NICOLAU TOLENTINO DE ALMEIDA (Lisboa, 1741-1811), foi
professor de Retórica, e, enfadado de tal ocupação, começou a lisonjear
os poderosos, de quem obteve finalmente o lugar de oficial da Secretaria
do Reino, em que tinha posto as suas mais altas aspirações. Manejou a
sátira com verso fluente, cuja forma predominante era a quintilha octos-
sílaba, e nunca se distanciou de polida mordacidade.
Retrato de Lucinda
Quero, Lucinda,
bem retratar-te,
se acaso a arte
tanto puder.
Neste retrato,
se acaso eu minto,
é porque sinto
menos do que és.
Finos cabelos
em trança grossa,
temo que possa
pintá-los bem.
Dos lindos olhos
à luz tão viva
côr expressiva
nunca darei.
Não tens nas faces
jasmins e rosa,
côr mais preciosa
nas faces tens.
Todas te invejam
e há quem ser queira
assim trigueira
como tu és.
Tão linda boca
graciosa e breve
ninguém a teve
nem pode ter.
Quando tu mostras
os alvos dentes,
causas às gentes
duro prazer.
Vêm por entre eles
vozes discretas,
são d’amor setas
que ferem bem.
Risos e graças
não têm pintura,
tanta doçura
cópia não tem.
Guardas no seio
de amor o encanto,
mas cobres tanto
que se não vê.
Se o gentil corpo
quero imitar-te,
desmaia a arte,
tu bem o vês.
Pobre Lereno,
Vê que é loucura!
Deixa a pintura,
Beija-lhe os pés.
Autobiografia
Entre faixas de pobreza
Meus tristes pais me envolveram;
Desde então, em crua empresa
Contra mim as mãos se deram
A fortuna e a natureza.
Depois que plano caminho
Já meu pé trilhando vai,
Pobre alfaiate vizinho
De um capote de meu pai
Me engendrou um capotinho.
Talhando a obra, maldiz
A empresa que lhe incumbiram; (735)
Fêz nigromancias com gis; (736)
Sete vezes lhe caíram
Os óculos do nariz:
Sua obra se consagre
No portal das Barraquinhas
Com grossas letras de almagre;
Tapou jeiras, passou linhas,
Fêz um capote e um milagre.
Colchete no cabeção,
Saí, novo Adônis belo,
Figa no cós do calção,
Carrapito no cabelo
E um biscoutinho na mão.
Sobre o sisudo galego,
Que vaza barril fiado,
Já aos trabalhos me entrego;
E em triste pranto lavado,
À porta de um mestre chego.
Debalde o bom mariola
Dourava razões pequenas;
Minha dor não se consola,
Presságio talvez das penas (737)
De outro tempo e de outra escola.
Entre medos e violência
Entrar no latim já posso,
E jurei obediência
A um clérigo, que era um poço
De tabaco e de ciência.
Dentre o sórdido roupão,
Com a pitada nos dedos,
E o Madureira (738) na mão,
Revelava altos segredos
Do advérbio e da conjunção.
Era em gramática abismo,
Honrava o século nosso;
Porém de tal rigorismo
Que pôs na rua o seu moço (739)
Por lhe ouvir um solecismo.
Entre o jota e o i romano
Que diferença se achasse,
Trabalhava havia um ano;
Obra que se êle a acabasse,
Feliz do gênero humano!
Enquanto a minha alma emprego
Nestas cansadas doutrinas,
À dourada idade chego
De ir ver as vastas campinas
Que banha o claro Mondego.
Boas cabeças mal compostas,
Vejo entre gostos e medos,
Mãe e irmã à adufa postas; (740)
Choviam cruzes e credos
Sobre as minhas bentas costas.
Já em rápidas carreiras
Calcava a real estrada,
Sem chapéu, sem estribeiras:
Já a catana emprestada
Cortava o vento e as piteiras.
Curta, embrulhada quantia
Que ao despedir me foi dada,
Expirou no mesmo dia; –
E fui fazendo a jornada
Quase com carta de guia.
Mas já vejo a branca fronte
Da alta Coimbra, fundada
Nos ombros de erguido monte;
Já sobre a areia dourada
Vejo ao longo antiga ponte.
Povo revoltoso e ingrato
Dentro em seus muros encerra;
Em vão de adoçá-lo trato:
É um título de guerra
A chegada de um novato.
Pão amassado com fel
E envolto em pranto comia;
Levei vida tão cruel
Que pior a não teria.
Se fosse estudar a Argel.
Sofri contínua tortura,
Sofri injúrias e acintes;
Lancei tudo em escritura,
E nos novatos seguintes
Fiquei pago, e com usura.
Da bolsa os bofes lhe arranco
No fresco páteo de Celas,
Pedindo com gênio franco
Doces, gratuitas tigelas
Do famoso manjar-branco.
Sete anos de verde idade
Fui metendo a destra mão
Em multas desta entidade:
Chamou-se boa feição,
Mas era necessidade.
Achava-me sempre o dia
No teto os olhos pregados;
A sagaz economia
Revoando nos telhados,
Ao conselho presidia.
Gemer em segredo pude;
Que o bom pai, falto de meios
Quanto cheio de virtude,
Só mandava nos correios
Novas da sua saúde.
Quis de tais ondas sair,
E algum bom porto aferrar;
Quis ao público servir,
E mandaram-me ensinar
As regras de persuadir.
Triste, enganosa ciência!
Dão-lhe louvores, mas falsos;
Dizem que pode a eloqüência
Ir tirar dos cadafalsos
A perseguida inocência;
Que chega do peito ao fim,
Que arranca forçado pranto;
Mas, senhor, não é assim;
Esta arte, que louvam tanto,
Só me faz chorar a mim.
Pende da hora oportuna;
Sem ela verá rasgadas
As soltas velas que enfuna;
Arrasta vestes douradas,
E é escrava da fortuna.
Não a vejo em mim frustrada,
Só porque pouca me Coube,
De si mesma é mal fadada;
A língua que mais a soube
Foi em Roma retalhada.
Mas já longa narração
Vai levando longe a meta;
Já parece, e com razão,
Mais que papel de poeta,
Ou testamento ou sermão.
Minha dor me faz falar,
Fiz queixas assaz compridas;
Dignai-vos de desculpar
Que mostre o enfermo as feridas
A quem lhas pode sarar. (741)
{Obras Completas, ed. de Lisboa, 1861,
pp. 169-176 — Memorial a Sua Alteza)
- (735) que lhe incumbiram ou de que o incumbiram. V. a n. 422.
- (736) ni
gromancias — por nigromancias: atos de necromancia (do gr. nekròs, morto, e
manteía, adivinhação). Nigromancia é vocáb. de falsa etimologia. Gis- — do gr. gypsos, pelo ár. )ibs; no lat. gypsum; deu também gesso. - (737) presságio(do lat. praesagium; do v. praesagire, adivinhar, prever, pressentir) é conhe-
cimento antecipado, augúrio. O v. pressagiar e o adj. pressago são cognatos. - (738) E o Madureira na mão — O autor em lugar da obra: metonimia.
- (739) moço = serviçal, criado. V. a n. 565.
- (740) à aduja postas — colocadas atrás da gelosia, ou veneziana.
ad dujja. - (741) sarar = sanar, curar. Esse v. formou-se pela repetição da desin.
na
na forma are. sãar, saar ou sar, contração de sanar, do lat. sanare.
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