abraça-a a ti: /
Pois essa é / A única perspectiva dos homens!”

(Da “Epopéia de
Gilgamesh”).

 

A história nos mostra que
o tema do homem e seu destino no mundo foi palco das mais variadas construções
mitológicas e religiosas relacionadas com o fenômeno mais singular da vida – a
sua finitude. Muitas civilizações nos legaram importantes artes e ensinamentos
acerca disso.

Conhecendo a história da
humanidade, podemos compreender as criações dos mitos e ritos, deuses e
demônios, figuras do Bem e do Mal, pelos quais o homem deu sentido à vida e às
coisas. Se, ainda hoje, a questão da finitude da existência humana no Ocidente
é algo visto, majoritariamente, a partir da metafísica do cristianismo, é
porque a ascensão dessa religião, desde o início da Idade Média, transformou
nossas formas de sentir e representar o mundo. Hoje, no Ocidente, permeia-se o
imaginário das ordens não-terrenas Céu, Purgatório e Inferno e a
prescrição moral que delas provêm, bem como, ele não escapa da idéia de ‘Juízo
Final’, realizado por um Deus cristão.

Algo irremediável aos
seres vivos, a morte sempre foi um enigma. A pergunta sobre o sentido e fim da
vida; do projeto anterior e ulterior dela; ou, da existência e seu além, foi
objeto de reflexão nas mais diferentes civilizações. As histórias de Gilgamesh,
provinda da civilização Sumérica, e Sísifo, da grega, são dois grandes legados
da Antigüidade, dois grandes enredos sobre a finitude humana.

Gilgamesh, rei dos
sumérios, vivido a mais de 2000 anos a.C., foi o primeiro dos homens conhecidos
a se revoltar contra o destino mais certo e aterrador do homem neste mundo: a
morte. Sua “Epopéia”, de mais de 2000 versos, é uma das lendas mais antigas já
escritas, contada através dos primeiros inventores da escrita, antes mesmo de
Homero ter sido reconhecido como autor de “Ulisses”, por volta de 700 a.C.

Conta a lenda que
Gilgamesh, homem de excepcional grandeza e força, tornou-se tirano e viveu sua
vida com orgulho, sem nenhum arrependimento. Revoltando-se contra a morte,
procurou a imortalidade, enfrentando a vontade dos deuses. Estes o condenaram,
punindo com a criação de um sósia, Enkidu, como o inverso de sua personalidade.
Ao saber disso, o grande tirano Gilgamesh foi ser amigo de Enriku. Logo, com a
sedução de Gilgamesh, ambos ambicionaram abolir a lógica inevitável da morte.
No entanto, a Epopéia transforma-se em uma terrível elegia. Quando Enriku é
morto pelos deuses, Gilgamesh assiste a brutal cena. É surpreendido, então,
pela morte fulminante de seu sósia, algo em que Gilgamesh tanto teme. Assiste a força destruidora dos movimentos e alegrias da vida; a
força aniquiladora da beleza do corpo e expositora do oposto de tudo que é
encantador ao homem.

Gilgamesh, triste,
procurou deixar sua obsessão vaidosa contra a morte, perambulou e seguiu
cumprindo suas obrigações como rei, tentado conservar sua juventude. Seu fim
estava em aprender a louvar um otimismo resignado, única atitude razoável
diante da ordem do mundo.

Na antiga Mesopotâmia,
lugar em que viviam os suméricos, os deuses, figuras de feições humanas e
imortais, eram fontes de adoração e ensinamento, tanto para serem servidos
como para serem servidores. Os homens podiam, assim, desfrutar das
capacidades e qualidades dos deuses. No entanto, diferentemente dos deuses, os
homens eram feitos de “argilas”, perecíveis e mortais.

A questão da morte, como
se sabe, não é exclusividade dos sumérios. A antiga civilização egípcia
floresceu a partir de uma religião que pretendia a união e intimidade dos
homens com os deuses. Os egípcios construíram grandes templos e pirâmides para
venerá-los. Ostentavam um culto que permitia aos homens, após a morte, a
eternidade – lugar de morada e de riquezas. Na morte dos grandes reis,
realizavam-se trabalhosos embalsamento dos seus corpos, que eram adornados com
grandes obras de arte. Até hoje se tem admiração por tamanha ostentação e
religiosidade aos rituais funerários dessa civilização.

Os astecas, por sua vez,
possuíam outra cultura peculiar em relação à morte. Povo de religião
politeísta, os astecas atribuíam divindades e ritos para cada instante do tempo
e momentos da vida. As suas relações com os deuses os levavam a colocar em
sacrifício seu próprio povo, presenteando-os em troca de dádivas perenes da
natureza. A vida para os astecas estava em poder das divindades, eram elas que
ditavam e deviam ser respeitadas.

Na civilização grega, a
revolta contra o destino mais certo da existência, também fez surgir uma
personagem de adoração e ensinamento. O mito de Sísifo expõe a questão da
finitude na condição humana na Grécia antiga. Sísifo, rei lendário de Corinto,
tenta enganar os deuses para escapar da morte. Os deuses, descobrindo sua
trapaça, levam Sísifo aos Infernos e condena-o a empurrar uma enorme rocha até
o cume de uma montanha. Tal trabalho não se cessaria, pois cada vez que Sísifo
atingisse o cume, a rocha fatalmente rolaria montanha abaixo e,
inevitavelmente, o rei Sísifo voltaria a iniciar seu trabalho, sempre.

O mito de Sísifo foi
eternizado na filosofia e literatura ocidental como um símbolo do verdadeiro e
sincero amor do homem em relação ao mundo. Sísifo age com desprezo aos deuses,
ódio à morte e paixão pela vida. Mesmo consciente da tortura que o condenaram,
prefere permanecer dono de seu destino e vencer o divórcio entre o ator e o
cenário desta vida, isto é, entre o homem e o mundo.

Sísifo é a expressão da
vitória trágica do homem sobre o seu destino. É condecorado como um mito
mortal, sábio e prudente, uma vez que sua morte depende da sua própria vontade.
O francês Albert Camus, vivido no século XX, escritor de obras literárias e
ensaios filosóficos, é possivelmente o maior interpretador da história do mito
de Sísifo. Dedicou-se e intitulou seu ensaio mais importante ao mito – “O Mito
de Sísifo”[1].
Na verdade, toda a sua vida e pensamento se traduziram em uma latente e
declarada atitude de pensar a existência.

Foi com grande
agnosticismo que Camus viveu e pensou sobre o sentido da vida. Sua obra é
diretamente marcada pela atribuição da existência como desvinculada da idéia de
interação com um mundo físico passível de ser inteligível. ‘A vida seria um
absurdo?’ ‘Qual o trabalho útil da vida?’. Estas são questões fundamentais para
ele.

Camus pôde recuperar o
que ele acreditou ser fundamental no mito de Sísifo: o tema da antinomia e da
angústia com que o homem se relaciona com um mundo em que ele tem que
‘abandonar’. Sísifo nos mostra a impotência do homem frente ao seu destino no
mundo. Como pensador e artista, Camus expressou esse questionamento. Com uma
carga estética admirável, ele interpretou seu tempo e construiu um modo de vida
próprio, no qual rompia com tradições.

“O mundo só tem
sentido porque o damos”
, escreve Camus, no referido ensaio. Sísifo é feliz realizando sua vida,
do mesmo modo com que um homem não abdica do sentimento de felicidade quando
escreve um romance, mesmo não tendo, aparentemente, sentido algum para tal
feito.

Diante das circunstâncias
arbitrárias da vida e da eterna indiferença do mundo, Camus formula uma
intuição básica: a absurdidade da vida. A frase de Nietzsche, “O que
importa não é a vida, é a eterna vivacidade”
, é bastante reveladora para o
sentido da vida que Camus procura para si mesmo. Para ele, os sentimentos de
revolta, liberdade e paixão que encontramos em Sísifo evidenciam as reações
mais íntimas e positivas que o homem expõe diante da irracionalidade da vida.

Para Camus, a resposta
para a pergunta que aterrou Shakespeare, na célebre peça “Hamlet”, vem por meio
do caminho da paixão. Por meio da interpretação do mito, ele intensifica
a idéia de que se torna necessário, simplesmente, ‘continuar experimentando a
existência’. A paixão à vida, satisfaz sua estética da existência.

No século XIX, Flaubert, em seu
romance “Madame Bovary”, construiu uma personagem libertária e libertina, que
luta para encontrar uma justificação a uma vida verdadeira e sincera. Podemos
observar Bovary como um grande exemplo de ‘caminho de paixão’ pela existência,
de que nos fala Camus. Condenada a ter o submisso papel de mulher na moral de
seu tempo, Bovary se revolta e busca sua autenticidade e vivacidade diante do
mundo. Flaubert acentuou, na jovem, a difícil relação entre uma vida prenhe de
energia e ‘fora de tudo’ do que a moralidade da época lhe permite. No fim de
grandes conquista por sua liberdade, Bovary encontra-se diante de um dilema.
Terá que escolher entre abdicar de todas as suas transgressões morais ou
suportar a perda de sua autenticidade e vivacidade para continuar viva.

A resposta de Bovary é o seu
suicídio que, paradoxalmente, demonstra tanto seu fiel amor à verdadeira vida
com a decisão de morrer.

Em Camus e Flaubert
temos, pois, uma grande expressão moderna sobre o tema do homem e sua finitude
no mundo. A relação entre a busca de uma plena existência, no mundo moderno,
levou a novas reflexões na filosofia e literatura. Em nossa época, as
mitologias e religiões dos povos, tiveram grandes repercussões nas reflexões de
grandes filósofos. O pensamento no século XX foi marcado por uma forte abertura
fenomenológica para o entendimento da existência e a sua essência última.
Esta abertura trouxe
consigo a disposição do pensamento à questão da angústia humana perante a
brevidade da vida. O pensamento ousou, assim, aproximar-se do insuperável
confronto entre uma ‘irracionalidade natural’, que nos encobre, e um desejo
humano por clareza
, que brota da interioridade obstinada do homem.

Seja para a redenção ou
salvação, e a exemplo de Sísifo e Gilgamesh, o homem propõe-se a enfrentar o
princípio hostil da morte que, mesmo com ilusões criadas, ele não consegue
dissimular. Aqui, além de Albert Camus, pensadores como Kierkegaard,
Schopenhaeur, Heidegger e Sartre também preconizaram, na filosofia contemporânea,
esta abertura para a contemplação sobre o ser-no-mundo e sua a dimensão
temporal
. Mas, infelizmente, já nos cabe finalizar este ensaio. Aliás, como
diria Camus, “(…) a vida é pequena para quem tanto pensa… O tempo é
curto, a alma estarrece e o absurdo se evidencia”.

 

 


[1]
CAMUS, Albert, 2004, “O Mito de Sísifo”. Rio de Janeiro: Record.

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