Oliveira Lima
Moreira da Maia
Não sei se Moreira da Maia pertence administrativamente a um concelho do Minho ou do Douro: sei que fica a uns 15 quilômetros de Vila do Conde e que são 10 quilômetros mais para o Porto, por uma estrada dantes ótima como eram todas as estradas de rodagem portuguesas e hoje bastante esburacadas, para o que tem contri-
buído o aumento do trafego, sobretudo de automóveis e caminhões, sem os necessários imediatos consertos. Dizia-me um antigo magis-trado c abastado proprietário minhoto que seriam hoje preciso 300 a 400 mil contos para repor as estradas de Portugal na sua antiga condição. Na atual, em muitas delas, é preferível o carro puxado por animais, pelos cavalos magros e velozes das velhas tipóias ou pelos bois de marca pequena e enormes hastes, cujas cabeças, do-hrando-se resignadas ao peso das altas cangas lavradas, oscilam ao chiar, tão nosso, das rodas quando as cunhas lhes apertam o eixo.
Ao chegar à aldeia dobra-se por uma larga e curta estrada som-brejada de grandes árvores e dá-se com um terreiro onde se levanta uma grande igreja de três portas e para onde abrem os portões encimados pela cruz de uma propriedade anexa. Ê a chamada Quinta do Mosteiro, outrora dos frades crúzios, adquirida pelo pai de Vieira de Castro por ocasião da extinção das ordens religiosas e na qual se recolheu a viúva de José Estevão, logo após o falecimento do grande tribuno. Aí cresceu e aí reside seu filho Luís de Magalhães, homem de letras distinto e político monárquico.
Entre os que no Brasil conhecem as letras portuguesas são devidamente apreciados o seu romance — O Brasileiro Soares, não tão realista que o não perfume uma intenção espiritual e o seu poema — Dom Sebastião, tema caro à melancolia do sentir português. A sua atividade pública culminou no tempo do franquismo, quando sobraçou a pasta dos Negócios Estrangeiros, e as suas convicções levaram-no a associar-se a vários movimentos de restauração e a figurar na junta do Porto, pelo que sofreu dois anos de duro cárcere e outros de exílio na Espanha e na Inglaterra.
Personalidade das mais simpáticas e atraentes, pela amenidade do seu trato e pela ilustração do seu espírito, Luís de Magalhães foi muito mimado pela grande geração intelectual a que pertenceram Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queirós e Ramalho Ortigão. Oliveira Martins legou-lhe por testamento o retrato de Antero feito pelo pintor Columbano, e a viúva do historiador deixou-lhe, como lembrança, um pequeno retrato do Condestável pintado por El-Rei Dom Carlos. Eça era um freqüente hóspede da Quinta do Mosteiro e dentro de uma pequena tigela de porcelana antiga que lhe servia de cinzeiro encontram-se ainda dois pequenos livros de mortalhas, com que o romancista rolava os seus cigarros.
A geração literária de Luís de Magalhães foi a imediatamente ulterior, que abrange os nomes de Jaime de Magalhães Lima, Silva Gaio, Luís Osório, Trindade Coelho, Coelho de Carvalho, Alberto de Oliveira e Antonio Feijó, cujos últimos versos, aparecidos há um ano sob o título de Sol de Inverno e que o consagram mestre da poesia, Luís de Magalhães prefaciou escrevendo que
ninguém o excedeu no manejo do verso, ninguém o trabalhou com mais correção métrica, mais relevo na frase, mais arte, mais perícia técnica, ninguém lhe deu mais duetilidade, mais elegância, mais harmonia, mais sonoridade, mais riqueza de rimas, mais graça de ritmo. Nem durezas, nem frouxidões, nem hiatos, nem cacófatons, nem aliterações malsoantes, nem muletas, nem rimas forçadas, nem impropriedades arrepiadoras, nem a banalidade das imagens e das frases feitas, como clichés sempre prontos para qualquer reprodução.
Luís de Magalhães tem muito o culto da amizade e por isto mesmo há tanto tempo quem o queira. Eça de Queirós confiou-lhe o espólio literário de Guilherme Moniz Barroto, que êle acaba de entregar a Manoel da Silva Gaio o qual pensa reproduzir as publicações do malogrado escritor, juntando-lhes os inéditos de que se acha de posse, numa edição definitiva, sobre a qual conversamos em Coimbra. Foi a Luís de Magalhães que Guerra Junqueiro deu o encargo de reeditar a Pátria expurgada de todas as durezas e cruezas. Vi em Moreira da Maia o exemplar do livro com todas as supressões autenticadas por bilhetes do poeta. A eliminação das passagens do astrólogo em que êle quis encarnar Oliveira Martins, Guerra Junqueiro a dizia ditada por um dever de consciência.
Quem assim estima seus amigos e desconhece esse triste sentimento da inveja que tan^o envenena o trato social, não podia deixar de prezar profundamente sua própria família. Luís de Magalhães tem uma idolatria pela memória de seu pai, cuja palavra demos-tênica fulgiu em repetidos clarões no Portugal constitucional, e a essa idolatria, feita de saudade e ao mesmo tempo de orgulho, junta-se agora o pesar intenso do desaparecimento de um filho único que ostentava o nome do avô — José Estevão e era pela sua atividade a esperança e pelo seu bom humor o encanto dos seus. O pai ainda logra esconder a sua dor; mas a mãe, uma distintíssima senhora da família dos Lemos de Condeixa, da qual saíram o Bispo D. Francisco de Lemos, reitor da Universidade de Coimbra e o grande colaborador do Marquês de Pombal na sua reforma pedagógica e o poeta João de Lemos, o autor da conhecida Lua de Londres, não consegue refrear a sua mágoa e sem espalhafato lhe dá vasão sempre que fala do ente querido, cuja morte a deixou inconsolável e às suas irmãs.
Luís de Magalhães fêz-me o favor de levar-me ao seu relicário. É uma pequena sala em que êle reuniu lembranças do pai e do filho. Deste vêem-se o uniforme e outros pertences da campanha na Flandres, onde o rapaz briosamente serviu como oficial de artilharia. Daquele são muitas as recordações: a cama de ferro com armação de metal em que faleceu, igual à que serviu de leito de morte a Napoleão em Santa Helena; as imagens de santos do oratório de família; livros de notas quando ainda estudante; o seu chapéu ornado e a sua espada, o seu chapéu de palha e outros objetos de vestuário; o seu tinteiro e a sua caneta da Câmara dos Deputados; enfim a urna que encerrou seu coração enquanto viveu a esposa, que o levou consigo para o túmulo. Sobre esta urna acha-se inscrita uma bela quadra adrede composta por Antônio Feliciano de Castilho. É a seguinte:
Viúvas, a Eloqüência, a Pátria, a Esposa Choram pela alma egrégia, aos Céus volvida. Ganhou a eternidade em curta vida. Aqui, de amor, seu coração repousa.
A Quinta do Mosteiro deve ter sido uma propriedade de recreio da Ordem, ao mesmo tempo que de rendimento. O convento, que hoje serve de habitação, é amplo mas não cm demasia. Vê-se que não servia senão para um número limitado de monges. A fachada prin-cipal dá para o jardim, que é vasto e a que ficam contíguos os campos de lavoura. Apesar das construções modernas, recobertas de telha de Marselha — vivenda dos jornaleiros, carpintaria, arrecadação de utensílios agrícolas, estábulos, etc, levantados pelo neto de José Estêvão —, a Quinta não perdeu o seu caráter monástico, nela se destacando os parreirais sob que passeavam noutros tempos regulares de burel, e os tanques de cantaria com fachadas esculpidas, donde a água jorra enchendo a bacia num monótono murmúrio.
O andar nobre é o segundo acima do térreo, cuja cozinha conventual foi transformada num confortável hall, de que Ricardo Severo deu o desenho. Lá de cima, onde as janelas de peitoril são mais que as de sacada, a vista que se descortina é desafogada — lobrigando-se o Porto nos dias claros — e graciosa. Faltam-lhe serras, dizia-me Luís de Magalhães. Por isso mesmo é mais minhota, observei, não possuindo o caráter agreste da paisagem transmon-tana, nem o caráter audaz das margens escarpadas do Douro.
A igreja, que é do século XVII, é um edifício a que não falta imponência, com sua ampla nave principal de arcaria neo-românica c seu altar-mor de profusa talha dourada. A sacristia, com suas cômodas de pau-santo, é toda revestida de azulejos polierômicos, que são os de tradição árabe. Os azulejos propriamente ditos, que tanto se assemelham, não nos assuntos, mas no puro azul e branco, as faianças de Delft devem ter recebido forte animação — não sei se a primitiva inspiração — da porcelana do Extremo Oriente. Também no século XVII se introduziu a pintura do charão, que é caracteristicamente sino-japonêsa.
A indústria dos azulejos é outra das indústrias nacionais que têm ultimamente recebido em Portugal grande desenvolvimento. Nas novas construções, obedecendo muitas delas, de caráter particular, a motivos arquitetônicos de velho estilo urbano e rural, especialmente joanino, os azulejos têm voltado a desempenhar o seu importante papel decorativo. A estação de São Bento, no Porto, é um exemplo desse fator ornamental aplicado a um edifício público.
Seus imensos painéis históricos em azulejo são de grande beleza. Todos sabem no Brasil que o renovador dessa arte, que tão bem se adaptaria às nossas construções, é Jorge Colaço, o excelente artista. ,
Julho de 1923
Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.
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