Da Genealogia da moral de F. W. Nietzsche

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Da Genealogia da moral de F. W.
Nietzsche

Roberto
S. Kahlmeyer-Mertens [1]

Resumo: O artigo propõe
uma explicação didática das duas primeiras dissertações do livro A genealogia
da moral de F.W. Nietzsche. Temos o objetivo de comentar algumas das principais
passagens do texto do filósofo, enfocando aqueles que seriam os principais
conceitos da obra, a saber: moral, ascetismo, vontade, vingança e
transvaloração. Embora concentrado nas referidas dissertações, o texto ainda
traz uma breve nota sobre a psicologia da consciência moral, temática contida
na segunda parte do livro.

Palavras-chave: Nietzsche,
Genealogia da moral, vontade, transvaloração.

§1. A propósito de uma genealogia da moral

O texto é uma interpretação
da Genealogia da moral de Nietzsche.[2] Tem como preocupação primeira o esclarecimento do processo que o autor
apresenta em seu livro. Para tanto, dá ênfase a dois momentos da obra, a saber:
a Primeira e Terceira Dissertações. Esse exercício vem abordar os
conceitos centrais desta obra, bem como de todo o projeto de transvaloração
descrito pelo autor. Assim, conceitos como vingança, espírito de vingança, má
consciência, ascetismo estarão presentes e explicados. Tentaremos também
apontar de, maneira breve, como as temáticas de valoração e transvaloração se
articulam com os conceitos de vontade de poder e eterno retorno.[3]

Todos os escritos
posteriores ao livro Assim falou Zaratustra (1885), de Nietzsche, são
integrantes de um projeto marcado pela idéia da “transvaloração de todos os
valores”. Isso deixa transparecer (para o autor, após longa investigação) que o
problema da filosofia é um problema de valor. Nesse processo, a Genealogia
da moral
(1887) vem, a princípio, como uma clarificação e complemento de
outro texto de Nietzsche, intitulado Além do bem e do mal (1886). Esta
genealogia é um livro que aborda temas de grande envergadura, como a dor,
decadência, vontade, verdade, vida, vingança etc. Nesse exercício, o texto
ganha autonomia e não mais se limita a ser uma obra de esclarecimento, passando
a dedicar-se ao diagnóstico e análise pormenorizada de certas disposições do
espírito humano, tais quais veremos no decorrer do presente texto.

Adentremos ao tema através da questão: o que pretende uma Genealogia
da Moral
? Esta pergunta parece poder ter resposta pela explicação dos
termos que a compõem. Por este recurso elementar, poderíamos obter, por
síntese, sua resposta. Em sentido literal estrito, o termo genealogia nos
remete ao estudo da gênese das coisas, isto é, de um modo de saber que
investiga origens. Daí, podermos fazer a genealogia de uma família, de um grupo
étnico etc. No presente caso, Nietzsche propõe uma genealogia da moral. Assim,
com base na definição de genealogia que apresentamos, devemos entender uma
investigação sobre as origens disso que a tradição filosófica chama de moral,
trazendo à luz tudo aquilo quanto a promova.

Por moral, entendemos o que, tradicionalmente, a filosofia compreende
como princípios dos costumes e deveres do homem. Isso
posto, temos na pergunta apresentada no início deste parágrafo, a iniciativa de
esboçar alguns traços para uma primeira delimitação do método genealógico que o
autor utiliza neste escrito, que utiliza por ferramentas a filologia e a
história para auxiliar certo senso seletivo em questões psicológicas,
âmbito do qual trafegam os juízos de valor de “bem e mal” (1998). Como já
dissemos, uma genealogia da moral vai à sua gênese, no “local” onde os valores
são cunhados. Com essa investigação, passa a ser possível um olhar crítico
sobre esses valores. Conforme podemos conferir nas palavras de Nietzsche
(1998): “Necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses
valores deverá ser colocado em questão para isso é necessário um conhecimento
das condições circunstanciais nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram
e se modificam.” Daqui Nietzsche parte para sua Genealogia da moral,
pautando-se, inicialmente, no estudo dos conceitos que norteiam a tradição
moral. São eles os pré-conceitos de “bem e mal”, “bom e ruim”.

§
2. Elementos para a caracterização do ascetismo

A Genealogia da moral divide-se em três partes. A Primeira
Dissertação
consiste na psicologia do cristianismo. Após uma breve
introdução (§§ 1-6), Nietzsche inicia a caracterização dos elementos que
compõem esse título por um exercício de interpretação histórica das
transformações desses conceitos e da análise etimológica dos termos que dão
corpo a estes. Como conclusão desse exercício, tem-se que o conceito de “bom”
(mesmo nas manifestações mais antigas da Humanidade, em suas civilizações mais
primitivas) sempre esteve associado ao nobre, ao aristocrático, espiritualmente
bem nascido, privilegiado e ao puro. De maneira inversamente proporcional, o
“ruim” vem dizer respeito ao plebeu, baixio, comum e impuro. Essa distinção, que
era apenas estamental, adquiriu, com o tempo, à custa do confronto entre a
casta dos nobres com a dos sacerdotes, o caráter irrestrito de valoração
através do serviço dessa classe sacerdotal. Os sacerdotes, segundo Nietzsche,
interiorizam esses conceitos na forma ideal de valor, tornando-os intensos ao
espírito. Esse processo merece ser ressaltado
pela análise da seguinte citação:

Com os sacerdotes tudo se
torna mais perigoso, não apenas meios de cura e artes médicas, mas também a
altivez, vingança, perspicácia, doença, mas com alguma eqüidade se
acrescentaria que somente no âmbito desta forma essencialmente perigosa de
existência humana, a sacerdotal, é que o homem se tornou um animal
interessante, apenas então a alma do homem ganhou profundidade num sentido
superior, e se tornou má (…) (NIETZSCHE, 1998, pp. 24-25).

Mas por que, para Nietzsche, a atitude do sacerdote torna tudo “mais
perigoso”? Porque, até então, a contrariedade entre bom e ruim não tinha
conotação valorativa. Isto é, não havia a idéia de valor formalmente instituída
enquanto o “bom” e o “ruim”. Quando esses, que eram apenas conceitos aplicados,
ganham “status” de valor, toda a vida passa a ser intentada desde a perspectiva
dicotômica de uma moral que julga desde o bom e o ruim. Isso institui o risco.
O risco de estar entre dois extremos. Esses extremos se desdobram em diversos
modos de manifestação, como o próprio a que Nietzsche alude na citação como “altivez,
vingança, perspicácia, dissolução etc…” Por isso, podemos dizer que
tudo ficou perigoso. Alguém que torna a vida tão perigosa, tão arriscada, é,
para Nietzsche, a “forma mais perigosa da existência humana” pois é
alguém que, enquanto valorador, transforma conceitos em valor, incutindo tal
risco. Essa figura chama-se sacerdote.

Por que o sacerdote (tal como foi
definido acima) torna o homem, por essa valoração, um “animal interessante?
Tornou-se assim por ter ganhado profundidade e isto significa que seu espírito
não é mais superficial; não é mais imediato. Dizendo de modo claro: o homem
torna-se um animal interessante quando passa a ter algo “sublançado”, quando
possui algo recôndito e digno de uma procura interessada. Este fenômeno ocorre
dado a uma espécie de inconformação quanto a sua imediatidade e a necessidade
de algo que venha dar fundamento a essa valoração.[4] Deste modo, compreendemos que, quando Nietzsche afirma que a alma humana
torna-se “má”, isso não é um atestado do caráter do homem, mas a constatação de
que agora este trafega num registro de bem e mau, de bom e de ruim.

No § 7 da Primeira Dissertação, Nietzsche
aponta a facilidade com que o sacerdote transforma, pela valoração, o
“cavalheiresco-aristocrático” em seu extremo oposto. Essa valoração parece ser
promovida por certas disposições que ficam nítidas na seguinte citação:

Os sacerdotes
são, como sabemos, os mais temíveis inimigos __Por quê? Porque são os mais
impotentes. Na sua impotência o ódio toma proporções monstruosas e sinistras,
torna-se a coisa mais espiritual e venenosa. Na história universal os grandes
odiadores sempre foram os sacerdotes, também os mais ricos de espírito
__comparando ao espírito de vingança sacerdotal, todo espírito empalidece. A
história humana seria uma tolice, sem o espírito que os impotentes lhe
trouxeram (…) é remotamente comparável ao que os judeus contra eles fizeram;
os judeus, aquele povo de sacerdotes que soube desforrar-se de seus inimigos e
conquistadores apenas através de uma radical transvaloração dos valores deles,
ou seja, por um ato da mais específica vingança (NIETZSCHE, 1998, pp. 25-26).

Na presente citação, Nietzsche expressa duas figuras centrais do seu
pensamento. São eles: o “espírito de vingança” e a “transvaloração”. Essas
ganham explicitação ao longo do texto. Daí, neste movimento, vermos uma
conotação negativa, desta vez como “temíveis inimigos”; entretanto, num
aparente paradoxo, estes, segundo Nietzsche, são temíveis por serem impotentes.
Surge a pergunta: como alguém que seria impotente poderia oferecer risco e
tornar-se assim um “inimigo temível”? A resposta parece vir na seqüência do
trecho citado daquele livro: “Na sua impotência, o ódio toma proporções
monstruosas e sinistras, torna-se a coisa mais espiritual e venenosa”
(NIETZSCHE, 1998). Nossa pergunta reincide, embora reformulada: como é que o impotente
por intermédio do ódio pode, então, tornar-se um inimigo terrível? Tal resposta
requisita uma remissão ao conceito de valor. O desdobramento dessa análise
acrescentará noções que facilitarão o entendimento da questão bem como outras
questões relevantes na filosofia de Nietzsche. Por esse recurso, poderemos
demonstrar como o ódio da vingança pode transformar o impotente em inimigo e
elevar a disposição da vingança à qualidade de espírito de vingança. Explicaremos, durante uma digressão sucinta, alguns conceitos fundamentais
relacionados a esta problemática.

§
3. Vontade, espírito de vingança e valor

O valor em Nietzsche está em ligação direta com o binômio que marca o
próprio modo do acontecimento arcaico-originário da existência: vontade de
poder/eterno retorno.
Com este, Nietzsche (1994) procura descrever o
caráter de devir sempre atual, a sua constante re-inserção no modo de ser da
realidade.[5] “Onde encontrei o vivente, aí encontrei vontade de poder”. Em uma
primeira visão, o termo vontade nos parece uma referência a uma propriedade de
nossa subjetividade. Assim, a vontade é vista por nós como algo que possuímos
ou não. Destarte, a vontade estaria em ligação direta com a possibilidade de
uma escolha, com o livre arbítrio. Entretanto, vontade em Nietzsche é o que
configura a abertura de vida e sua configuração no instante, no tempo. Deste
modo, constatamos que, mesmo o portador de um suposto livre arbítrio, faz-se em
comunhão com o movimento essencial do tempo, isto é, na cadência do instante
(ainda que certo afastamento passe a impressão de uma anterioridade frente à
realização do instante e uma aparente possibilidade de intervenção arbitrária
ou subjetiva).

Assim, vida eternamente retorna como impulso para as realizações de suas
possibilidades. Vida, segundo Nietzsche, é o movimento sempiterno de
diferenciação da vontade
, tendo este sempiterno o caráter do eterno
retorno, que determina o instante em sua circularidade. Vontade de poder/eterno
retorno diz respeito a toda e qualquer dimensão do acontecimento de realidade,
narrando, enquanto existência, a assunção fundamental da vida em sua cadência,
instauração, vigência e propriedade. Considerando a dinâmica descrita, podemos
constatar que existência e suas possibilidades configuram-se no instante. Entretanto,
ali só é capaz de se concretizar uma possibilidade por vez (uma a cada
instante). O que acarreta um combate entre possibilidades que se determinam
junto ao modo de sua urgência e necessidade. Em linhas gerais, é isso que
Nietzsche chama de valor e, ao contrário do que se poderia pensar, não é uma
entidade utilizada para ajuizamento moral, mas o nome com que se designa todo
tipo de manifestação engendrada por esse conflito. Quanto a sua apreensão, os
valores podem apresentar-se sob duas disposições fundamentais:

1.      disposição afirmativa, como aquela que se faz em sintonia com o
lance e cadência do citado binômio, afirmando-o como modo estrutural da
realidade em sua gênese;

2.      disposição reativa, que não se conforma com este modo
constitutivo, fazendo que irrompa uma perspectiva derivada, que se arroga no
direito de requerer um modo de realização da existência diverso do que se dá
nessa instauração.

Tais modos são possibilidades de realização dessa vida.[6]

Os valores, por estarem articulados com o
próprio modo de dar-se da vida, isto é, com o movimento da vontade, são sempre
passíveis de apreensão através de duas disposições fundamentais: as disposições
afirmativa e reativa. Respectivamente, aquelas que indicam sintonia e
des-sintonia com a compreensão de vida como valor. No primeiro caso, a
disposição afirmativa surge na sintonia com uma perspectiva que se constrói a
partir do aquiescimento do modo de ser sempiterno da gênese de realidade,
celebrando a vida enquanto experiência de criação. A esse processo Nietzsche
chama vontade criadora. No segundo caso, a disposição negativa irrompe em uma
perspectiva que, ao se instaurar, nega a si mesma enquanto perspectiva e se
arroga o direito de determinar (para além de toda e qualquer instância de
realização) o modo de ser da totalidade dos entes. Esta é a compreensão da
verdade, como uma instância que surge em função da separação radical frente ao
mundo fenomênico, recebe o nome de vontade de verdade.

Estas determinações vão se confundindo
aos poucos, no movimento de concretização do processo de valoração, com as
determinações da substancialidade subjetiva, com a natureza da razão
especulativa. Daí, a vontade de verdade valer como uma vontade de
auto-asseguramento
, sendo uma experiência derivada que nasce da compreensão
de que a vida é radicalmente movimento de repetição do momento constitutivo de
origem; um momento impossível de ser apropriado pelo pensamento
lógico-representativo. Essa impossibilidade de apropriação e controle do
momento primeiro, que atravessa o acontecimento vida, apesar de ser
constantemente experimentada pelo homem no caminho histórico de sua realização,
pode ser degradada por um artifício da imaginação (NIETZSCHE,
1998).

Após estas considerações (que tiveram por objetivo introduzir conceitos
centrais da filosofia de Nietzsche, como o binômio vontade de poder/eterno retorno e, principalmente, responder à pergunta: como é que o impotente
através do ódio pode tornar-se inimigo tão terrível?), podemos asseverar que a
valoração efetuada pelo sacerdote é mais que uma apropriação cultural de
conceitos. Trata-se de uma interiorização espiritual,
ou o que Nietzsche chama de “transvaloração”, que é promovida por um sentimento
de inconformidade. Não só com aquilo que se manifesta fenomenalmente, mas com o
modo como que fenômeno se dá. Esta inconformidade, impotente diante do
movimento constitutivo da realidade, se apresenta como ódio, posto que a
dinâmica de constituição da realidade não se submete à arrogância de uma
disposição negativa da vontade. Deste modo, na impossibilidade de vingar-se
nisso que não pode ser tangido, a vingança recai sobre aquilo que se encontra
mais próximo dessa vontade.

§ 4. Ascetismo e ressentimento

Na própria Genealogia da
moral
, ainda no § 7, dessa Primeira Dissertação, Nietzsche exemplifica essa
vingança operada pelos sacerdotes que, através do judaísmo e do cristianismo,
obtiveram sua desforra contra seus inimigos, invertendo as premissas vigentes.
Assim, o bom passa a ser o pobre; o miserável, em contrapartida, o ruim, o mau,
o impuro são aqueles materialmente ricos. Isso Nietzsche identifica como um
“ato da mais espiritual vingança”. De imediato, uma conclusão parece
esboçar-se após a apresentação dessa resposta: a atitude sacerdotal, que é
caracterizada pelo ato da vingança, é manifestação de uma vontade de vontade,
que é deduzida de uma perspectiva reativa a experiência de compreensão da
vontade de poder. Isso comprova que o espírito de vingança (que é o que promove
o sacerdote) também é manifestação de vontade de poder.

Vimos, nesse processo de transvaloração,
o ódio contra “aquilo que é, e não pode ser de outra maneira”, como o que
impulsiona a vingança contra o modo de ser da própria vida. Não raro, Nietzsche
faz referência que, e este ódio sempre traz junto de si o que o predicado de
“venenoso” e “contagioso”. Vemos uma explicação dessas características através
da seguinte passagem:

Os senhores
foram abolidos; a moral do homem comum venceu. Ao mesmo tempo, essa vitória
pode ser tomada como um envenenamento do sangue (…) A “redenção” do gênero
humano (do julgo dos senhores) está bem encaminhada; tudo se judaíza,
cristianiza, plebeíza visivelmente (que importam as palavras!). A marcha desse
envenenamento através do corpo inteiro da Humanidade parece irresistível, sua
cadência e seu passo podem inclusive ser mais lento doravante, mais refinados,
cautelosos, inaudíveis __ há tempo bastante… (NIETZSCHE, 1998, p. 28).

O que
Nietzsche quereria grifar ao apontar este “envenenamento”? Seria apenas uma
figura de retórica para grifar o modo com que a atitude vingativa do sacerdote
mina o espírito humano através da transvaloração? Por que esse envenenamento, à
medida que avança, torna-se mais refinado, cauteloso, inaudível? Como se
relaciona a transformação dos conceitos inicialmente apresentados: puro e
impuro, bom e ruim? Respondendo às perguntas: Nietzsche, quando se refere a
envenenamento, está falando da vontade de vontade, que busca assegurar-se
daquilo que é tangível, tornando “pensável todo ente”, submetendo toda a
realidade a procedimentos de um pensamento esquemático que pretende jogar luz
sobre tudo aquilo que é indômito, inusitado, inesperado através de
determinações cunhadas pelo ódio, pela vingança. Estes procedimentos
sistemáticos do pensamento cunham determinações que redundam no movimento de
concretização do processo metafísico. Daí, Nietzsche apontar o aperfeiçoamento,
um refinamento deste “modo de envenenar”. Trata-se de um processo da história
da humanidade que se confunde com uma experiência da metafísica em seu processo
histórico. Esse é o ponto de interseção entre isso que chamamos de
“envenenamento” e da relação inicialmente abordada sobre conceitos de bom e
ruim. Nietzsche (1998) retoma a questão do bom e do ruim ao comparar o modo
sistemático da atuação da metafísica e aquilo que ele chama de “rebelião
escrava da moral”, caracterizada pela atuação do próprio ressentimento através
de vingança ao criar valores (como vimos acima).

(…) o
ressentimento dos seres aos quais é negada a verdadeira reação, a dos atos, e que
apenas por uma vingança imaginária obtêm reparação. Enquanto toda moral nobre
nasce de um triunfante Sim a si mesma, já de início a moral escrava diz Não é
seu ato criador. Esta inversão do olhar que estabelece valores __este
necessário dirigir-se para fora, em vez de voltar-se para si __ é algo próprio
do ressentimento: a moral escrava sempre requer, para nascer, um mundo oposto
ao exterior, para agir em absoluto __ sua ação é no fundo reação”. (Assim,
Nietzsche acrescenta mais à frente) o homem do ressentimento não é franco nem
ingênuo, nem honesto e reto consigo. Sua alma olha de través ele ama os
refúgios, os subterfúgios, os caminhos ocultos, tudo escondido lhe agrada como
seu mundo, sua segurança, seu bálsamo; ele entende do silêncio, do não esquecimento,
da espera, do momentâneo apequenamento e humilhação própria (NIETZSCHE, 1998,
pp. 28-29).

Na
citação, vemos Nietzsche apresentar o conceito de ressentimento, que é a
atitude daquele que se inconforma com o modo de ser da realidade, é a postura
do sacerdote. É o ódio que marca a reatividade expressa na forma de vingança
contra algo que não se pode alterar, algo já ocorrido de forma intangível. O
ressentimento é reação contra a ação da vida
, é seu movimento de ser.
Vingança é a atitude daquele que não age tragicamente, isto é, não aquiesce
vida em seu modo constitutivo de ser enquanto vontade de poder/eterno retorno.
Por isso, o ressentimento nega ao invés de dizer Sim. Nietzsche aponta a
negação como o ato criador do ressentido, pois, ao negar a realidade, este se
remete, se desvia a uma perspectiva interior (daí falarem interiorização de
valores da alma do homem), na qual cria ou transmuta a realidade em novos
valores, em ideais. Assim, o ressentimento acha ter agido, ter feito por
onde..
., ter feito o que pôde… Isso conforta e diminui o
sentimento de impotência ante aquilo que se afirma inalterável. Com isso,
justificamos a afirmação de Nietzsche de que ressentimento é reação. Embora
tenhamos dito que ressentimento cria valores, este não é promovido pelo que
Nietzsche chama de vontade criadora, pois (como já vimos) é ela uma disposição
afirmativa. Destarte, a compreensão de vida como valor se constrói a partir da
assunção do caráter sempiterno da gênese da realidade, a partir da vida
enquanto experiência de criação. Na segunda parte da passagem citada, o autor
nos aponta um comportamento sinuoso, cheio de desconfiança, de subterfúgios,
por parte do ressentido, exposto por Nietzsche de modo caricato. Uma caricatura
que marca a insatisfação que a metafísica tem para com o modo de ser do
fenômeno. Isso marca uma vontade, a vontade de verdade, tal como vimos nas
primeiras páginas deste escrito.

Após
algumas considerações sobre fenômenos do comportamento europeu de sua época,
como ao aquiescimento da possibilidade da barbárie, presente no conceito de
“besta loura”, que, em certa medida, era a compreensão de valor vigente ao
nobre, como o destemido, o voluptuoso. Partimos para o § 14, no qual Nietzsche
descreve a mecânica de transvaloração e construção de idéias.

Desde
quando apresentamos o conceito de “vingança” e o de “espírito de vingança”,
vimos descrevendo um processo que se resume em
impossibilidade-ressentimento-vingança-transvaloração. Talvez a citação acima
seja a passagem da Genealogia da moral na qual fica mais claro o
processo descrito. Com esta citação, Nietzsche revela no que consiste a
transvaloração. Segundo esse autor, é uma mentira que muda a fraqueza em mérito. Assim, tudo acontece como empecilho, impossibilidade, deficiência, é re-apropriado
positivamente. O sacerdote é este que altera certas perspectivas, revalorando
os valores vigentes. Segundo Nietzsche (1998), essa experiência é o que
transforma o miserável, o doente em pecador, deste modo podendo ser salvo;
passando, doravante, a “ter jeito”. Isto desagrava o caráter trágico que a
realidade possui, causando a impressão de que a impossibilidade ante o modo de
ser da realidade pode ser vencida. Entretanto, isso não passa de uma impressão,
pois a impossibilidade permanece e o que aconteceu não retrocede. Na verdade, a
inconformidade ante aquilo que acontece é um não para esse acontecer,
entretanto quando este não é afirmado o acontecimento já se consumou e,
contra isso, nada mais pode ser feito. Para que: essa vontade não fosse
impotente frente à dinâmica desse acontecer, seria preciso que essa dinâmica
estacionasse no instante em que o acontecer se dá; isso conseguido, seria
preciso que déssemos um passo atrás desse instante e, então, este poderia ser
negado. Vemos que isso é inteiramente impossível, daí dizer que somos
impotentes frente à dinâmica de ser no seu instante. O sacerdote parece saber
desse processo, que sua transvaloração é uma adulteração, que seu dizer é um
“enganar”, daí Nietzsche afirmar que eles “suam ao falar disso”. Nessa passagem,
na qual o autor nos convida a descer à “oficina na qual se fabricam os
ideais”
(NIETZSCHE, 1998), fica claro que esses ideais são valores
transvalorados por esse processo, assumidos como premissa orientadora de um
modo de viver instituído, que Nietzsche reconhece como amesquinhamento do
Homem, da Humanidade.

§ 5. Breve nota sobre uma
psicologia da consciência moral

Na
Segunda Dissertação
, se encerra uma psicologia da consciência moral.
Contudo, esta parte não receberá tematização pormenorizada aqui. Quanto a ela,
apresentaremos rapidamente conceitos que, embora apresentados no corpo desse
texto, reincidem na Terceira Dissertação. Desta feita, as considerações que se
seguem são extraídas de alguns parágrafos selecionados sob o critério de serem mais
claros na exposição destes conceitos. A saber, §§ 4-6, §§ 11-12, § 14.

Também
nessa Dissertação encontramos o conceito de má consciência, relacionado
ao de “culpa”; é, pois, a consciência da culpa. Nietzsche sinaliza que o
conceito de culpa tal como se compreende hoje tem sua origem na idéia
material de dívida
. Hoje, embora essa dívida tenha perdido seu caráter de
material, a culpa continua a dizer respeito à dívida, ainda que essa seja
apenas em uma dimensão psicológica. Assim, alguém que se sinta culpado,
necessariamente está em dívida com algo; culpa faz referência à consciência da
obrigação, da reparação de uma dívida, cobrada materialmente entre os antigos.[7] Desse modo, o autor mostra que o credor tinha o direito de “descontar” quanto
achava que valesse a sua dívida no devedor. Com esse processo, ainda que não se
obtivesse a reparação material, pelo menos obtinha o que Nietzsche aponta como
satisfação íntima, que ameniza o débito como uma descarga dessa impotência.
Assim, o ultraje, a punição do devedor passa a ser instituído como o direito
dos senhores (desses que imprimem a dívida) sobre os escravos (estes que arcam
com a dívida). Culpa, nesse processo histórico, ganha o caráter psicológico de
sofrimento. Vingança aparece aqui na forma dessa restituição, de ressarcimento
da dívida, dessa falta que o indivíduo tem com seu credor. O credor se vinga do
indivíduo, impingindo-lhe martírios. Assim, esse que responde pela culpa da
dívida passa a ser encarado como “infrator”, um criminoso, isto é, aquele que
não cumpriu sua parte em um “contrato” em um plano de relação de algum modo
esclarecido. A vingança, neste modo, recebe o nome de justiça se instituindo
enquanto legislação, o que aparentemente se mostra como uma evolução do
sentimento e ressentimento e de reatividade (ANSELL-PEARSON, 1997). Por fim,
Nietzsche (1998) afirma: “a doutrina da vingança atravessa como um fio vermelho
da justiça todos meus trabalhos e esforços”.

§ 6. Do ascetismo e sua compreensão
de vida como “caminho errado”

A
Terceira Dissertação
dialoga com a Primeira que estudamos por tratar de um
dos ideais, cunhados pela transvaloração descrita acima. Nietzsche afirma que
os filósofos, e logo, a filosofia, compartilha do ressentimento típico do
sacerdote, sendo assim, fruto de ressentimento. Entretanto, Nietzsche quer
atingir algo mais específico, ele deseja saber neste momento: “Qual o
significado dos ideais ascéticos?” Resposta que se encaminha a partir dos
seguintes enunciados: “O pensamento em torno do qual aqui se peleja, é a
valoração de nossa vida por parte dos sacerdotes ascéticos (…)”, asceticismo
que encontra definição nas seguintes passagens:

O asceta
trata a vida como um caminho errado, que se deve enfim desandar até o ponto em
que começa; ou como um erro que se refuta _ que se deve refutar com a ação:
pois ele exige que se vá com ele, e impõe, onde pode a sua valoração da
existência (…) Pois uma vida ascética é uma contradição: aqui domina um
ressentimento ímpar, aquele de um insaciado instinto e vontade de poder que deseja
assenhorar-se, não de algo da vida, mas da vida mesma, de suas condições
maiores mais profundas e fundamentais; aqui se faz a tentativa de usar a força
para estancar a fonte da força; aqui o olhar se volta, rancoroso e pérfido,
contra o florescimento fisiológico mesmo, em especial contra sua expressão a
beleza, a alegria; enquanto se experimenta a busca a satisfação no malogro, na
desventura, no fenecimento, no feio, na perda voluntária, na negação de si,
autoflagelação e auto-sacrifício (NIETZSCHE, 1998, pp. 107-108)

Logo ao
abrir a citação, Nietzsche afirma que “o asceta trata a vida como um caminho
errado”. Ora, mas o que poderíamos entender com isso? Um caminho errado seria
aquele que, num determinado momento, se toma equivocadamente. Daí a necessidade
de retornar ao ponto em que se efetuou o erro para tomar a trilha certa.
Entretanto, em se tratando da vida, vê-se que, desde sempre, se esteve nesse
caminho e pressupô-lo errado é negá-lo totalmente, sem a possibilidade de
retornar a um momento anterior; seria, pois, renegar toda a vida. A vida, para
o asceta, tem a conotação de erro, algo como: aquilo que não devia ser
assim…
; isso é o que chamamos de atitude inconformada, o que resultará
numa reação. Essa reação é acarretada por aquele “ressentimento ímpar”, ao qual
Nietzsche (1998) se refere por “aquele insaciado instinto e vontade de poder
que deseja assenhorar-se não de algo da vida, mas da vida mesma…”.
Assenhorar-se da vida significa fazer dela objeto de posse. É isso que pretende
o sacerdote ascético. Entretanto, ele o faz executando um “instinto de cura e
proteção de uma vida que degenera”. Um desejo de correção da vida de fazer que
essa se corrija frente essa noção de erro que o próprio sacerdote introduziu.

O ideal
ascético é um tal meio: ocorre, portanto, exatamente o contrário do que os
adoradores deste ideal __ a vida luta nele e através dele com a morte, contra a
morte, o ideal ascético é um artifício para preservação da vida (…) O
sacerdote ascético é a encarnação do desejo de ser outro, de ser-estar em outro
lugar, é o mais alto grau desse desejo, sua verdadeira febre e paixão: mas
precisamente por isso ele se torna o instrumento que deve trabalhar para a
criação de condições mais propícias para ser homem (…) Já me entendem: este
sacerdote ascético, este aparente inimigo da vida, este negador ele exatamente
está em grandes potências conservadoras e afirmadoras da vida (NIETZSCHE, 1998,
p. 110).

A primeira
parte dessa citação permite que concluamos que mesmo o ideal ascético (que é um
produto do espírito de vingança, e que se mostra como uma negação ressentida do
modo de ser da vida) é manifestação da vontade de poder/eterno retorno, pois,
no ideal ascético, ainda vige a luta entre vida e morte, entre vontades de
poder; tensão entre crescimento, conservação e definhamento, corrupção. O ideal
ascético preserva, sem saber, o caráter de luta característico da vida (embora
em um plano muito velado).

Em outro
momento da citação, vemos o autor afirmar que o sacerdote encara o desejo de
ser outro
. O que seria esse desejo senão a inconformidade ressentida contra
o modo constitutivo do ser da vida? O desejo de ser outro é o de não ser
impotente, de concretizar a vontade subjetiva de dar à natureza a marca
irrestrita do homem. É o desejo que o homem tem de não ser surpreendido por
fatalidades, por tornar a natureza clara, chata, sem nenhum traço de
mistério, de inesperado, de espontâneo. Isso é uma febre, uma paixão incontida
e irrealizável confirmada a cada instante que a vida enquanto vontade de
poder/eterno retorno se afirma. O modo de lida por parte do sacerdote ascético
com o ressentimento fica claro com a seguinte citação:

(…) o
ressentimento é continuamente acumulado. Descarregar este explosivo, de modo
que não se faça saltar pelos ares o rebanho e o pastor, é a sua peculiar
habilidade, e suprema utilidade; querendo-se resumir numa breve fórmula o valor
da existência sacerdotal, pode-se dizer simplesmente o sacerdote é aquele que
muda a direção do ressentimento. Pois todo sofredor busca instintivamente uma
causa para seu sofrimento; mais precisamente, um agente culpado suscetível de
sofrimento_ em suma, algo vivo, no qual possa sob algum pretexto descarregar
seus afetos, em ato ou in effigie pois, a descarga de afeto é para o
sofredor a maior tentativa de alívio. Este pensamento pode ser traduzido da
seguinte forma Eu sofro: disso alguém deve ser culpado __Assim pensa
toda ovelha doente. Mas o seu pastor, o sacerdote ascético, lhe diz: Isso
mesmo, minha ovelha! Alguém deve ser culpado: mas você mesmo é esse alguém __
somente você é culpado de si…
Isto é ousado bastante, falso bastante: mas
com isso se realça uma coisa ao menos, com isto como disse, a direção do
ressentimento é __ mudada (NIETZSCHE, 1998, p. 116).

Quando
falamos da vingança gerada por ressentimento (que denota descontentamento pela
impossibilidade de alterar o modo com que a realidade se efetiva), talvez não
tenha ficado claro que a vingança é imposta contra algo ou alguém que, ao
contrário do modo de ser da realidade, pode ser afetado. Assim, vingança tem a
tendência de ser a desforra, ou o desconto contra algo ou alguém, pois o
ressentimento busca atingir aquele que é o “responsável”, o culpado por esta
dor que ele sente (assim, torna a funcionar a mecânica apresentada nas breves
considerações feitas sobre a Segunda Dissertação). A busca por culpados é
movida pelo interesse de despejar todo sofrimento, frustração ou dor sobre
qualquer um que seja suposto causador ou responsável dessa comoção.
O
sacerdote ascético é aquele que “muda a direção” desse ressentimento acumulado,
que ameaça recair em um culpado. Assim, o sacerdote confirma o ressentimento,
ratifica que existe a culpa, mas nega que pertença a outro, afirmando que, na
verdade, é de quem verdadeiramente sofre por ressentir-se. Com isso, a
“avalanche” é retida, de modo que o ressentimento passa a ser redirecionado,
fazendo que o ressentido tenha que aprender a conviver com sua dor. Observa-se,
portanto, que ali, no bojo do próprio ressentimento, cria-se um modo de transvaloração
(em ato de silenciosa vingança) com o qual o ressentido parece ter que se
contentar.

Nietzsche
prossegue, descrevendo a atuação do sacerdote:

Percebe-se
agora o que, segundo minha concepção instinto-curandeiro da vida ao menos
tentou através do sacerdote ascético, e que lhe serviu a tirania temporária de
conceitos paradoxais e paralógicos como “culpa”, “pecado”, “pecaminosidade”,
“corrupção”, “danação”: para tornar os doentes inofensivos até certo ponto,
para fazer os incuráveis se destruírem por si mesmos, para com rigor orientar
os levemente adoentados de volta a si mesmos, voltado para trás seu
ressentimento (uma só coisa é necessária) e desta maneira aproveitar os
instintos ruins dos sofredores para o fim de auto-disciplinamento, auto-vigilância,
auto-superação (NIETZSCHE, 1998, pp. 117-118).

Esta
citação nos deixa claro que, em certa medida, o sacerdote é um conservador da
vida. Isso quer dizer que, ainda que declaradamente negando a vida, ele afirma
vontade de poder/eterno retorno, quando deixa o ressentimento entregue aos
jogos de força dessa. Explicaremos: entre todos os ressentidos que buscam
livrar-se da dor da impotência de alterar o modo constitutivo da vida, existem
aqueles que, ao saberem pelo sacerdote que eles são culpados pelo próprio
sofrimento, se arruínam. Para estes, o ressentimento é grande demais para
perdoar a culpa; daí a vingança recair sobre o próprio ressentido,
aniquilando-o. Para outros, que Nietzsche chamará de “menos adoecidos”, é
possível suportar essa culpa, acatar a culpa do seu sofrimento, assumir a
responsabilidade de seu ressentimento. Para esses, o sacerdote propiciou um
“voltar atrás do seu ressentimento”; com isso, ele não se “deleta” mas antes se
torna consciente de seus defeitos e instintos ruins, transformando-os em
autodisciplina, em uma tábua valorativa que impõe uma regra moral, uma moral de
horda, de escravos.

Tudo isso é
ascético no mais alto grau; ao mesmo tempo, que não seja engano, é niilista em
grau ainda mais elevado! Vemos um olhar triste, duro, porém decidido __ um olho
que olha para longe, como faz um explorador polar desgarrado (para não olhar
para dentro? Não olhar para trás?). Há apenas neve, a vida emudeceu, as últimas
gralhas que se fazem ouvir dizer “Para que?”, “Em vão!”, “Nada” __ nada mais
cresce ou medra (NIETZSCHE, 1998, p. 114).

Nessa
passagem, temos o laço que, durante todo o texto, procuramos mostrar quando
falamos em ressentimento, culpa e vingança. A saber, o nexo entre asceticismo
(ideal ascético) e niilismo.[8] O asceticismo é niilismo,[9] pois nivela a Humanidade a uma dimensão de impessoalidade, submetida a
princípios morais cunhados por um ressentimento que não se levou às últimas
conseqüências. Desta experiência furtou-se qualquer sinal de decisão, de
necessidade, de tragicidade e de coerência para com o modo de ser da vida.
Agora se vive determinado, vigiado, circunscrito em um código; o viver se
reduziu a obediência servil, e fora disso, nada. Vive-se para cumprir um
código, vive-se, obedecendo a esse código sem saber o porquê, ou para quê.
Vive-se sem nenhum horizonte, sem nenhuma perspectiva, a não ser não sofrer;
tudo é em vão. Nietzsche explica isso na seguinte passagem:

Se
desconsiderarmos o ideal ascético, o homem, o animal homem, não teve até agora
sentido algum. Sua existência sobre a terra não possuía finalidade; “para que o
“homem?”__ era uma pergunta sem resposta; faltava a vontade de homem e terra;
por trás do grande destino humano soava, como um refrão. Um ainda maior “em
vão!” O ideal ascético significa precisamente isso: que algo faltava, que uma
monstruosa lacuna circundava o homem (…) A falta de sentido, não o sofrer,
era a maldição que até então se estendia sobre a Humanidade__ o ideal ascético
lhe ofereceu um sentido? foi até agora o único sentido, qualquer sentido é
melhor do que nenhum (…) Nele o sofrimento era interpretado; a monstruosa
lacuna parecia preenchida; a porta se fechava para todo o niilismo suicida.
(Daí Nietzsche afirmar na conclusão de sua obra) o homem preferirá ainda o
querer o nada a nada querer… (NIETZSCHE, 1998, pp.148-149)

Aqui o
ideal ascético, surge, como sentido para a vida, um “porquê” para isso que
enquanto vontade de poder/eterno retorno se mostrar ao ressentido como
mistério. O ideal ascético traz finalidade para aquilo que não tem finalidade,
cria respostas que vêm dar explicações através de uma tábua de valores, vêm
explicar a vida dando segurança para quem vive desde essa perspectiva. O
mistério, que é a vida, enquanto vontade de poder/eterno retorno, era
interpretada pelo ressentido como o “Em vão”, agora tem um porquê, agora não há
mais angústia, sofrimento, temor, náusea. O algo que faltava chegou suprimindo
a lacuna do sentido do Homem e da Humanidade. O ideal ascético dá consolo,
mesmo sendo niilismo. Assim, fica claro porque o homem prefere querer o nada,
pois esse “nada” é algo em que ele pode agarrar-se, deste “para nada” o homem
extrai consolo, defesas contra outro nada, o nada que a vida lhe impunha.

Um resumo
conclusivo deve seguir agora, com o intuito permitir a visualização das teses
que compõem este escrito: vida é vontade de poder/eterno retorno. Isso dita o
tempo em instantes que não retornam. O que acontece no instante é intangível,
pois, quando se pensa em tangê-lo já estamos em outro. Assim, o homem é impotente diante do modo de ser da vida; não pode alterar isso. Essa
impotência gera inconformidade, que é ressentimento; ressentimento, que é
determinado por um modo de vontade de poder/eterno retorno, chamado vontade de
vontade. O ressentimento se desdobra em ódio, em uma vontade de descontar essa
impossibilidade causada pelo modo de ser da vida. Essa afetação integra o que
Nietzsche chama de espírito de vingança.

Conclui-se,
afirmando que, na história da Humanidade, o espírito de vingança é determinante
de diversas atitudes do homem. Nietzsche acha que o mais significativo é a
revolução escrava acarretada pelo judaísmo e cristianismo sobre a casta dos
nobres e guerreiros. Nessa vingança voltada sobre os nobres, inverteram-se as
premissas, os valores; antes o bom era o nobre; agora o bom é o comum. Isso é o
que Nietzsche chama de transvaloração, um processo operado através de vingança,
por sacerdotes. Estes são homens que são condutores da massa e, segundo nosso
autor, adulteradores da vida. O comportamento desses sacerdotes é marcado pelo
asceticismo. Daí ser chamado de ideal ascético o local para onde é convertida a
impossibilidade, o ressentimento diante da vontade de poder/eterno retorno.
Asceticismo é sublimação desse ressentimento em uma nova valoração, agora uma
moral de escravos, não mais uma moral nobre.

O sacerdote ascético é caracterizado como
aquele que altera e conduz o rumo do ressentimento. Assim, o ressentido (que
tem a tendência natural de atribuir sua impotência e conseqüente sofrimento a
alguém que seria o “causador” e logo, o “culpado” por estes. Culpado esse que
em que pode vingar o dano e dívida causada por este sofrimento) é manipulado
pelo sacerdote a acreditar que ele é o único culpado do seu ressentimento. Com
isso, o sacerdote conserva a vida e evita uma comoção entre indivíduos. O
ressentimento e espírito vingança remanejados acabam se transformando em um
código de auto-conhecimento, auto-vigilância, auto-embate, auto-superação e
auto-disciplina, o que uma vez institucionalizado resulta na Justiça.

Bibliografia:

ANSELL-PEARSON, K. Nietzsche
como pensador político: uma introdução
. Trad. Mauro Gama et all, Rio
de Janeiro: Zahar, 1997.

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GERHARDT, V. Da vontade
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__________. Assim
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__________. Genealogia
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. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
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VÉLES, D. C. El puesto de Nietzsche en la história de la filosofia. In LEFREBVRE, H. Nietzsche. México:
Fondo de Cultura Económica, 1993.


[1] Doutorando em Filosofia pela Universidade do Estado
do Rio de Janeiro/UERJ, Professor na Faculdade de Formação de Professores da
UERJ e da Professor da Universidade Cândido Mendes/UCAM. Autor de Filosofia
Primeira – Estudos sobre Heidegger e outros autores. www.studium-kahlmeyer.com.br/

[2] Friedrich Wilhelm Nietzsche. Nasceu em Rökken/Saxônia,
lecionou filologia antiga na Basiléia (1869-1878). Foi amigo do músico Richard
Wagner (1813-1883) com quem depois rompeu o relacionamento por força de suas
convicções intelectuais. Dedicou grande parte de sua obra a temas como a
transmutação de todos os valores, projeto que envolve as noções de moral,
vontade de poder/eterno retorno, entre outras. Tem entre seus principais
livros: Humano, demasiado humano (1878-1886); Assim falou Zaratustra (1883-1885); Além do bem e do mal (1886); A genealogia da moral (1887); Crepúsculo dos ídolos (1889). Faleceu em Weimar em 1900.

[3] A temática da moral, presente neste texto, não destoa da proposta inicial do livro de
tratar a metafísica. Entendemos que Nietzsche, mesmo
quando aborda este tema, tem em vista o fenômeno metafísico como princípio estruturador desta moral (quer dizer, como doutrina capaz de
também reificar o agir regulando-o por uma teoria, buscando, como na
metafísica, assegurar-se de uma instância essencial donde se alija qualquer
particularidade, circunstancialidade ou finitude, justamente por inaceitar a
realidade em seu modo constitutivo de ser; buscando, por fim, corrigi-lo). O
interesse de Nietzsche pela metafísica fica patente na avaliação de Danilo C.
Véles, quando este comenta o posto do pensamento de Nietzsche e aquele que
seria seu principal escopo, em face das produções críticas baseadas em sua
obra: “(…) Por uma ou outra razão, esta tem dirigido sua atenção,
preferencialmente, à periferia da obra de Nietzsche, desconsiderando o centro
de sua filosofia. Este é um centro metafísico. (…) Há de se ver Nietzsche,
pois, no horizonte dessa metafísica. O dito centro é a raiz donde brota toda
sua obra, que nutre cada um de seus conceitos, cada uma de suas imagens, cada
um de seus símbolos e de seus mitos.(…) Depois vêm as interpretações
biológicas, sociológicas, éticas, religiosas e políticas. Entre elas há algumas
de grande valor. Contudo, todas se movem na periferia do fenômeno chamado
Nietzsche.(…) pois, ademais e sobretudo, Nietzsche é um fenômeno metafísico e
há de ser visto no horizonte da metafísica” (VÉLES, 1993, p. 13).
Aqui, restringe-se o âmbito de nossa interpretação; assim, o Nietzsche do qual
nos ocuparemos, antes de mais nada, é filósofo. Por filósofo, entendemos aquele
que se compromete com questões filosóficas; estas, que pertencem a certa
tradição, de certo modo, ainda vigente no pensamento ocidental, como já dito: a metafísica. Justifica-se, assim, o tema do texto e sua articulação com
as questões deste livro.

[4] Deixemos esse passo em suspenso, pois este será
esclarecido mais tarde, ainda nesse texto.

[5] Assim, a vontade de poder é, segundo E. Fink
(1996), um conceito ontológico que designa o modo de ser de todo vivente, todo
ser que existe enquanto vontade, ímpeto de tornar-se mais forte. Tal
desenvolvimento se observa na natureza por meio de uma incorporação e
subjulgação dos outros seres. Eis a luta pelo poder e sobrepoder, que consiste
no crescimento, na formação, no amalgamamento em função do definhar, do
degenerar, da pulverização do outro. A moral, assim como todas as outras
manifestações da vontade de poder, também passam por esse processo de expansão.
Assim, há a moral que floresce e outras que definham.

[6] Neste contexto, Keith Ansell-Pearson acrescenta
quanto à investigação de Nietzsche: “Proclamar a questão do valor de nossos
valores é, em parte, fazer a pergunta sobre se esses valores refletem um modo
ascendente ou descendente da vida, isto é, que seja superabundante e rico em
sua própria auto-afirmação, ou fraco e exaurido”
(ANSELL-PEARSON, 1997).

[7] Esta relação fica mais evidente na língua alemã,
utilizada pelo autor, na qual o termo “Schuld”, ainda hoje, possui essa dupla
significação: culpa e dívida, compreendendo, também, os
significados de delito e crime.

[8] Retomando a questão “Qual o significado dos
ideais ascéticos?” ainda em um exercício de delimitação.

[9] Usado de modo geral, o termo niilismo indica
a recusa do reconhecimento de realidades ou valores de importância à vida;
especificamente, vemos o termo aplicado no intuito de qualificar uma oposição
radical a valores morais tradicionais e convicções metafísicas. Em nosso
contexto, o niilismo aponta para a negação não de um valor ou traço particular
da vida, mas da totalidade dos valores próprios a esta, em prol daqueles
cunhados pelo ascetismo.

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