O amor, a autoridade, a necessidade e a fortuna

O amor

A prova, da verdadeira fé e a fineza do verdadeiro amor não é seguir ao sol, quando êle se deixar ver claro e formoso com tôda a pompa de seus raios, senão quando se nega aos olhos, escondido e coberto de nuvens. Vêde-o no espelho da natureza.

Aquela flor a que o giro do sol deu o nome, chamada dos gregos heliotrópio; imó­vel e com perpétuo movimento, jamais dei­xa de seguir e acompanhar o seu amado pla­neta. Quando o sol nasce, se lhe inclina e o saúda; quando sobe, se levanta com êle; iquando está no zénite^ o contempla direita; quando desce, se torna, a dobrar; e quando finalmente chega ao oçaso, com outra e pro­funda inclinação se despede dêle. Grande mi­lagre da natureza! Grande fineza de amor!

Mas onde está o mais fino desta fineza?

Maravilha é, e fineza prodigiosa, que aquela flor amante do sol, sem se poder mo­ver de um lugar, o siga sempre em roda, acompanhando seu curso; mas o mais ma­ravilhoso desta maravilha e o mais fino des­ta fineza é que não só segue e acompanha o sol, quando se lhe mostra claro e resplandecente, senão quando se esconde e se en­cobre de nuvens. ,(Idem).

A autoridade

Não basta que as coisas que se dizem, sejam grandes, se quem as diz não é grande. Porisso os ditos que alegamos, se chamair autoridades, porque o autor é o que lhes dá o crédito.

Dizer-se que a pintura é de Apeles x), ou a estátua de Fídias [1]), basta para que a estátua seja imortal e a pintura não tenha preço; mas êsse valor e essa imortalidade a que se deve? Mais ao nome que ao pincel de Apeles; mais à fama que à lima ie Fidas. E o mesmo que sucede ao pincel e à lima, é o que experimentam igual­mente a voz e a pena. Se o que diz é Demóstenes3) tudo é elo­qüência ; se o que escreve é Tácito [2]), tudo é política; se o que dis­corre é Sênéca, tudo é sentença. Talvez acertou a dizer o rústico o que tinha dito Salomão [3]); mas o que no rústico não merece ouvi­dos, em Salomão é oráculo. De sorte que não basta que as coisas que se dizem, sejam grandes, se quem as diz é pequeno. (Idem).

A necessidade

A necessidade, a pobreza, a fome, a xaíta do necessário para o sustento da vida, é o mais forte, o mais poderoso, o mais absolu­to império, que despoticamente domina sôbre todos os que vivem.

Não há coisa tão dificultosa, tão árdua, tão repugnante à natureza, a que a não obrigue, a que a não renda, a que a não sujeite, não por vontade, mas por fôrça e violência, a duríssima e inviolável lei da necessidade.

À necessidade é a que leva o soldado à guerra e a escalar as muralhas, onde, vendo cair uns a ferro e voar outros a fogo, avan­ça contudo e não desmaia. A necessidade é que engolfa o mari­nheiro nas ondas do oceano; elas com os naufrágios à vista, e êle com tal ousadia, que, metido dentro em quatro tábuas, se atreve a pelejar não só com os ventos e tempestades, mas com todos os ele­mentos. A necessidade é que mete ou precipita o mineiro ao mais profundo das entranhas da terra, e, sem temer que as mesmas montanhas que tem sôbre si, caiam e o sepultam, êle lhes vai ca­vando as raízes e sangrando as veias. Finalmente, com mais ordi­nário e geral desprêzo da vida e da saúde, quem faz que o lavrador não tema os regelos do inverno, nem o segador as calmas ardentes do estio, nem o pastor os dentes do lôbo e do urso, e em muitas partes as unhas do leão e do tigre, senão a necessidade? E, pôsto que uns e outros, tantas vêzes pereceram em tão conhecidos perigos, a mesma necessidade, com implicação manifesta da própria con­servação, é a que, para sustentar a vida, os obriga a perder a mes­ma vida. Até o pobre e atrevido ladrão, que, desde o primeiro pas­so com que salteou os caminhos, começou a^caminhar para a for­ca, se ao pé dela lhe perguntam, quem o trouxe a tão miserável es­tado, responde com o laço na garganta— que a necessidade. E, para que ninguém se admire dêste grande poder da necessidade sô­bre todos, a razão é, diz o provérbio, porque todos os outros pode­res são sujeitos às leis e só a necessidade não tem lei.

(Idem).

A Fortuna

Vàriamente pintaram os antigos a roda que êles chamavam For­tuna. Uns lhe puseram na mão o mundo, outros uma cornucopra 1), outros um leme; uns a tormaram de ouro, outros de vi­dro, e todos a fizeram cega, todos em figura de mulher, todos com asas nos pés e os pés sôbre uma roda. Em muitas coisas erra­ram como gentios [4]), em outras acertaram como experimentados e prudentes. Erraram no nome de Fortuna, que significa caso ou fado; erraram nas insígnias, erram na cegueira dos olhos e poderes das mãos; porque o govêrno do mundo, significado no le­me, e a distribuição de tôdas as coisas, significada na cornuco­pia, pertence somente à Providência Divina, a qual, não cegamen­te ou com os olhos tapados, mas: com a perspicácia de sua sabe­doria e com a balança da sua jusüça na mão, é a que reparte a cada um e a todos o que para os fins da mesma Providência, com altíssimo conselhoí, tem ordenado e disposto.

Acertaram, porém, os mesmos gentios na figura que lhe de­ram, de mulher, pela inconstância; nas asas dos pés, pela veloci­dade com que se muda; e sobretudo em lhos porem sôbre uma ro­da, porque nem no próspero, nem no adverso [5]), e muito menos no próspero, teve jamais firmeza; os que a fingiram de vidro pela fragilidade, fingiram e encareceram pouco; porque, ainda que a formassem de bronze, nunca lhe podiam segurar a inconstância da ro. (dem),


‘2) Fídias — o mais estatuário ateniense.

[2] Tácito — ilustre historiador latino.

[3] Salomão — 39 rei dos judeus — o maior sábio do seu tempo.

[4] gentios ==. pagãos. .

[5] nem no próspero, nem no adverso — nem nos dias de prosperi­dade, nem nos dias de adversidade.

Fonte: Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores brasileiros e portugueses por Alfredo Clemente Pinto. (1883) 53ª edição. Livraria Selbach.

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