Novos Poemas

Depois de terminar No Mar, Veremos, dediquei-me a poemas que procuram fugir do eu que
gerou meus livros anteriores de poesia. Utilizando recursos da dramaturgia, enveredei pela criação incorporando outros personagens, não mais o viajante que faz o caminho ao andar. Estranhamente, nasceram poemas escuros, talvez refletindo o País em guerra de extermínio contra a esperança. Mas, ao mesmo tempo, ao usar a máscara pesada do fim dos tempos, a linguagem carregada(com poder) é, em si, sinal de purgação e busca de saídas. Mergulhar na penumbra da fria caverna o­nde a criação se meteu nos últimos anos, acredito, é um modo de reconhecer novos terrenos, de revirar caminhos, de resgatar a luz que nos escapa. São esboços de mais um livro, por enquanto confinado na gaveta. Algumas dessas manifestações
coloco agora na roda, em busca de novos/antigos leitores. *

POEMAS DE NEI DUCLÓS
(INÉDITOS)

VERANICO

maio se despede com o tempo em brasa
último aceno do verão, tardia praia

prenúncio do frio temido pela alma
(exílio juvenil de sombrias memórias)

nuvens rondam gargalhando sombras
o sol é mormaço feito de pó

maio amortece as marcas do coração
pálida trégua de uma perdida guerra


MARTE

Levantou
porque não havia mais espaço
Suspirou
porque a manhã não abre

Caminhou
em direção a Marte

Porque no quarto
a vida já secou


TRÉGUA

Quem fala em amor numa noite dessas
quando o tempo morre no horizonte

Quem fala em amor que te apedreje
porque a pedra afagou antes da mágoa

Qualquer amor serve de alimento
qualquer frase de amor, qualquer fermento
faz crescer o pão inaugurando a trégua

AVESSO

Agora que a face do sol sem
brilho acorda a face oculta
de deus virado pelo avesso

um soneto faz o inverso do
insepulto
caminho, dando troco em moeda
morta em coração de vime

PÁSSARO

É breve o pássaro
que ofusca a treva

Obscura flor
da ante-manhã

que resiste ao sol
cobrindo negra névoa

Por um instante o vôo
pousa o turvo manto

um relâmpago faz
o corpo estremecer

mas vence o véu da viúva
e tudo tarda

Por isso o pássaro
esconde o canto

assustado com a
mudez do sono

VALSA

Nenhum ruído denuncia o próximo arco-íris
que você constrói como catedral de cartas

Ainda não surgiu o sol com sua carga
para indispor teu rosto com o espelho

Limpas o pó da arma exposta em peças
arsenal de uma guerra ainda em curso

Alguém bate na janela. É a loucura
Vampira de sonho, sopra uma valsa

Você nem levantou e já está alto
o som imaginário de uma aldrava

Um soneto te espia. Desça da cama.
Venha ver a manhã tossindo a alma

FUZIL

Semeias passos como sórdidos cereais
pela casa desde sempre abandonada

Em volta do quintal ronda o impasse
que o tempo tece entre brilho e breu

Tocas teu rosto e o gesto escasso
rompe teu despertar da morbidez

Talvez haja ainda fogo…mas o horror
te abate em surdo baque de fuzil

Estás na retaguarda. Quem engatilhou
a lágrima antes do soldado?

CAFÉ

A pressa do café mancha o sapato
o trigo tardio quebra no mármore

Você quer ser o banho e
esvair o sangue descorado

Mas osso faz barulho, e carne
é solo firme para o trágico

É cedo ainda. O pêlo da pantera
espera a dor sacar a espada

LETRA

Talvez
escrevendo
alguma coisa amanheça

Talvez
o poema
desperte o pássaro

Talvez
a palavra
te incendeie

Talvez
a sílaba
grite

Talvez
a letra
crua

Talvez
soletrando
amor a noite se despeça


LEMBRANÇA

Eu lembro de tudo: tijolo velho formando muro
livros empilhando altura no escritório
praia de rio turvo com pai de água no peito

Eu lembro de tudo: poesia provocando riso
(Lembrança de um amor faz ruído de saia)

PIANO EM QUEDA

Você acorda com Deus
dormindo à sua porta

Você amarga a pálida
cor do corpo em brasa

Você afaga o rugir
do rum em sua boca

Você amassa a seda
púrpura em sua perna

Quem é você? solidão
na voz esfarelada

piano em queda sobre
a sombra de alguém

dormindo, indiferente
no portal da casa

É BOM O MAR
É bom o mar
não ter dono
Não ser potro
nem mordomo
Poder engolir
Netuno
Espumar sal
das esferas
Ninguém pasta
no seu dorso
Nenhum nó
ata sua vela
Gávea que traz
no bojo
Bóia que a flor
navega
Como repasto
de pedra
Como fermento
de estrela
São peixes
fora do espelho
São aves
em assembléia
O bom do mar
é que dançam
numa volúpia
serena
os versos feitos
por anjos
que estudam
com muito esmero
o mar, esse Deus
travesso
que se bobear
pega praia

SOLDADO, LAVRADOR, POETA

Ninguém gosta de partir sem deixar marca
Coloquei ferro no gado e azeitei armas
Parti menino com um canhão no ombro
Vi generais fugirem a cavalo pelo barro
E soldados trocarem de farda em plena luta
Vi bandeiras demais e a gritaria me cansou
Voltei para ver minha mãe que lá estava
Cuidando das crianças e da terra
Apareci com barba ainda rala, mas antigo
E decidi ficar para consertar a cerca

Ninguém gosta de ficar sem uma bala
À noite eu perdi o sono ouvindo passos
Eram javalis de palha, roendo aldravas
As palavras me escapavam como a água
Percebi que havia um morro derrubado
E fui tirar satisfações no povoado
Fui então atirado numa vala, porque bebi
E não sabia distinguir mais nada

Voltei a pé, contando os passos
Recebeu-me Luiza, aquela que não fala
Levou-me ao catre e interrompeu a faina
Só para me colocar o corpo enxuto e claro
Casei por um motivo nobre, o amor veio depois
Quando ela me deu filhos e pude então ver Deus

Só fiquei intrigado um dia quando uma tropa
que eu vi morrer voltou cruzando o túnel
Os fuzileiros vieram morder meus calcanhares
Mas eu não dei a ordem que os levou para a tumba
Um cão me farejava, quis rasgar minha alma
Fui para dentro de casa e pela primeira vez rezei
Na manhã seguinte a chuva inundou a colheita
E vi-me pobre novamente

Agora vou de novo para a guerra
Nenhum general vai fugir, não vou deixar
Voltarei com espólio, voltarei com prata
Quero semear o trigo o­nde hoje há pedra
Venham me dizer que não devo partir
Ninguém gosta de viver sem cravar a lança
E fazer um sulco na província morta

Sou soldado, lavrador, poeta
Tentem me tirar o sono, estarei alerta
Ainda parto em dois essa quimera
que fustiga a janela feito musa
Sou o duro amor que peita o inverno
Não faço flor nem fruto, faço trigo
Vendo no mercado o que liberta

AMOR AOS POUCOS

Poucas pessoas conheço
com amor no endereço

Poucas pessoas se lembram
do amor dobrado no lenço

Poucas pessoas confessam
o amor que já fez estrago

Poucas pessoas receitam
aquele amor sem remédio

Poucas pessoas agüentam
quando o amor estremece

Poucas pessoas enxergam
o amor de quebra no espelho

Poucas pessoas conservam
O beijo do amor ardente

Poucas pessoas entendem
a carta que o amor deixa

Poucas pessoas conseguem
Nenhuma delas esqueço

* Os poemas Canção dos
Anjos Exaustos, Letra, e Valsa saíram publicados na Antologia do Sul – Poetas Contemporâneos do Rio Grande do Sul, Dilan Camargo (org).Porto Alegre, 2002

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