O bacharel de Cananéia – Paulo Setúbal

O BACHAREL DE CANANÉIA
Paulo Setúbal

Dos “Ensaios Históricos

Tenho constatado que ainda há gente que me lê. E tenho-o constatado com
surpresa. Um escritor que há três anos (há três longos anos) evita, com paixão,
a publicidade, e que, preconcebidamente, deliberou viver no seu modesto
cantinho, isto é, viver na aconchegada e veludosa penumbra do seu lar, longe do
fanfarreiro gritante dos jornais, é um escritor irremissivelmente condenado a
não ter mais público. Pois vejo que me enganei. Estes despretensiosos artigos
de domingo, com que o amável, mas irredutível diretor da "A Razão" me
forçou a reaparecer na ribalta literária, têm provocado abundante messe de
cartas, que, com espanto para mim, denunciam bem o número ainda envaidecedor de
leitores que me seguem. Destaco hoje, dentre essas cartas, uma que me fez
sorrir. Uma que vem assinada: "Velho Paulista". Encontrei nela este
pedido: "… seria muito proveitoso que o Sr. explicasse, com o seu estilo
fácil e com o seu jeito ameno de escrever a história, quem é esse bacharel que
Mar-tim Afonso encontrou em Cananéia. Nos tempos que correm, não se tem mais
tempo para ler trabalhos que tratem de assunto como este. . . etc. etc".

Li a carta e
—’ confesso! — sorri do velho paulista. Sim, sorri do meu gentilíssimo
leitor. O pedido que ele me faz, com tão bonita singeleza, mostra, à
evidência, quanto o brasileiro anda afastado das coisas da sua história. Não
fosse esse afastamento, esse incomensurável afastamento, certo não solicitaria
o "Velho Paulista", com a sua saborosa singeleza, que eu esclarecesse
quem é o bacharel de Cananéia. E isso por um motivo simples: essa questão,
apesar de pequenina, é uma das mais intrincadas e das mais enigmáticas questões
da História do Brasil e, particularmente, da História de São Paulo. O que já se
não escreveu sobre isso! Quanta tinta já não correu em torno da tese! Pedro
Taques, Frei Gaspar, Machado de Oliveira, Varnhagen, Galanti, Cândido Mendes.
. . quanta gente, meu Deus, já não debateu o assunto! E nenhum deles, nem
mesmo um historiador da estirpe de Varnhagen, conseguia ainda
esclarecer quem era o misterioso bacharel. Não serei eu, está
claro, quem vá esclarecê-lo. Não posso, querido Paulista Velho,
satisfazer-lhe a curiosidade.

Vou,
contudo, fornecer a V. S. alguns dados sobre a personalidade do
estranho personagem. V. S. quando já tiver amealhado o suficiente para
viver sem trabalhar, poderá (eis uma linda ideia!) dedicar os dias de sua
velhice em deslindar a impenetrável questão. Será — não acha? — uma bela e
nobre maneira de encher os ócios
de sua velhice: otium cum dignitate, como diriam os romanos.

* * *

Quando
Martim Afonso de Sousa, em agosto de 1531, descia até o Rio da Prata,
estacionou, por espaço de quarenta dias, no porto de Cananéia. Conta o Diário
da Navegação, escrito por Pêro Lopes de Sousa, irmão de Martim Afonso de Sousa,
que, durante essa permanência, fora enviada à praia, a fim de se entender com
os selvagens, um certo Pedro Annes, piJoto da frota, que era grande conhecedor
da língua tapuia. O piloto foi e voltou. Eis o que diz o Diário:

"Quínta-feira, 17 dias do mez de Agosto, veiu Pedro Annes, piloto,
no bargantim, e com elle veiu Francisco de Chaves e o bacharel, e cinco ou seis
Castelhanos.

Este
bacharel havia trinta annos que estava degradado nesta terra, e o Francisco de
Chaves era muy grande lingua nesta terra.

Pela informação que delia deu ao capitam, mandou á Pêro Lobo com
oitenta homens, que fossem descobrir pela terra a dentro; porque o dito
Francisco de Chaves se obrigava que em dez mezes tornara ao dito porto com
quatrocentos escravos carregados de prata e ouro".

Eis em cena, Sr.
Paulista Velho, o nosso homem famoso!

Agarremo-lo pela gola e vamos
destrinçá-lo. Não é, acentuemo-lo desde já, a primeira vez que o nome de tal
bacharel vem à baila. É ele, ao contrário, pessoa muito falada nas
crónicas. Parece mesmo, pelo que ressalta de velhos papéis, que se trata de
individualidade muito conhecida dos mareantes que arribavam por estas
paragens. Assim, Diogo Garcia, o piloto da expedição de 1527, trata
miudamente do bacharel. Chegou mesmo a tratar com ele vários negócios. O
bacharel, a essa época, não estava em Cananéia, mas sim em S. Vicente. Eis o que diz Herrera, na sua "Historia das índias Occidentais":

"El
piloto Diego Garcia, portuguez, fue a la bahia de San Vicente, adonde llegó a 15
de enero; y un bachiller, portuguez, le dió mucho refresco de carne, pescada, y
vitualla de la tíerra…"

O próprio Diogo Garcia, cm carta que escreveu ao Rei da Espanha, se
refere abundantemente a tal bacharel. Vivia ele há trinta anos, em S. Vicente, com os seus genros; e, homens de negócios, contratara com o próprio Diogo Garcia,
a venda de oitocentos escravos. Eis a carta:

"1527.
E de aqui fuemos a tomar refresco en San Vicente; alli vive un bachiller e unos
yernos suyos ha bien 30 anos". . . "compre de un yerno deste
bachiller un vargantin que mucho
servicio nos hizo". . . "y este bichiller, con sus yernos, hicieron
comigo una carta de fletamiento para que los truxese em Espana, con la náo
grande, ochocientos esclavos"…

Eis pois, Sr. Paulista Velho, as fontes que falam do Bacharel.

Torna-se necessário, segundo elas, decifrar quem é esse homem, que,
vivendo em S. Vicente no ano de 1527 e em Cananéia no ano de 1531, reunisse em
si estes requisitos: ser bacharel; ser português; ser degradado; ter vários
genros.

Dos historiadores que se meteram a decifrar essa charada, dois merecem
um destaque especial. Foram os que mais eruditamente se entranharam na matéria.
Um é Varnhagen; outro, Cândido Mendes.

Para Varnhagen o bacharel é um tal Gonçalo da Costa, que Sebastião
Caboto encontrou no Brasil e levou para Portugal. Para Cândido Mendes, que
defende o seu ponto de vista com largo entranhamehto, o bacharel é o próprio
João Ramalho, o patriarca de S. Paulo.

Parece que ambos, apesar de muito doutos, não destrinçaram os fios
dessa complicadíssima meada. Pois, com a maior justeza, assim critica o padre
Galan-ti a teoria dos dois decifradores:

"Varnhagen quer identificar esse bacharel com um Gonçalo da Costa;
Cândido Mendes, com João Ramalho.
Em nosso ver, nenhum dos dois acertou. Não pode ser Gonçalo da Costa porque
este, segundo Herrera, ao qual apela Vanhagen, não era bacharel, e em 3530
voltou para a Espanha com Sebastião Caboto, indo estabelecer-se em Sevilha,
onde D. João III o mandou chamar, oferecendo-lhe segurança e
mercês para que fosse a Lisboa.

Isto faz crer que Gonçalo
da Costa, era ou um degradado, ou algum desertor.

Observe-se que Caboto esteve só uma vez no Brasil em 1526, e tocou
unicamente em Pernambuco, e em Santa Catarina. Pois, se Gonçalo da Costa seguiu Caboto em 1526, e voltou com ele para a Europa em 1530, como, em 1527, podia
estar em S. Vicente, e em 1531 em Cananéia? E como podia dizer a Martim Afonso
que morava naquele lugar havia trinta anos? Isto é, pelo menos, difícil de
conciliar.

Nem se pode tão pouco
identificar esse bacharel com João Ramalho, que era analfabeto, e por isso não
era possível que fosse bacharel. Nem se diga que lhe davam o título de
bacharel como alcunha, porque neste caso lho teriam conservado, e diriam: João
Ramalho, o Bacharel. Afirmar com Cândido Mendes que esse bacharel, vivendo entre os selvagens, tinha esquecido
tudo, e por isto parecia, analfabeto, cremos que é demais. A não falarmos no
Frei Gaspar, cuja boa-fé em nossos dias é reconhecida como assaz duvidosa,
todos admitem que João Ramalho veio a estas terras pelos anos de 1515, ao passo
que o bacharel morava cá desde 1502. O bacharel tinha numerosos genros, e por
conseguinte muitas filhas: as filhas de Ramalho foram apenas duas, Beatriz e Joana, as quais se casaram com
Lopo Dias e Jorge Ferreira, portugueses vindos na frota de Martim
Afonso. O bacharel, sendo degradado, não podia preencher ofícios públicos, como
os ocupou Ramalho, o qual embora de mau caráter, entregue a vícios baixos, etc,
não era degradado".

*
* *

O bacharel, pois (como vê o Velho Paulista) continua ainda enigmático.
Quem poderá elucidar o problema? Não sei. Certamente não serei eu. Vamos deixar
o caso para um desses historiadores beneméritos, carunchos de arquivos, que
passam a vida entre papéis velhos a desvendar mistérios como esse. Quando for
deslindada a questão, eu hei de garatujar, aqui nesta mesma coluna, para V. S., Paulista Velho, e outros como V. S.,
um artigo em que explique "com o meu estilo fácil e o meu jeito ameno de
escrever a História", quem é o bacharel de Cananéia.

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