O JOGO – Rui Barbosa

Rui Barbosa

O  JOGO

De
todas as desgraças que penetram no homem pela alma, e arruinam o caráter pela
fortuna, a mais grave é, sem dúvida nenhuma, essa: o jogo na sua expressão mãe,
o jogo na sua acepção usual, o jogo propriamente dito; em uma palavra, o jogo:
os naipes, os dados, a mesa verde.

Permanente
como as grandes endemias que devastam a humanidade, universal como o vício,
furtivo como o crime, solapado no seu contágio como as invasões purulentas,
corruptor de todos os estímulos morais como o álcool, êle zomba da decência,
das leis e da polícia, abarca no domínio das suas emanações a sociedade
inteira, nivela sob a sua deprimente igualdade todas as classes, mergulha na
sua promiscuidade indiferente até os mais baixos volutabros do lixo social,
alcança no requinte das suas seduções as alturas mais aristocráticas da
inteligência, da riqueza, da autoridade: inutiliza gênios; degrada príncipes;
emudece oradores; atira à luta política almas azedas pelo calástismo habitual
das paradas infelizes, à família corações degenerados pelo contacto cotidiano
de todas as impurezas, à concorrência do trabalho diurno os náufragos das
noites tempestuosas do azar; e não raro a violência das indignações furiosas, que
vêm estuar no recinto dos parlamentos, é apenas a ressaca das agitações e dos
destroços das longas madrugadas do cassino.

Quantos
destinos não se contam por ai dominados exclusivamente na sua irremediável
esterilidade pela ação desse fadário maligno! Quantas vidas, que a natureza
dotara de prendas excelentes para a felicidade própria e o bem dos seus
semelhantes, no descontentamento, na revolta, na inveja, na malevolência
habitual! Quantos fenômenos inexplicáveis de reação, de cólera, de ódio ao que
existe, de despeito contra o que dura, de guerra ao que se eleva, de irreconciliabilidade
com o que não se abaixa, não tem a sua origem
nos contratempos e amarguras dessas existências aberradas, que, sacudidas
continuadamente pelas emoções do inesperado, se alimentam das suas surpresas,
se estiolam com as suas decepções, e, vendo a felicidade repartir-se às cegas
pela superfície do tabuleiro verde, acabam por supor que a sorte de todos,
neste mundo, se distribui com a mesma casualidade, com a mesma desproporção,
com a mesma injustiça, acabam por ver no merecimento, no esforço, na economia,
na perseverança, coisas fictícias, estranhas ou hostis, acabam por confundir o
sudário divino dos mártires do trabalho, com a pobreza exprobratória em que a
ociosidade amortalha os desclassificados de todas as profissões!

Esse mal,
que muitas vezes não se separa do lupanar senão pelo tabique divisório entre a
sala e a alcova; essa fatalidade, que rouba ao estudo tantos caracteres, ao
dever doméstico tantas virtudes, à pátria tantos heroísmos, reina, sob a sua
manifestação completa, em esconderijos, onde a palavra se abastarda no salão,
onde a personalidade humana se despe do seu pudor, onde a embriaguez da cobiça
delira cínica e obscena, onde os maridos blasfemam pragas improferíveis contra
a sua honra conjugai, onde, em comunhão odiosa, se contraem amizades
inverossímeis, onde o menos que se gasta é o equilíbrio da alma, o menos que se
arruina é o ideal, o menos que se dissipa é o tempo, estofo precioso de todas
as obras-primas, de todas as utilidades sólidas, de todas as ações grandes.

Inumerável
é o número de criaturas, que a tentação, o exemplo, o instinto, o hábito, o
acaso, a miséria, levam a passar por esses latíbulos, cuja clientela vai
periodicamente fazer-se apodrecer ali, por gozo, por necessidade, por avidez,
e na corrupção de cujos mistérios cada iniciado se afaz a ir deixando ficar aos
poucos a energia, a fé, o juízo, a nobreza, a honra, a temperança, a caridade,
a flor de todos os afetos, cujo perfume embalsama e preserva o caráter.

Aqueles,
que, por uma reação do horror no fundo da consciência, logram salvar-se em
tempo desses tremendais, poderiam escrever a história da natureza humana vista
sob aspectos inomináveis. Outros, porém, presas da vasa, que nunca mais os
larga, rolam, e imergem nela de decadência em decadência, cada vez mais
saturados, cada vez mais infelizes, cada vez mais afundados no infortúnio, até
que a piedade infinita do termo de todas as coisas lhes recolha ao seio
do eterno esquecimento, os  restos inúteis de um destino sem epitáfio.

Eis o jogo,
o putrefador. Diátese cancerosa das raças anemizadas pela sensualidade e pela
preguiça, êle entorpece, caleja e desviriliza os povos, nas fibras de cujo
organismo insinuou o seu germe proliferante e inextirpável.

Os
desvarios do encilhamento vão e passam como rápidos temporais. São
irregularidades violentas das épocas de prosperidade e esperança. Só o jogo não
conhece remitências: com a mesma continuidade com que devora as noites do
homem ocupado e os dias do ocioso, os milhões do opulento e as migalhas do
operário, tripudia uniformemente sobre as sociedades nas quadras de fecundidade
e de penúria, de abastança e de fome, de alegria e de luto. É a lepra do vivo
e o verme do cadáver.

Se o Tácito
do encilhamento, o historiador implacável, o grande moralista, o reformador
imaculado, o missionário de tantas regenerações, se acha puro, como eu lhe
desejaria, de cumplicidade na propagação de tal flagelo, imploremos de
S. Exa. que volte a sua palavra apostolar contra esta praga, cuja atualidade é
perene, em vez de malbaratar esforços tão úteis contra um mal que acabou e não
há receio de voltar. No caso contrário, aprenda, meditando o nosce te ipsum,
a ser cometido, temperante e discreto.

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