PAULISTAS DO SÉCULO XVII
Paulo Setúbal
Dos “Ensaios Históricos”
A
"História Geral das Bandeiras Paulistas", do preclaro Dr: Afonso-
Taunay, representa um dos esforços maiores, e dos mais ilustres, para a
reconstrução do período épico do bandeirismo, esse fenómeno altíssimo na
formação da nacionalidade. A obra, porém, tão erudita e tão intensa, não é,
infelizmente, obra de popularização. O feitio dela, aquele recheio de nomes e
datas, as transcrições, aqueles muitos alvarás e atas-de-câmara, tudo aquilo,
enfim, que torna o trabalho fortemente fidedigno, é exatamente o que afugenta o
leitor comum, o leitor do século prático, o leitor que lê no bonde, esse homem
rápido, utilitário, que não tem folgas sobejas para correr olhos pacientes
sobre a papelada maçante das coisas velhas. O próprio autor confessa no pórtico
do seu doutíssimo trabalho: "Não é uma obra de síntese a que o leitor tem
sob os olhos. Nem poderia ou deveria sê-lo, pois a história sistemática e
pormenorizada das bandeiras paulistas jamais se fez até hoje".
Eis porque o livro do Sr. Taunay será, para todo o sempre, o marco
miliário dessa história curiosa da expansão territorial brasileira: será
a grande fonte, o livro-manancial, em cujos ricos veios os
estudiosos irão se abeberar com fartura. No entanto, para eficiência de
contribuição tão séria, mister se faz que venham à tona, com intuitos
vulgarizadores em estilo menos carrancudo, alguns dos vários aspectos
interessantes da obra eminente. Um deles, o que ressalta da exposição da
matéria, através dos tomos já publicados, é essa rebeldia destemerosa, esse
intrépido espírito de arrogância, que caracteriza os paulistas do século XVII. Nota marcante, traço varonilizado dos desbravadores do
sertão, essa soberba rústica, tão afrontosa, merece decerto uma página de
popularização. Comecemos do começo. As zangas dos bandeirantes ferveram em
torno de uma só causa: os índios.
OS ÍNDIOS
Para se
compreender claro a psique daqueles velhos paulistas semibárbaros, é preciso
penetrar bem no espírito da época. Um fato, um só, pincela coloridamente
aqueles torvos tempos. É o caso dos índios. Para os sertanistas, para
esses tipos hirsutos, almas en-coscoradas e selvagens, os bugres não eram
gente. Jamais! Os bugres eram, simplesmente, bichos do mato. Bichos
perigosos, muito maus, que se preava como quem prea onça. Não houve, no tempo,
idéia mais enraizada. Ninguém podia crer que aqueles brasis de batoque no beiço, comedores de gente, ouriçados
de usanças sanguinárias, pudessem ter, como os outros homens, uma alma
raciocinante e espiritual. Não era possível! Aqueles tapuias eram bichos. Mais
nada. . . Tão estranhado andou este pensar nos homens do tempo, que foi
necessário uma bula do papa — imaginai um pouco! — uma bula do papa elucidando
peremptoriamente a questão. É a famosa bula de Paulo III, promulgada
em 9 de junho de 1536, e que começa: "Veritas ipsa quae nec falli nec fallere
potest…" Aí declara o Sumo Pontífice, com a maior autoridade, "que
se reconhecessem os americanos como homens verdadeiros!" Em Lima, ainda
assim, segundo nos conta Ferdinand Denis, agitou-se de novo, em concílio, esta
questão: saber se "os índios tinham inteligência bastante para receber os
sacramentos da igreja". Evidentemente, diante da palavra papal, foi
decidido que sim. Mas tudo isso, essas bulas e discussões, provam alto que, por
esses tempos, a ideia; dominante, a ideia tida como certa, foi a de que os
índios não tinham alma. Não passavam eles de bichos, só bichos. Daí, de tais
ideias, nasceu a famosa desavença entre jesuítas e paulistas.
JESUÍTAS E PAULISTAS
Entre jesuítas e paulistas, nos fins do século XVI até meados do século XVII,
desencadeara-se o ódio mais aceso
de que há memória no Brasil alvorecente. A luta estrugira em torno do ponto
eterno, do ponto único: os índios. É que os de S. Paulo, gente fragueira,
me-tiam-se rijos e desassombrados pelos matos. Sorriam tudo. Canseiras? Nunca
existiu para aqueles homens rudes. Fome? Era coisa de somenos. Feras? Paludes?
Riam-se delas. E tudo isso para quê?
— Para caçar bugres!
Desciam os
sertanistas levas gordas. São Paulc alargara-se de selvagens. Era a
feira nacional do comércio vermelho. Os engenhos do Norte entupiam-se de
índios de Piratininga. Do Rio, cada estação, chegavam bandos de mercantes
de tapuias. Uma febre! Ora, exatamente contra isso, foi que se
encapelaram os jesuítas. Esses homens aqui desembarcaram com entusiasmos
galhardos. Traziam no peito, muito cândida, uma fervente chama
evangelizadora. Ferre toa va-os essa límpida ambição de semear na alma
bronzeada dos botucudos a palavra mística de Jesus. E enfiavam-se duramente
pelo sertão. Aprendiam a língua dos brasis. Aldeavam-nos.
Cristianizavam-nos. Mas um dia, depois de tão suada evangelização, lá vinham
os paulistas -zás! — despenhavam-se como brutos sobre os aldeamentos,
incendiavam, arcabuzavam, preavam as "peças", arrastavam-nas
algemadas para S. Vicente.
Nessa faina, nesse período da caça, ajudados pelo seu
gênio aventureiro, desbravador, foi que os bandeirantes conquistaram o Sul
inteiro do Brasil. Foi graças ao atrevimento e à dureza desses homens ásperos,
homens do seu tempo, que o Paraná, Santa Catarina, Rio Cirande do Sul,
pertencem hoje ao território nacional. Foram eles, os intrépidos caçadores de
bugres, que recuaram para muito longe o clássico meridiano de Tordesilhas.
Foram eles, só pela sua audácia, os conquistadores da terra.
Deste choque de interesses — paulistas a prearem índios, jesuítas a
escondê-los em seus aldeamentos — nasceu a briga memorável, essa luta sem
tréguas que acirrou vermelhamente inacianos e piratininganos. Não houve meio de
conciliação. Os paulistas estabeleceram, como ponto capital, esse direito, que
reputavam intangível: o direito de se afundarem pelas brenhas e trazerem de lá
os índios que bem encontrassem. Na defesa deste direito, ou antes, e melhor, na
defesa destes seus interesses, mostraram os sertanistas do século XVII uma sobranceria acintosa. Não respeitavam ordens de governadores. Não
respeitavam cartas régias. Não respeitavam desembargadores, nem enviados da
corte, nem militares de patente graúda, nada! Defendiam as suas prerrogativas
com arrogância desabalada. É só ver.
A ARROGÂNCIA DOS SERTANISTAS
Os jesuítas, então poderosíssimos, moveram céus e terras para meter um
paradeiro à descida dos índios. Mandavam emissários aos ministros. Mandavam ao
rei. Chegaram a mandá-los ao próprio papa! O provincial de S. Paulo escrevia,
com lágrimas, ao Superior de Madri:
— "Meu padre! Tenha dó de nós. . . Vá
falar a Sua Majestade, vá falar ao Senhor Conde de Olivares, vá falar aos
senhores do conselho de Portugal! Não há força capaz de conter os paulistas
de S. Paulo. Não temem excomunhões, não obedecem a cédulas reais, não fazem
caso de Justiça de Deus, nem da dos homens". Tinha razão o Provincial! De
nada valiam ordens da Corte. Já o desembargador Jácome Bravo saíra
daqui, muito às escondidas, noite morta, tremendo de medo dos paulistas. O
Dr. Antão de Mesquita, que trouxera alçadas abundantes, sofreu tais desfeitas,
tão ameaçadores, que um dia, afinal, meteu o rabo entre as pernas e escapuliu
num burrinho magro. Um capitão de infantaria, homem de muitas dragonas e
galões, veio a S. Paulo com poderes excepcionais. Devia o militar, custasse o
que custasse, obrigar os paulistas a guardar as ordenanças. Que é que
sucedeu? O capitão alo-jou-se, mostrou a sua carta régia, fez propalar ao que vinha. Na manhã seguinte, logo ao acordar-se, topou o soldado com duas
flechas cravadas na sua janela. Numa havia um pedaço de papel, com isto:
— "Vá-se embora. Não bula nessa história de bugres. Senão,
haveis de ter estas duas flechas, não na
vossa janela, mas afincadas na vossa barriga…"
O capitão viu o melindre do caso. Ali, naqueles cimos, entre aquelas
gentes bravias, era temeridade afrontar a sanha do povo hirsuto. Aceitou o
aviso: enrolou a trouxa e tocou-se, à noite, caminho da serra do mar.. .
A mesma afronta, assim revolucionária, prepararam os paulistas ao Dr.
Costa Barros. No dia em que chegou o homem, disposto a exemplar os de
Piratinin-ga, todos os sertanistas amotinaram-se. Durante a noite, em frente à
casa do enviado real, andavam bandos coléricos, aos berros:
— Morra
o Dr. Barros! Morra o Dr. Barros! E lá
conta o padre Maceta: "Le tiraram arcabussassos a la ventana, y dieran muchos
porraços en la puerta, incitando-lhe a que saliesse con sus soldados para matar-los".
E o
bom do provincial, à vista de tais audácias, mandava lamúrias de enternecer:
— Mi
padre procurador! En que tierra estamos?
Ni entre herejes y moros se hiziera esto!
DESAFOROS E DESAFOROS
Mas não
se contentavam aqueles desbravadores barbaçudos, de olhos duros e mãos
encoiradas, a desres-peitar capitães e desembargadores. Desabusavam eles, com
desassombro herético, a religião e os padres. Eram desaforos e mais
desaforos. Dos próprios jesuítas, que, nesses escuros tempos, infundiam por
toda a parte o mais reverencioso respeito, zombavam eles com sarcasmos
desprezadores. Por isso é que os inacianos bradavam: — É gente tão ímpia, que
matam porco para comerem nas noites de sexta-feira, banqueteando-se,
"haziendo vela, tocando a tambor e cuernos, menoscabando a los padres,
diciendo que éramos uns pobre-tones…"
Eles mesmos, os paulistas, não escondiam as suas sobrancerías. Pascoal Moreira, em plena Câmara, dizia com ares cândidos:
".. .esta terra tem fama de "alevantada". E por qual
razão? Por os homes irem para o Sertam…"
DELENDA S. PAULO!
A
luta foi duríssima. Num dado instante, por um golpe de força, os bandeirantes
chegaram ao máximo da rebeldia. Indignados contra os padres, vendo-os sempre ao
lado dos selvagens, tiveram o incrível arrojo de executar esta coisa forte: expulsar os jesuítas de São
Paulo. E expulsaram-nos! É claro que os catequizadores não perdoaram nunca esse
achincalhe brutal da raça ímpia e bárbara. E nada mais explicável, por isso
mesmo, o brado revolucionário do Superior do Paraguai implorando, clamando,
vociferando por esta medida radical: arrasar S. Paulo. Destruir a cidade herética!
Delenda S. Paulo! Lá está o grito feroz:
—
Meu padre! Não há força capaz de resistir a esta gente. Não temem excomunhões,
não obedecem Ordens do Rei, não fazem caso da Justiça de Deus nem da dos
homens. Tenho como certo, meu padre, isto: ENQUANTO NÃO SE ARRASAR A VILA DE S.
PAULO, não se há de pôr termo a estas tiranias e crueldades."
* * *
Assim, nesse período bruxuleante da vida paulista, os desbravadores,
enlurados aqui na sua toca selvagem, erguiam a cabeça com altanaria indómita, desrespeitosos,
defendendo os seus direitos com arrogâncias desabusadas.
Só mais tarde,
findo o ciclo da caça ao índio, ao começar a arrancada para as pedras verdes,
foi que os sertanistas abriram mão da luta. Novos interesses, novo drama. E
esse, que é o mais fascinante episódio aventureiro da raça, não cabe num
rodapé. Mas caberá num próximo romance: "A bandeira de Fernão
Dias".
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