Outubro (1975)
Literatura – Poesia – OutubroOutubro foi lançado em 1975, fruto de uma semeadura anterior, feita no final dos anos 60. O livro é uma articulação dos poemas que fui soltando primeiro nas praças (da Alfândega, em Porto Alegre, da República em São Paulo, e General Osório, no Rio). Eram escritos com pincel atômico em cartolina branca – o máximo de estética que a radicalidade permitia – ou faziam parte de edições mimeografadas junto com outros dois autores (Marco Celso Viola e Mariza Scopel). São dessa época os principais poemas, que mais tarde inauguram e carregam o livro. Os outros surgiram, na seqüência, acumulando-se numa velha mala de couro que carreguei pelos empregos jornalísticos afora. Numa investida surpreendente, Claudio Levitan foi visitar-me um dia em Blumenau onde trabalhava e lá, enquanto desenterrava os poemas, me xingava por “esquecê-los” no fundo do baú. Mas só depois, em 1974, quando voltei para Porto Alegre, é que começamos – Levitan e eu – a nos reunir com Caio Fernando Abreu, Juarez Fonseca e Ida Duclós para definir aquilo que a mala pedia: o livro de uma geração, a estréia viabilizada pela grandeza da então diretora do Instituto Estadual do Livro do Rio Grande do Sul, Lygia Averbruck. É em memória de Lygia, precocemente desaparecida, que dedico esta reestréia de Outubro no espaço virtual. Como o livro pede uma segunda edição impressa, divulgamos apenas alguns poemas daquela época inesquecível. |
As veias do canto | Carta ao amigo | Outubro | ||
Apesar de tudo | Lição de Travessia | Aos que passam |
CARTA AO AMIGO
Embora não acredites
estou tão habitado
que pareço um mar
Não só pelos peixes que possuo
das mais variadas espécies
não só pelas aves que me sobrevoam
Mas também pelas ilhas de corais
pelos arrecifes, pelos icebergs que em silêncio
navegam seus volumes submersos
E principalmente
pela quantidade de rios
que deságuam em mim
Estás longe
e lembrei teus olhos
cheios de medo e desconfiança
Hoje está chovendo
Quando chover
sei que vais sentar um pouco
reler teus manuscritos do tempo do colégio
e tentar fazer coisa nova
ou pior, sonhar com eles
até que um vazio incômodo
te derrube por terra
Quando chover, em vez de chorar
lembra de mim
que não cedi um palmo
OUTUBRO
Trago a nova: eu mudo
lento, e é tudo
Sinto ser assim
por estações: aos turnos
Posso voltar
ao ponto de partida
mas luto
Sei que vem outubro
Flores, fruto de seiva
romperão no mundo
(Trabalho duro:
sugar de pedras
rasgar os caules
colher ar puro)
Lento e bruto
eu mudo
Sei que vem
Outubro
TORNEI-ME PASSOS
Tornei-me passos
em busca da aurora
Belo como geada
acordei enrolado num cobertor
que o sol dourava
nos terrenos baldios
da minha estrada
As cidades construíram
muros à sua volta
mas com cordas
escalei pedras
e penetrei nas entranhas
de concreto e praças
LIÇÃO DE TRAVESSIA
Sempre que vejo um rio
parece que do outro lado
está a Argentina
As balsas carregadas da infância
sumiram do meu olhar
mas a ponte permaneceu
como eterna promessa
de que todas as margens
podem ser pisadas
O mundo não tem lado certo
pois há uma ponte sólida
por cima de todas as águas
AOS QUE PASSAM
Te ofereço um poema
feito com energia
e cultivado no ventre
do amor que carrego
Te ofereço um poema
na tarde nervosa dos teus passos
molhado com a distância
que percorro diariamente
e com a vontade que eu tenho
de ser teu amigo
Me ofereço em palavras, companheiro
envolto no colar de desejos e buscas
que aperta nossa garganta
e nos faz abrir a boca
com uma força capaz
de derrubar as paredes
as paredes que nos separam
AS VEIAS DO CANTO
Creio na morte
não na sua vitória
a poesia está à prova, como o homem
o canto não acaba, se renova
no coração de quem escolhe
a própria fome
Nada muda no sol
que o meu corpo não receba
Aberto como um poço para a sede
escrevo duros poemas
na terra que treme
e sacode a caneta
Só o canto fala por si mesmo
escutem seu bater de veias
ele vingará, como as colheitas
cercadas de amor e de firmeza
APESAR DE TUDO
Apesar de tudo
sou teimoso
e vivo
sou teimoso e visto
a pele dos soldados mortos
Neste carrossel de espanto
que carrego dentro dos olhos
toco melodias
que me ressuscitam
Levanto com esforço
as âncoras
e parto nas naus sem volta
do meu canto
E sempre tenho que mudar as velas
arrebentadas de vento
com remendos colhidos
dos violentos panos do tempo
O tempo é novo
e eu tenho a mania insone
de rebentar em pranto
Mas sou teimoso e insisto
sou teimoso e visto
a pele dos soldados mortos
SALVAÇÃO
Estar a salvo
não é se salvar
Como um navegador
que vai até onde dá
você tem que ser livre
para o que pintar
Nenhuma pessoa é lugar de repouso
Juntos chegaremos lá