Conta-se como raro e impressionante episódio da nossa vida gauchesca, o seguinte fato, significativo e comovente, e que bem mostra o amor e o reconhecimento do habitante da nossa campanha pelo animal de sua montaria habitual — o cavalo.
“Por ocasião da última pugna revolucionária, que se acendera pelos quatro cantos do Rio Grande, um dos tantos guerrilheiros destemidos daquela escaramuça, após tiroteio violento caíra por terra, mortalmente ferido, a poucos passos onde seu cavalo, já crivado de balas estava por momentos. Senhor de uma lucidez admirável, o guapo combatente, movido por um gesto de incomparável beleza nômade, arrastou-se com inaudito sacrifício até onde o animal agonizava. Feito isso, abraçou-se ao pescoço do seu nobre companheiro de lutas, e ambos, numa solidariedade que devera ser de intensa comoção para quem a presenciasse, ficaram assim unidos até que a morte, momentos após, os imobilizasse para sempre, deixando-os entretanto, entrelaçados, na mesma postura, com que, dois dias depois, já na franca decomposição da matéria, os surpreendeu a objetiva fotográfica de um jovem fazendeiro da vizinhança.” “
Essa é a história. O caso vale certamente como um símbolo expressivo e belo símbolo de duas existências que vivem perfeitamente ligadas nos destinos da terra, ou mais propriamente: êle significa a união indissolúvel, para a vida e para a morte, dos dois dominadores do largo pampa. –
Na verdade um e outro estão de tal forma unidos, que impossível será separá-los, enquanto o Rio Grande não perder o feitio característico da sua atividade pastoril, em que repousam a sua tradição, a sua fôrça e a sua grandeza. Por isso amalgamados, esculpidos como num bloco único, o cavalo e o homem que e tem prêso ao tenteio das rédeas, reatam na. coxilham, na mais surpreendente das realidades, a existência mitológica dos Centauros [1]).
Não há que estranhar, portanto, êsse amor quase brutal do gaucho por aquêle que é o único companheiro inseparável de tôdas as suas atitudes, tanto na sua vida pacífica de trabalho ou de nomadismo, como nas suas tempestades da rebeldia. Vai de mistura com êsse sentimento uma natural gratidão que remonta aos primeiros dias da nossa terra. Pois com o cavalo criamos o pago e consolidamos tôdas as conquistas do passado e do presente; foi sôbre o seu dorso, montado de sol a sol e indiferentes a tôda sorte de perigos, que realizamos os ciclos mais belos da nossa vida política e que escrevemos, ao ímpeto dramático da£y cargas de lança, as páginas mais expressivas da nossa histórias . . “Com o cavalo vencemos tudo” — afirmara de uma feita Chice Pedro [2]), ao levar de vencida em marcha acelerada para além da fronteira, uma sortida de numerosos invasores.
O cavalo é o preparador inconsciente do nosso povo. . . Potro bravio, arrancando às manadas, êle passou a ser, depois de domado, o auxiliar eficaz e o impulsor admirável daquêle que se fêz seu dono. E’ inegável a ação sugestiva que êle exerce sôbre o cavaleiro. Um gaúcho a cavalo tem o ânimo disposto, se encoraja e se envaidece, sentindo o influxo da sua atitude. Um pingo bom, vivo, garboso, bem apeirado, atirando o freio, transmite ao ginete o seu ardor, alevanta os seus brios e torna-o capaz de atos de audácia e temeridade, duplicam-se o amor próprio e o valor, e representa, em suas mãos um poder que êle domina e dirige a seu bei prazer. Êle é o “Monarca das Coxilhas”!. ..
Nas lendas, nos improvisos, nos descantos e desafios dos tro- veiros anônimos, assim como na poesia glorificadora das nossas façanhas guerreiras; onde quer, enfim, que fale o sentimento de um verdadeiro rio-grandense, ali encontraremos sempre a singela mas elevada glorificação do “pingo”. Não há mesmo uma só página da nossa literatura local, que não o eleve como um colaborador, como um auxiliar decidido e decisivo de quem o possue. Êle é uma “personagem” de tanta ação na vida do pampa como o seu próprio dono. . . “Um gaúcho de alma não abandona o seu cavalo e quando fala com êle é como se falasse à gente”.
E quem quer que escrevesse uma página sôbre aspectos, hábitos e costumes da campina rio-grandense, não o esqueceu certamente colocando por vezes no primeiro plano aquele que é um fator da nossa riqueza material e da nossa riqueza moral. . .
Não há negar também a significativa contribuição de guerra 3o cavalo em tôdas as pelejas que imemoriavelmente, se vêm deflagrando no rincão natal com essa rara insistência dos sacrifícios periódicos. E’ sabida a rapidez com que o gaúcho apela para o seu poderoso e dedicado auxiliar. Ao primeiro sinal da luta, ao primeiro toque de reunir, o cavalo, quer _ seja pingo de trato, guer ardego bagual *) recém-enfrenado ou mesmo mísero matun- 50 [3]) de campo pobre, aponta no tabuleiro das coxilhas, formando os esquadrões dos combatentes, as grandes massas em movimento, logo depois arremessadas contra outros tantos valentes pe- leadores [4]) em guarda. Ferido o ataque, dentro de pouco um quadro único empolga o menos prevenido dos olhares: é a visão trágica dos entreveiros, o arremêsso das cargas envolvendo num último arranco desesperado o cavaleiro e o corcel… E não há descrever, então, a beleza espantosa do quadro onde os dois sêres indistintamente arrastados pela derrota ou pela vitória mais se compreendem . ..
Fora, entretanto, dêsse embiente, não menos intensa é a sua lição, o seu contacto, já não mais com o guerreiro guapo, mas som o campeiro sacudido e desempenhado das velhas lides pastoris. E’ de vê-lo nos rudes trabalhos das estâncias, na faceirice dos passeios, nas trotadas e agachadas estrada em fora, na “penca [5]) ias carreiras ou no disparo das “califórnias 4). Olhado e admirado nessa função social do meio, o cavalo faz verdadeiros pro- iígios: parece que adquiriu um lúcido entendimento do mister para o (jual foi escolhido e ensinado; adivinha o pensamento do seu ginete; trai na sua faceirice, no garbo do seu andar a atitude de çiuem o monta. . .
Concluamos: Mau grado[6]) os novos e modernos meios de transporte que já invadiram a gleba, o gaucho, o verdadeiro
‘guasca”,.. . não vacila na preferência… E justifica-se o seu oendor natural e instintivo pelo seu “flete” invencível… Qualquer Dutro elemento de condução não lhe inspira a mesma confiança a segurança. São elementos duvidosos e falhos quje no momento “refugam”, o que não acontece certamente coV_aquêle que é a sua andadura habitual e do qual êle conhece tôdas as baldas e “manhas”. Roque Callage
1) cavalo não domado.
[1] Centauros: Raça de homens selvagens da Tessália (região da Grécia antiga) destruídos pelo Lapitas. — Os poetas os pintam metade homens metade cavalos, porque vistos a cavalo, julgou-se que íormassem com êste animal um só ente monstruoso.
[2] Chico Pedro — o famoso guerrilheiro rio-grandense Francisco Pe- 3ro de Abreu (Barão de Jacuí).
[3] cavalo velho de pouco préstimo.
[4] castelhanismo — combatentes.
[5] pencà, califórnia — corrida de cavalos em que entram três ou mais parelheiros.
[6] mau grado — parece-me mal empregada aqui esta expressão que, a meu ver, deve ser substituída por — não obstante ou por a-pesar-cte.
Fonte: Seleta em Prosa e Verso dos melhores autores brasileiros e portugueses por Alfredo Clemente Pinto. (1883) 53ª edição. Livraria Selbach.
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